A ARTE COMO MAUSOLÉU
Para
lá da inevitável inquietação metafísica, aquilo que se espera de uma pessoa,
que viveu de forma tão desabrigada como Ernst Jünger, é que não sinta necessidade
de “preparar a sua morte”. De facto, era pouco previsível que alguém como ele,
que sentiu os efeitos das “tempestades de aço” disseminados pela pele, que
ergueu “falésias de mármore” à ascensão do nazismo, que foi obrigado a conviver
com a morte na sua imposição mais brutal e anónima e que, por fim, se resignou,
há mais de quarenta anos, a uma contemplativa “classificação” da natureza e dos
homens, tenha sentido necessidade, aos oitenta e seis anos, de escrever um romance
como O
Problema de Aladino.
Mas
este espanto (e irritação) inicial vai-se atenuando, tendo em consideração o
modo como Ernst Jünger situa a morte no quadro dos fenómenos naturais. Se,
desde Tempestades de Aço (In Stahlgewittern), Ernst Jünger
considera a morte (e até mesmo a guerra) como a forma mais despojada e intensa
da Natureza em nós, no Diário vai mais longe, ao entender
que é a necessidade absurda de exorcizar a morte (e, paralelamente, o desejo de
“mais força” na guerra) que tem provocado, no processo civilizacional, uma
supremacia abusiva e descaracterizadora da técnica. Foi esta constatação, associada
a outras rejeições da actual civilização (como, por exemplo, o papel dado às doutrinas
e ao poder político, incluindo o estatuto totalizante do Estado moderno), que lhe
abriu a via para um posicionamento contemplativo e reflexivo, abdicando de
qualquer outro tipo de acção, e que, por conseguinte, está na base da maior
parte da sua produção literária. Ora, é neste contexto que se tem de compreender
o sentido de O Problema de Aladino.
O romance
é constituído por um monólogo relativamente longo de um homem que percebeu que
o seu “património” (isto é, as ligações à sua terra e aos seus ancestrais) é, cada
vez mais, pura memória e que, por isso, desaparecerá com ele. E tal sucede
porque a sociedade perdeu o sentido da morte e, em particular, da inumação, já
que é esta que cria um vínculo à terra e permite, através da arte funerária, a perenização
simbólica da morte. É a consciência deste facto que o leva a conceber e a
realizar, com a ajuda financeira de um banqueiro, o projecto de criar uma necrópole
universal na Anatólia, onde se garanta a perpetuidade do mausoléu. Por fim, o
homem não só vai enriquecer imenso com este projecto, como consegue desviar o
caminho da civilização com a sua utopia.
Mas não
é apenas este “sonho” irónico que nos leva a afirmar que, com este livro, Ernst
Jünger “prepara a sua morte”. É o seu final, directamente relacionado com o título
do romance, que torna mais explícito o sentido último de O Problema de Aladino. O
mago da lâmpada de Aladino não é só o instrumento absoluto do seu desejo; é a
imagem soberana e imortal do próprio Aladino. Assim, quando o personagem
principal recebe uma missiva de Phares (o seu “mago”) a oferecer os seus
préstimos, percebe que este poderá concluir de forma ainda mais perfeita o
objectivo da sua própria vida, e que, deste modo, “livre do seu fardo”, poderá
recolher-se no Hotel das Águias (a morte?).
Compreende-se
então que O Problema de Aladino é o fecho de abóbada da obra de Ernst Jünger
e que este se encontra também preparado para se retirar para o Hotel das
Aguias: a sua obra (Phares) continuará, como um “duplo” perfeito, o destino da
sua vida. E, por outro lado, com este romance, fica também bem claro qual o
objectivo de toda a produção literária do autor: a de perpetuar - como um mausoléu
- contra a previsível evolução da civilização, um tempo e um modo de estar.
Publicado
no Expresso em 1989.
Autor: Ernst Jünger
Tradutor: Ana Cristina Pontes
Editor: Cotovia
Ano: 1989
123 págs., € 10,10
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