quinta-feira, 22 de março de 2018

GORE VIDAL 3

 
 
 
A IRREALIDADE DO REAL
 
Talvez mais do que devido à sua actividade como escritor, Gore Vidal tornou-se famoso nos Estados Unidos por ter assumido, nos órgãos de comunicação social e em tentativas fracassadas de participação activa na vida política, posições críticas frontais em relação aos actuais percursos da nação americana. Defendendo os antigos valores senatoriais, uma postura cívica genuinamente republicana, isto é, desinteressada e empenhada, Gore Vidal tem acusado a actual classe dirigente americana de executar uma política imperialista autofágica, de ocupar o poder com meros intuitos de obter as facilidades sociais resultantes do seu exercício e, por fim, de propiciar a desmotivação cultural e política da população, uma vez que apenas apela à sua participação pública através de um nacionalismo arrogante e de um eleitoralismo primário.
 
Estas inquietações de Gore Vidal com a presente realidade dos Estados Unidos são sempre actuantes na sua ficção — mesmo nos seus romances “históricos”; mas em Duluth, que se centra na actualidade, elas tornam-se o seu explícito “motor” narrativo e são, muitas vezes, constrangentes da própria acção.
 
Neste romance, Gore Vidal concebe uma grande cidade, Duluth, onde vai integrar toda a diversidade de situações e conflitos que tipificam qualquer metrópole norte-americana. Assim, encontramos nela as já caracterizadas lutas e rivalidades entre famílias e grupos dominantes, com o intuito de consolidar o seu prestígio social ou de melhor controlar o poder político local (veja-se, a título de exemplo, o confronto entre o chefe da polícia e o presidente camarário), ou então a já conhecida marginalização da servil comunidade negra ou ainda a perseguição dos “chicanos”, fácil bode expiatório das tensões que explodem dentro do núcleo anglo-saxónico.
 
No entanto, com uma acentuada ironia, Gore Vidal resolve enfatizar os aspectos mais típicos da realidade referente em todas as personagens e situações, dando-lhes uma dimensão de “non-sense” que se torna, por conseguinte, um dos traços estilísticos mais constantes de Duluth (um exemplo característico deste “non-sense” é a perversão sexual, alucinada e absurda, com que a agente policial Darlene persegue e maltrata os “chicanos”).
 
Este “non-sense” permanente, associado a um jogo de efeitos mais amplo e aleatório do que aquele que existe na realidade, dá ao leitor de Duluth a ideia de que está em presença de uma matéria irreal (isto é, apenas ficcional) que só mimetiza a realidade por intenções explicitamente críticas e negativas.
 
Inúmeros exemplos seriam possíveis de apresentar sobre este carácter irreal da matéria narrada por Duluth. Mas o mais significativo (e a ideia mais brilhante deste romance) é o efeito de simultaneidade: as personagens de Duluth (a cidade que existe no romance de Gore Vidal), quando “morrem”, podem ser “transmudadas” para outros registos ficcionais: aparecem assim numa série televisiva (que se chama também Duluth) ou no romance “popular” da escritora de maior sucesso da cidade, etc. Além disso, estas personagens podem, por defeito, entrar em comunicação com outras personagens dos registos que abandonaram.
 
Torna-se notório que o efeito da simultaneidade tem o sentido de uma ampla metáfora sobre a omnipresença do factor mediático na sociedade actual. O que Duluth assinala com ele, é a desagregação da individualidade e a asfixia do poder criativo pela intensidade quotidiana dos media, que leva a que todos os discursos e figuras se transformem na reprodução de modelos generalizados e impostos.
 
Em resumo, o caracter tipológico das personagens e situações e a utilização do “non-sense” com intuitos objetivamente panfletários fazem de Duluth um exercício inteligente, mas transmitindo uma visão linear e superficial em excesso da sociedade americana.
 
Publicado no Expresso em 1989.
 
  
Título: Duluth
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Maria Helena Martins e Álvaro Martins
Editor: Difel
Ano: 1989
211 págs., € 13,20



quarta-feira, 21 de março de 2018

JOHN HAWKES

 
 
 
 
AVENTURAS NAS FRONTEIRAS DA PELE
 
Um dos aspectos mais empolgantes da literatura contemporânea, para quem acompanha o seu percurso, foi o ressurgimento do romanesco a partir dos finais da década de setenta.
 
Após um período em que a ficção, pelo menos na sua linha dominante, se debruçou sobre os próprios mecanismos narrativos, desmontando os “efeitos ilusórios” das estruturas clássicas, observámos, durante a última década, uma outra, em que aqueles foram entendidos como um lugar revivificação do imaginário, muitas vezes reformulando e reutilizando material da tradição popular e oral, mas visando também um “alargamento dos efeitos denunciatórios” e de análise social. No presente, vemos a ficção assumir a mimésis, a estrutura dramática e a caracterização de personagens, não como veículos de aproximação ao real, mas, pelo contrário, como elementos integrantes da sua especificidade criativa e como reforço dos “efeitos encantatórios” da narração.
 
A obra de John Hawkes, de quem foi agora traduzido este Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, é reveladora de alguns destes aspectos da evolução contemporânea do romance.
 
John Hawkes, um dos mais importantes escritores americanos do pós-guerra, iniciou a sua carreira de romancista, com vinte e quatro anos, publicando, em 1949, The Cannibal. Saudado e louvado como um grande romance (entre outros, pela importante escritora sulista Flannery O’Connor e pelo mais tarde nobilitado Saul Bellow), vai ser, contudo, nos anos sessenta e setenta, com Second Skin, The Blood Oranges e The Passion Artist, que obtém o reconhecimento da crítica americana e europeia. Ao mesmo tempo, na Costa Leste e, em particular, em Nova Iorque, as suas posições de crítico e as suas considerações estéticas e literárias alcançam um enorme prestígio, contribuindo para a afirmação pública e crítica da geração literária seguinte (John Barth, Donald Barthelme, John Gardner, etc.).
 
No entanto, nunca John Hawkes teve grande sucesso de vendas nos Estados Unidos — talvez porque foi sempre encarado como um escritor excessivamente “europeu”: não só alguma da sua mais importante ficção tem como cenário o Velho Continente, mas também porque as suas mais significativas referências literárias, se exceptuarmos a de William Faulkner, têm como origem a literatura deste lado do Atlântico. De facto, e duma forma abusiva, John Hawkes foi encarado, durante a década de sessenta, como uma espécie de representante americano do “Nouveau Roman”...
 
É certo que, durante esse período, a obra ficcionista de John Hawkes se debruçou sobre o estatuto do narrador, procurando atingir, ao mesmo tempo, uma dimensão antirealista em que, através de um imaginário obcecadamente alucinado e nocturno, se dissolvia os elementos tradicionais da composição romanesca. Mas, a partir de Second Skin, John Hawkes introduz uma maior componente de humor no seu estilo (ele próprio se classifica como um “autor cómico”) e, por outro lado, reforça a presença temática do erotismo: é o caso do belíssimo The Blood Oranges, onde, através da relação entrecruzada de quatro personagens, vivendo numa região mediterrânica, perpassa uma quente e subtil sensualidade e um hedonismo solar e envolvente.
 
Com Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, publicado em 1985, inicia-se, provavelmente, uma nova fase na obra de John Hawkes, em que, através do aproveitamento da estrutura narrativa clássica, há um retorno claro do romanesco: o próprio título, lembrando-nos a obra de Jack London, é disso um evidente sinal.
 
John Hawkes resolve retomar um velho e genuíno (como poucos existem) mito americano: o desbravar da “fronteira”. E é através da figura simbólica do “pioneiro” que reanalisa a relação, antes do mais, ética, do homem com a Natureza. Para isso, nada melhor do que, cenicamente, pegar nesse espaço também mítico que é o Alasca.
 
De facto, poucos espaços ainda existem onde a Natureza possa ser “imaginada” como um território bravio, onde as montanhas, os gelos e as neves permanentes sejam visualizados como lugares insuportáveis, exigindo um constante esforço de resiliência, de afirmação do desejo do homem em domar as intempéries que o pretendem anular: o Alasca torna-se assim o lugar em que o homem tem ainda que conquistar a sua presença, testando-se.
 
O “pioneiro” é, por excelência, uma figura masculina (mesmo quando feminina, ela é representada como que “investida” dos códigos masculinos). Dai que John Hawkes tente, em Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, fazer uma caracterização da especificidade do comportamento masculino. Simplesmente, a leitura dessa caracterização é feita aqui por Sunny, uma prostituta que retira um intenso prazer da sua profissão, ao tentar rememorar as peripécias da vida do seu pai, Uncle Jack, que a trouxe para o Alasca.
 
O comportamento de Uncle Jack circula entre três constantes que estabelecem um profundo nexo entre si: uma “necessidade obsessiva de ordem” (que se revela em sinais como, por exemplo, na procura ansiosa de, nas circunstâncias mais adversas, manter um aspecto cuidado) que o leva a “afrontar, de forma gratuita, a Natureza”, como tentativa de dominação soberana (são essas as “aventuras” que, com justificações “humanitárias” ou por ambições megalómanas e improdutivas, Uncle Jack vai efectuando pelos mares e montanhas gelados do Alasca). Mas este confronto é em grande parte uma perversão, resultante da total “incompreensão da alteridade” que é o feminino (repare-se no seu constante desentendimento dos apelos sexuais femininos ou o modo inconsciente como vai destruindo a sua mulher, procurando, contudo, angustiadamente protegê-la, ou ainda na imagem “masculinizada” que faz de Sunny).
 
Mas é essa incompreensão da alteridade (a Natureza, a mulher) que provoca em Uncle Jack uma sensibilidade que o condena ao malogro. É por isso que ele, ao perceber que a principal motivação da sua viagem ao Alasca – um totem índio encabeçado pela imagem de Lincoln (outro sinal de dominação, alargado aqui, em termos simbólicos, aos Estados Unidos) nunca poderá ser removido, porque se desagregará - se sente na necessidade, depois de um percurso que vai da euforia à depressão, de cumprir o seu destino, desaparecendo no horizonte alasquiano.
 
Este comportamento de Uncle Jack tornou-se, para Sunny, paradigma da inacessibilidade masculina (é por isso que ela resolve colocar, no largo fronteiriço ao seu bordel, um totem encabeçado pela imagem do pai e em que várias figuras de mulher tentam subir até ele sem o atingir). Os pesadelos que Sunny diariamente tem com Uncle Jack, alguns anos depois da morte deste, e em que ele apela à sua cumplicidade e até mesmo ao seu auxílio para o salvar, são sintoma da impotência de Sunny em libertar Uncle Jack de um destino catastrófico através de uma espécie de redenção sexual.
 
E se, para Sunny, a verdadeira fronteira masculina é a mulher e não o Alasca, ela tem também consciência de que a sua fronteira é o homem. Daí que o modo de estar de Sunny seja condicionado a uma incessante tentativa de eliminar a inacessibilidade masculina, ao ponto de transformar toda a sua sensibilidade: a sua prostituição feliz é uma resultante de o seu corpo só “viver” no desejo que se reflecte no olhar dos homens.
 
Mas essa condicionante vai fazer com que, para Sunny, o outro seja o próprio feminino (repare-se na sua incapacidade de compreender Martha Washington, a mulher que, para ela, é o “verdadeiro Alasca”, na medida em que toda a sua sensibilidade e sexualidade se procuram afirmar sem dependerem da manifestação do desejo masculino). Para que Sunny consiga exorcizar os pesadelos permanentes com o seu pai e adaptar-se de forma serena à paisagem agreste do Alasca, vai ter, por fim, que se conciliar com a sua feminilidade (a “solução”, concebida pelo seu amante índio Sitka Charly , deverá ser engravidar, nem que seja, afinal, numa falsa gestação) .
 
Nesta pista de leitura pode perceber-se a complexidade das relações simbólicas de Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, embora os elementos simbólicos sejam, por vezes, demasiado explícitos: é este o principal óbice que vejo neste romance.
 
Creio que convém ainda salientar a qualidade estilística desta obra, que concilia humor (que começa logo no título, com uma subtil alusão à prostituição de Sunny) e uma poderosa capacidade descritiva, num registo que vai desde o ritmo salmódico e poético à linearidade do mais genuíno romance de aventuras.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: Aventuras no Comércio de Peles do Alasca
Autor: John Hawkes
Tradutor: Ana Barradas
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
318 págs., esg.