quarta-feira, 21 de março de 2018

JOHN HAWKES

 
 
 
 
AVENTURAS NAS FRONTEIRAS DA PELE
 
Um dos aspectos mais empolgantes da literatura contemporânea, para quem acompanha o seu percurso, foi o ressurgimento do romanesco a partir dos finais da década de setenta.
 
Após um período em que a ficção, pelo menos na sua linha dominante, se debruçou sobre os próprios mecanismos narrativos, desmontando os “efeitos ilusórios” das estruturas clássicas, observámos, durante a última década, uma outra, em que aqueles foram entendidos como um lugar revivificação do imaginário, muitas vezes reformulando e reutilizando material da tradição popular e oral, mas visando também um “alargamento dos efeitos denunciatórios” e de análise social. No presente, vemos a ficção assumir a mimésis, a estrutura dramática e a caracterização de personagens, não como veículos de aproximação ao real, mas, pelo contrário, como elementos integrantes da sua especificidade criativa e como reforço dos “efeitos encantatórios” da narração.
 
A obra de John Hawkes, de quem foi agora traduzido este Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, é reveladora de alguns destes aspectos da evolução contemporânea do romance.
 
John Hawkes, um dos mais importantes escritores americanos do pós-guerra, iniciou a sua carreira de romancista, com vinte e quatro anos, publicando, em 1949, The Cannibal. Saudado e louvado como um grande romance (entre outros, pela importante escritora sulista Flannery O’Connor e pelo mais tarde nobilitado Saul Bellow), vai ser, contudo, nos anos sessenta e setenta, com Second Skin, The Blood Oranges e The Passion Artist, que obtém o reconhecimento da crítica americana e europeia. Ao mesmo tempo, na Costa Leste e, em particular, em Nova Iorque, as suas posições de crítico e as suas considerações estéticas e literárias alcançam um enorme prestígio, contribuindo para a afirmação pública e crítica da geração literária seguinte (John Barth, Donald Barthelme, John Gardner, etc.).
 
No entanto, nunca John Hawkes teve grande sucesso de vendas nos Estados Unidos — talvez porque foi sempre encarado como um escritor excessivamente “europeu”: não só alguma da sua mais importante ficção tem como cenário o Velho Continente, mas também porque as suas mais significativas referências literárias, se exceptuarmos a de William Faulkner, têm como origem a literatura deste lado do Atlântico. De facto, e duma forma abusiva, John Hawkes foi encarado, durante a década de sessenta, como uma espécie de representante americano do “Nouveau Roman”...
 
É certo que, durante esse período, a obra ficcionista de John Hawkes se debruçou sobre o estatuto do narrador, procurando atingir, ao mesmo tempo, uma dimensão antirealista em que, através de um imaginário obcecadamente alucinado e nocturno, se dissolvia os elementos tradicionais da composição romanesca. Mas, a partir de Second Skin, John Hawkes introduz uma maior componente de humor no seu estilo (ele próprio se classifica como um “autor cómico”) e, por outro lado, reforça a presença temática do erotismo: é o caso do belíssimo The Blood Oranges, onde, através da relação entrecruzada de quatro personagens, vivendo numa região mediterrânica, perpassa uma quente e subtil sensualidade e um hedonismo solar e envolvente.
 
Com Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, publicado em 1985, inicia-se, provavelmente, uma nova fase na obra de John Hawkes, em que, através do aproveitamento da estrutura narrativa clássica, há um retorno claro do romanesco: o próprio título, lembrando-nos a obra de Jack London, é disso um evidente sinal.
 
John Hawkes resolve retomar um velho e genuíno (como poucos existem) mito americano: o desbravar da “fronteira”. E é através da figura simbólica do “pioneiro” que reanalisa a relação, antes do mais, ética, do homem com a Natureza. Para isso, nada melhor do que, cenicamente, pegar nesse espaço também mítico que é o Alasca.
 
De facto, poucos espaços ainda existem onde a Natureza possa ser “imaginada” como um território bravio, onde as montanhas, os gelos e as neves permanentes sejam visualizados como lugares insuportáveis, exigindo um constante esforço de resiliência, de afirmação do desejo do homem em domar as intempéries que o pretendem anular: o Alasca torna-se assim o lugar em que o homem tem ainda que conquistar a sua presença, testando-se.
 
O “pioneiro” é, por excelência, uma figura masculina (mesmo quando feminina, ela é representada como que “investida” dos códigos masculinos). Dai que John Hawkes tente, em Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, fazer uma caracterização da especificidade do comportamento masculino. Simplesmente, a leitura dessa caracterização é feita aqui por Sunny, uma prostituta que retira um intenso prazer da sua profissão, ao tentar rememorar as peripécias da vida do seu pai, Uncle Jack, que a trouxe para o Alasca.
 
O comportamento de Uncle Jack circula entre três constantes que estabelecem um profundo nexo entre si: uma “necessidade obsessiva de ordem” (que se revela em sinais como, por exemplo, na procura ansiosa de, nas circunstâncias mais adversas, manter um aspecto cuidado) que o leva a “afrontar, de forma gratuita, a Natureza”, como tentativa de dominação soberana (são essas as “aventuras” que, com justificações “humanitárias” ou por ambições megalómanas e improdutivas, Uncle Jack vai efectuando pelos mares e montanhas gelados do Alasca). Mas este confronto é em grande parte uma perversão, resultante da total “incompreensão da alteridade” que é o feminino (repare-se no seu constante desentendimento dos apelos sexuais femininos ou o modo inconsciente como vai destruindo a sua mulher, procurando, contudo, angustiadamente protegê-la, ou ainda na imagem “masculinizada” que faz de Sunny).
 
Mas é essa incompreensão da alteridade (a Natureza, a mulher) que provoca em Uncle Jack uma sensibilidade que o condena ao malogro. É por isso que ele, ao perceber que a principal motivação da sua viagem ao Alasca – um totem índio encabeçado pela imagem de Lincoln (outro sinal de dominação, alargado aqui, em termos simbólicos, aos Estados Unidos) nunca poderá ser removido, porque se desagregará - se sente na necessidade, depois de um percurso que vai da euforia à depressão, de cumprir o seu destino, desaparecendo no horizonte alasquiano.
 
Este comportamento de Uncle Jack tornou-se, para Sunny, paradigma da inacessibilidade masculina (é por isso que ela resolve colocar, no largo fronteiriço ao seu bordel, um totem encabeçado pela imagem do pai e em que várias figuras de mulher tentam subir até ele sem o atingir). Os pesadelos que Sunny diariamente tem com Uncle Jack, alguns anos depois da morte deste, e em que ele apela à sua cumplicidade e até mesmo ao seu auxílio para o salvar, são sintoma da impotência de Sunny em libertar Uncle Jack de um destino catastrófico através de uma espécie de redenção sexual.
 
E se, para Sunny, a verdadeira fronteira masculina é a mulher e não o Alasca, ela tem também consciência de que a sua fronteira é o homem. Daí que o modo de estar de Sunny seja condicionado a uma incessante tentativa de eliminar a inacessibilidade masculina, ao ponto de transformar toda a sua sensibilidade: a sua prostituição feliz é uma resultante de o seu corpo só “viver” no desejo que se reflecte no olhar dos homens.
 
Mas essa condicionante vai fazer com que, para Sunny, o outro seja o próprio feminino (repare-se na sua incapacidade de compreender Martha Washington, a mulher que, para ela, é o “verdadeiro Alasca”, na medida em que toda a sua sensibilidade e sexualidade se procuram afirmar sem dependerem da manifestação do desejo masculino). Para que Sunny consiga exorcizar os pesadelos permanentes com o seu pai e adaptar-se de forma serena à paisagem agreste do Alasca, vai ter, por fim, que se conciliar com a sua feminilidade (a “solução”, concebida pelo seu amante índio Sitka Charly , deverá ser engravidar, nem que seja, afinal, numa falsa gestação) .
 
Nesta pista de leitura pode perceber-se a complexidade das relações simbólicas de Aventuras no Comércio de Peles do Alasca, embora os elementos simbólicos sejam, por vezes, demasiado explícitos: é este o principal óbice que vejo neste romance.
 
Creio que convém ainda salientar a qualidade estilística desta obra, que concilia humor (que começa logo no título, com uma subtil alusão à prostituição de Sunny) e uma poderosa capacidade descritiva, num registo que vai desde o ritmo salmódico e poético à linearidade do mais genuíno romance de aventuras.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: Aventuras no Comércio de Peles do Alasca
Autor: John Hawkes
Tradutor: Ana Barradas
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
318 págs., esg.
 
 

 


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