A IRREALIDADE DO REAL
Talvez
mais do que devido à sua actividade como escritor, Gore Vidal tornou-se famoso
nos Estados Unidos por ter assumido, nos órgãos de comunicação social e em
tentativas fracassadas de participação activa na vida política, posições críticas
frontais em relação aos actuais percursos da nação americana. Defendendo os
antigos valores senatoriais, uma postura cívica genuinamente republicana, isto é,
desinteressada e empenhada, Gore Vidal tem acusado a actual classe dirigente
americana de executar uma política imperialista autofágica, de ocupar o poder
com meros intuitos de obter as facilidades sociais resultantes do seu exercício
e, por fim, de propiciar a desmotivação cultural e política da população, uma
vez que apenas apela à sua participação pública através de um nacionalismo arrogante
e de um eleitoralismo primário.
Estas
inquietações de Gore Vidal com a presente realidade dos Estados Unidos são
sempre actuantes na sua ficção — mesmo nos seus romances “históricos”; mas em Duluth,
que se centra na actualidade, elas tornam-se o seu explícito “motor” narrativo
e são, muitas vezes, constrangentes da própria acção.
Neste
romance, Gore Vidal concebe uma grande cidade, Duluth, onde vai integrar toda a
diversidade de situações e conflitos que tipificam qualquer metrópole norte-americana.
Assim, encontramos nela as já caracterizadas lutas e rivalidades entre famílias
e grupos dominantes, com o intuito de consolidar o seu prestígio social ou de
melhor controlar o poder político local (veja-se, a título de exemplo, o
confronto entre o chefe da polícia e o presidente camarário), ou então a já
conhecida marginalização da servil comunidade negra ou ainda a perseguição dos
“chicanos”, fácil bode expiatório das tensões que explodem dentro do núcleo
anglo-saxónico.
No
entanto, com uma acentuada ironia, Gore Vidal resolve enfatizar os aspectos
mais típicos da realidade referente em todas as personagens e situações, dando-lhes
uma dimensão de “non-sense” que se torna, por conseguinte, um dos traços estilísticos
mais constantes de Duluth (um exemplo característico deste “non-sense” é a perversão
sexual, alucinada e absurda, com que a agente policial Darlene persegue e
maltrata os “chicanos”).
Este “non-sense”
permanente, associado a um jogo de efeitos mais amplo e aleatório do que aquele
que existe na realidade, dá ao leitor de Duluth a ideia de que está em presença
de uma matéria irreal (isto é, apenas ficcional) que só mimetiza a realidade
por intenções explicitamente críticas e negativas.
Inúmeros
exemplos seriam possíveis de apresentar sobre este carácter irreal da matéria
narrada por Duluth. Mas o mais significativo (e a ideia mais brilhante
deste romance) é o efeito de simultaneidade: as personagens de Duluth (a cidade
que existe no romance de Gore Vidal), quando “morrem”, podem ser “transmudadas”
para outros registos ficcionais: aparecem assim numa série televisiva (que se
chama também Duluth) ou no romance “popular” da escritora de maior sucesso da
cidade, etc. Além disso, estas personagens podem, por defeito, entrar em comunicação
com outras personagens dos registos que abandonaram.
Torna-se
notório que o efeito da simultaneidade tem o sentido de uma ampla metáfora
sobre a omnipresença do factor mediático na sociedade actual. O que Duluth
assinala com ele, é a desagregação da individualidade e a asfixia do poder criativo
pela intensidade quotidiana dos media, que leva a que todos os discursos e
figuras se transformem na reprodução de modelos generalizados e impostos.
Em resumo,
o caracter tipológico das personagens e situações e a utilização do “non-sense”
com intuitos objetivamente panfletários fazem de Duluth um exercício
inteligente, mas transmitindo uma visão linear e superficial em excesso da
sociedade americana.
Publicado
no Expresso em 1989.
Título:
Duluth
Autor:
Gore Vidal
Tradutor:
Maria Helena Martins e Álvaro Martins
Editor:
Difel
Ano: 1989
211
págs., € 13,20
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