A
ETERNA ADOLESCÊNCIA A CAMINHO DO NEGRO FIM DO MUNDO
Quando
se silenciou o troar apocalíptico das bombas e dos canhões da II Guerra
Mundial, os Estados Unidos, que tinham passado quase incólumes no conflito (sem
invasões nem destruições no seu território e com menos de meio milhão de
vítimas militares – isto é, apenas 1% das vítimas globais da Guerra),
encontravam-se, no início da década de cinquenta, num aparentemente imparável
ciclo de crescimento económico. A irradiação do bem-estar e do consumo em vastos
segmentos da população, que até aí tinham vivido na penúria da Depressão e da
Guerra, mergulhava o “bom americano” num imenso optimismo, fruto da crença num
linearismo desenvolvimentista que iria trazer, segundo parecia, a “paz
universal” e a “felicidade eterna” na terra. Foi neste ambiente social e
económico, que dava a impressão de condenar toda a gente a um modelo de vida e
a uma forma de estar padronizada, que apareceu na costa Oeste, a contragosto,
toda uma geração de intelectuais, a “beat generation”, que procurava um “outro”
território existencial, dando origem a uma imprevisível tormenta na desmesurada
nau americana.
Allen
Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Jack Kerouac, William S.
Burroughs, Gary Snider, Neal Cassady, etc., têm, de facto, em comum, uma necessidade
de fuga (Gilles Deleuze, em 1977, considerava-a como a característica determinante
de toda a literatura anglo-americana deste século; mas não há dúvida que, onde
ela se torna ostensivamente evidente, é na produção literária da “beat
generation”): a filosofia oriental, o uso regular de estimulantes e alucinogénios,
a afirmação da sexualidade, o pacifismo e o anti-nuclearismo, o renascimento de
certa americanidade (a de Whitman, Pound e Henry Miller, por exemplo) resumem-se
a uma procura frenética de práticas quotidianas alternativas, à exploração de
campos “off” que, obviamente, ultrapassam em muito o domínio da produção
artística e literária. O peso social destas práticas, e das propostas ideológicas
decorrentes, foi tremendo, e quem queira perseguir a genealogia dos fenómenos
sociais mais expressivos dos anos sessenta e setenta terá que, de forma inevitável,
passar pela acção cultural da “beat generation”.
Todo
este processo se encontra hoje, contudo, bem distante: a editora e livraria de
Lawrence Ferlinghetti, que publicou todos estes autores, a City Light Books, tornou-se
um templo institucional em San Francisco, a Universidade de Berkeley o panteão
da sua glorificação, os autores “beat” mitos vivos e... mortos. E, como é natural,
a avaliação rigorosa da sua produção literária e artística começou a efectuar-se,
mais ou menos liberta da fascinante circunstancialidade que a envolveu.
William
S. Burroughs e Jack Kerouac são, reconhecidamente, os maiores prosadores desta
geração. E, curiosamente, qualquer deles pretendeu esquivar-se a uma imagem de estritos
romancistas.
O primeiro,
depois de passar por uma dolorosa experiência de toxicómano, dependente de opiáceos,
por longas estadias na América do Sul e na África do Norte (a sua permanência
em Tânger, em consequência do seu comportamento anómalo, tornou-se lendária),
foi alvo, em Boston, por alturas da edição americana da sua segunda obra, Naked
Lunch, de um julgamento muito polémico, acusado de obscenidade e atentado
aos costumes: o livro (já traduzido para português com o título A
Refeição Nua) é resultante de um conjunto de anotações feitas no período
da dependência e, posteriormente, no de tratamento por apomorfina.
No
seguimento desta experiência narrativa, Burroughs vai dedicar-se, durante quase
uma década (1959-1967),a um trabalho experimental sobre a linguagem (aplicando,
de um modo sistemático, o “cut-up”, método inventado por um seu amigo, o pintor
Bryon Gysin, e oriundo de experiências pontuais de Tzara e de algumas concepções
teóricas de Cage e MacLuhan), pretendendo estabelecer um elo de comunicação pré-racional
com o leitor, e convencido de que a literatura tinha de se converter num instrumento
de guerrilha contra a semântica e contra racionalidade que lhe está subjacente,
entendidas como os principais suportes do sistema tecnológico, entendido pelo
autor como opressivo, em que se vive.
Cidades
da Noite Vermelha, o último livro de WiIIiam S.Burroughs, como
os dois anteriores, é resultante de uma nova “viragem” literária do autor,
consciente do “fiasco”, em termos de comunicabilidade, que foi a aplicação
radical do “cut-up”. Interligando dois enredos, um, de flibusteiros, passado no
séc. XVIII, outro, oriundo do romance negro americano (para lá de outros
excertos dramáticos), o romance pretende explicitar a existência, em diferentes
épocas, de uma surda guerra que forças obscuras movem com vista a transformar
virologicamente a humanidade: conclui-se com um enredo de antecipação, onde, em
gigantescas e espectrantes metrópoles, se estabelece uma imagem apocalíptica do
nosso futuro, feita de violência e quotidiana criminalidade, de mutação e
“perversão” sexual, de circulação permanente de opiáceos.
Mas a
presença, em catadupa, de imagens brutais de violência, de aviltamento do
outro, de degradação, muitas vezes associadas à homossexualidade masculina, só
fazem sobressair, à revelia do alarme pessimista sobre o futuro da humanidade, que
Cidades
da Noite Vermelha pretende ser um “olhar puritano” sobre a actual sociedade,
que desvirtua e torna inevitavelmente estéril esse mesmo alarme.
Por
outro lado, o uso “disfarçado” do “cut-up” e o recurso a métodos narrativos
retirados dos “comics” e da ficção “marginal” de aventuras desequilibram a estrutura
romanesca desta obra e transformam-na num mero (mas brilhante) depositário de técnicas
narrativas.
A este
nível, o apontamento mais interessante relaciona-se com o “renascimento” de
personagens e situações pertencentes aos anteriores enredos na terceira parte
de Cidades
da Noite Vermelha: ao integrá-las na trama final, William S. Burroughs
consegue não só desfazer qualquer “ilusão naturalista”, que tivessem criado os anteriores
enredos, por serem construídos por processos narrativos clássicos, como recria,
em compensação, a ilusão de que o texto é um mecanismo que se autorreproduz,
deixando um lastro semântico.
Esta
obra torna bem evidente que a produção literária de William S. Burroughs se
encontra, pelo menos numa fase provisória, numa situação sem saída criativa.
Mas essa não será a situação de todo um conjunto de romancistas que, nas décadas
de sessenta e setenta, se preocuparam em especial com uma reflexão sobre a
linguagem e as técnicas narrativas, subvalorizando os registos especificamente dramáticos?
Quanto
a Jack Kerouac, essa necessidade de fuga, de libertação de um quotidiano
programado, determinou que a sua obra rejeitasse a especificidade do “literário”
(entendido nos limites poéticos e estilísticos modelados pelas obras de Henry
James e de Hemingway, autores, por ele, menosprezados): a escrita tinha que se
tornar o instrumento imediato e testemunhante de um existir “poético”, isto é,
emocionalmente intenso, e o romance uma torrente de palavras que pretendia apanhar
o pulsar da vida, transformando-se no monumento épico do momento (os
antecedentes desta escrita estão, como é bem explícito, em Céline e em Henry
Miller, por exemplo).
The
Dharma Bums (traduzido para português com o título infeliz
de Os
Vagabundos da Verdade), o seu terceiro livro, é, como a maioria da
restante obra deste autor, a fixação romanesca de material autobiográfico:
neste caso, as suas convivências com o budismo zen.
Mas,
para lá da especificidade do enredo, o que é hoje realçante neste livro, como
no já clássico On the Road, é ainda conseguir fascinar-nos, mesmo sofrendo de evidentes
ingenuidades narrativas, por personagens que estabeleciam novos modos de viver,
por imortais adolescentes sempre disponíveis à descoberta e à invenção de um
outro sentir. E, inegavelmente, estes romances de Kerouac, ao dimensionarem de
um modo poético todo um conjunto de sinais da civilização urbana, transformaram
os Estados Unidos no paraíso daqueles que ainda acreditam ser possível o
nomadismo como forma de estar.
Publicado no Expresso em 1984.
Título: Cidades da Noite Vermelha
Autor: William S. Burroughs
Tradutor: Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de
Menezes
Editor: Difel
Ano: 1984
320 págs., esg.
Título: Os Vagabundos da Verdade
Autor: Jack Kerouac
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Minerva
Ano: 1984
303 págs. , esg.