sexta-feira, 29 de junho de 2018

WILLIAM S. BURROUGHS e JACK KEROUAC

 
 
 
 
 
A ETERNA ADOLESCÊNCIA A CAMINHO DO NEGRO FIM DO MUNDO
 
Quando se silenciou o troar apocalíptico das bombas e dos canhões da II Guerra Mundial, os Estados Unidos, que tinham passado quase incólumes no conflito (sem invasões nem destruições no seu território e com menos de meio milhão de vítimas militares – isto é, apenas 1% das vítimas globais da Guerra), encontravam-se, no início da década de cinquenta, num aparentemente imparável ciclo de crescimento económico. A irradiação do bem-estar e do consumo em vastos segmentos da população, que até aí tinham vivido na penúria da Depressão e da Guerra, mergulhava o “bom americano” num imenso optimismo, fruto da crença num linearismo desenvolvimentista que iria trazer, segundo parecia, a “paz universal” e a “felicidade eterna” na terra. Foi neste ambiente social e económico, que dava a impressão de condenar toda a gente a um modelo de vida e a uma forma de estar padronizada, que apareceu na costa Oeste, a contragosto, toda uma geração de intelectuais, a “beat generation”, que procurava um “outro” território existencial, dando origem a uma imprevisível tormenta na desmesurada nau americana.
 
Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Gary Snider, Neal Cassady, etc., têm, de facto, em comum, uma necessidade de fuga (Gilles Deleuze, em 1977, considerava-a como a característica determinante de toda a literatura anglo-americana deste século; mas não há dúvida que, onde ela se torna ostensivamente evidente, é na produção literária da “beat generation”): a filosofia oriental, o uso regular de estimulantes e alucinogénios, a afirmação da sexualidade, o pacifismo e o anti-nuclearismo, o renascimento de certa americanidade (a de Whitman, Pound e Henry Miller, por exemplo) resumem-se a uma procura frenética de práticas quotidianas alternativas, à exploração de campos “off que, obviamente, ultrapassam em muito o domínio da produção artística e literária. O peso social destas práticas, e das propostas ideológicas decorrentes, foi tremendo, e quem queira perseguir a genealogia dos fenómenos sociais mais expressivos dos anos sessenta e setenta terá que, de forma inevitável, passar pela acção cultural da “beat generation”.
 
Todo este processo se encontra hoje, contudo, bem distante: a editora e livraria de Lawrence Ferlinghetti, que publicou todos estes autores, a City Light Books, tornou-se um templo institucional em San Francisco, a Universidade de Berkeley o panteão da sua glorificação, os autores “beat” mitos vivos e... mortos. E, como é natural, a avaliação rigorosa da sua produção literária e artística começou a efectuar-se, mais ou menos liberta da fascinante circunstancialidade que a envolveu.
 
William S. Burroughs e Jack Kerouac são, reconhecidamente, os maiores prosadores desta geração. E, curiosamente, qualquer deles pretendeu esquivar-se a uma imagem de estritos romancistas.
 
O primeiro, depois de passar por uma dolorosa experiência de toxicómano, dependente de opiáceos, por longas estadias na América do Sul e na África do Norte (a sua permanência em Tânger, em consequência do seu comportamento anómalo, tornou-se lendária), foi alvo, em Boston, por alturas da edição americana da sua segunda obra, Naked Lunch, de um julgamento muito polémico, acusado de obscenidade e atentado aos costumes: o livro (já traduzido para português com o título A Refeição Nua) é resultante de um conjunto de anotações feitas no período da dependência e, posteriormente, no de tratamento por apomorfina.
 
No seguimento desta experiência narrativa, Burroughs vai dedicar-se, durante quase uma década (1959-1967),a um trabalho experimental sobre a linguagem (aplicando, de um modo sistemático, o “cut-up”, método inventado por um seu amigo, o pintor Bryon Gysin, e oriundo de experiências pontuais de Tzara e de algumas concepções teóricas de Cage e MacLuhan), pretendendo estabelecer um elo de comunicação pré-racional com o leitor, e convencido de que a literatura tinha de se converter num instrumento de guerrilha contra a semântica e contra racionalidade que lhe está subjacente, entendidas como os principais suportes do sistema tecnológico, entendido pelo autor como opressivo, em que se vive.
 
Cidades da Noite Vermelha, o último livro de WiIIiam S.Burroughs, como os dois anteriores, é resultante de uma nova “viragem” literária do autor, consciente do “fiasco”, em termos de comunicabilidade, que foi a aplicação radical do “cut-up”. Interligando dois enredos, um, de flibusteiros, passado no séc. XVIII, outro, oriundo do romance negro americano (para lá de outros excertos dramáticos), o romance pretende explicitar a existência, em diferentes épocas, de uma surda guerra que forças obscuras movem com vista a transformar virologicamente a humanidade: conclui-se com um enredo de antecipação, onde, em gigantescas e espectrantes metrópoles, se estabelece uma imagem apocalíptica do nosso futuro, feita de violência e quotidiana criminalidade, de mutação e “perversão” sexual, de circulação permanente de opiáceos.
 
Mas a presença, em catadupa, de imagens brutais de violência, de aviltamento do outro, de degradação, muitas vezes associadas à homossexualidade masculina, só fazem sobressair, à revelia do alarme pessimista sobre o futuro da humanidade, que Cidades da Noite Vermelha pretende ser um “olhar puritano” sobre a actual sociedade, que desvirtua e torna inevitavelmente estéril esse mesmo alarme.
 
Por outro lado, o uso “disfarçado” do “cut-up” e o recurso a métodos narrativos retirados dos “comics” e da ficção “marginal” de aventuras desequilibram a estrutura romanesca desta obra e transformam-na num mero (mas brilhante) depositário de técnicas narrativas.
 
A este nível, o apontamento mais interessante relaciona-se com o “renascimento” de personagens e situações pertencentes aos anteriores enredos na terceira parte de Cidades da Noite Vermelha: ao integrá-las na trama final, William S. Burroughs consegue não só desfazer qualquer “ilusão naturalista”, que tivessem criado os anteriores enredos, por serem construídos por processos narrativos clássicos, como recria, em compensação, a ilusão de que o texto é um mecanismo que se autorreproduz, deixando um lastro semântico.
 
Esta obra torna bem evidente que a produção literária de William S. Burroughs se encontra, pelo menos numa fase provisória, numa situação sem saída criativa. Mas essa não será a situação de todo um conjunto de romancistas que, nas décadas de sessenta e setenta, se preocuparam em especial com uma reflexão sobre a linguagem e as técnicas narrativas, subvalorizando os registos especificamente dramáticos?
 
Quanto a Jack Kerouac, essa necessidade de fuga, de libertação de um quotidiano programado, determinou que a sua obra rejeitasse a especificidade do “literário” (entendido nos limites poéticos e estilísticos modelados pelas obras de Henry James e de Hemingway, autores, por ele, menosprezados): a escrita tinha que se tornar o instrumento imediato e testemunhante de um existir “poético”, isto é, emocionalmente intenso, e o romance uma torrente de palavras que pretendia apanhar o pulsar da vida, transformando-se no monumento épico do momento (os antecedentes desta escrita estão, como é bem explícito, em Céline e em Henry Miller, por exemplo).
 
The Dharma Bums (traduzido para português com o título infeliz de Os Vagabundos da Verdade), o seu terceiro livro, é, como a maioria da restante obra deste autor, a fixação romanesca de material autobiográfico: neste caso, as suas convivências com o budismo zen.
 
Mas, para lá da especificidade do enredo, o que é hoje realçante neste livro, como no já clássico On the Road, é ainda conseguir fascinar-nos, mesmo sofrendo de evidentes ingenuidades narrativas, por personagens que estabeleciam novos modos de viver, por imortais adolescentes sempre disponíveis à descoberta e à invenção de um outro sentir. E, inegavelmente, estes romances de Kerouac, ao dimensionarem de um modo poético todo um conjunto de sinais da civilização urbana, transformaram os Estados Unidos no paraíso daqueles que ainda acreditam ser possível o nomadismo como forma de estar.
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
Título: Cidades da Noite Vermelha
Autor: William S. Burroughs
Tradutor: Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Editor: Difel
Ano: 1984
320 págs., esg.
 
 
Título: Os Vagabundos da Verdade
Autor: Jack Kerouac
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Minerva
Ano: 1984
303 págs. , esg.
 


 

 
 
 
 
 
 

 


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