segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

CHRISTOPHER ISHERWOOD




AS DIÁFANAS MÁSCARAS


Um caso exemplar de valorização distinta de uma obra, conforme se vão alterando o contexto sociocultural e o modo de interrogar a literatura por parte do receptor, é o da produção literária de Cristopher lsherwood. Quem comparar histórias da literatura inglesa - feitas até aos anos setenta - notará que, quase por unanimidade, todas elas consideram que a ficção, até aos finais dos anos quarenta, deste autor tem o relevo e a qualidade narrativa da de Graham Greene, Evelyn Waugh ou George Orwell (para referir apenas escritores da sua geração). Mas salientam também que, após a sua fixação na Califórnia, a obra de lsherwood se subjugou ao fascínio das filosofias orientais e à problemática homossexual, deixando de ter o mesmo interesse e importância. E chega-se ao ponto, na maior parte dos casos, de nem sequer se referir nenhuma obra realizada a partir dessa altura - isto é, durante quase cinquenta anos de actividade literária.

No entanto, as recentes gerações de leitores e críticos começaram a encarar de forma diferente a produção romanesca de lsherwood, não aceitando aquela demarcação. Quando anteriormente se destacava a dimensão política da sua obra, associando-a à dos escritores que, entre as duas guerras, tiveram preocupações semelhantes, esquecia-se quais as motivações mais ou menos explícitas que o levaram a esse tipo de intervenção literária. Hoje, após a morte recente de lsherwood, torna-se bem claro que aquelas eram originadas por uma vigorosa reacção ao farisaísmo de uma época (mais do que de uma sociedade) e à incapacidade desta em compreender comportamentos que se esquivassem à norma (em especial a homossexualidade).

Porém, já neste período, o que era mais original na sua narrativa era uma sensibilidade e um “olhar” bem peculiares, no contexto literário da época, sobre as éticas sociais, os comportamentos e as relações intersubjectivas. A abertura posterior dos costumes facilitou que a obra de lsherwood se orientasse, na chamada “fase americana”, para uma temática mais subjectiva e pessoal que permitiu a clarificação desse “olhar” com que, inegavelmente, o leitor actual mais se identifica.


Facilmente se consegue caracterizar no seu segundo romance, O Memorial - pertencente, por conseguinte, ainda à fase prestigiada da produção de lsherwood - , agora traduzido, esta forma de sensibilidade e de “olhar”.

O romance procura entender, através da descrição da evolução das diversas ramificações de uma família, as mutações comportamentais e civilizacionais que a I Guerra Mundial provocou na sociedade inglesa. O autor parte do princípio que esta guerra esgarçou o tecido social e que o confronto com a morte originou, também dentro da sociedade, grupos de “vencidos” e de “vencedores”, de gentes que se resignaram a ser dirigidas pelo tempo ou que com ele se afirmaram.

De modo bem interessante, esta temática reflecte-se na própria estrutura de O Memorial. Este divide-se em quatro “livros”, situados em distintos anos da década de vinte, mas sucedendo-se de forma não cronológica; as personagens são introduzidas na trama sem apresentações prévias e o leitor é, por isso, obrigado a gradualmente estabelecer as conexões familiares e afectivas; por fim, cada um dos capítulos, em que se subdividem os “livros”, centra-se numa das personagens, o que permite entrecruzar as perspectivas com que cada uma delas se relaciona com as outras. Estas soluções narrativas acentuam a sensação de estilhaçamento da acção que se adequa na perfeição ao clima psicológico e social que a obra deseja exemplificar.

Contudo, as personagens de O Memorial parecem, mesmo quando estão na plenitude da sua vida, eternos adolescentes em constante desajustamento e necessitando de simular as suas angustiantes interrogações num prazer imediatista e “ligeiro” de viver (note-se que não é apenas neste tipo de caracterização das personagens que existe uma curiosa similitude entre a obra de lsherwood e a de F. Scott Fitzgerald). De facto, todas estas personagens parecem ter a consciência de que a dimensão mais trágica da vida é só existirem ilusórias tragédias. Tudo é contingência, fluidez do tempo, e daí o sorriso amargo com que as personagens de O Memorial encaram o destino: os suicídios são falhados ou perdem o sentido que se lhes quer dar, a morte abrupta dos entes amados transforma a viuvez em formas de comiseração que favorecem o desejo de poder e a dor e os orgulhos feridos transfiguram-se em prazeres e em liberdades. Mesmo os afectos são jogos e a existência matiza-se em simulações que, de tão intensamente assumidas, se tornam a palpável realidade em que se encaixa as relações entre as pessoas.

É esta convicção de lsherwood de que os comportamentos são “máscaras” que, de tão coladas a pele, com ela se (con)fundem, que o afasta dos modos de formular as relações intersubjectivas por escritores de gerações anteriores, como, por exemplo, D. H. Lawrence. Assim, se, por um lado, lsherwood entende que aquelas têm sempre tendência para se afirmar pelos códigos estabelecidos pela civilização, por outro, manifesta uma radical desconfiança relativamente aos comportamentos: eles são sempre o sinal explícito de um inevitável compromisso entre pulsões e contingências sociais.

Não há dúvida que a passagem do tempo só tem comprovado a modernidade de um romance como O Memorial. Mais que não seja, porque o labirinto mediático, em que hoje se vive, tornou evidente aquilo que o “olhar” de lsherwood prenunciava: não existe nenhuma forma de amor ou de morte exterior às linguagens que socialmente se constroem.


Publicado no Público em 1990.



Título: O Memorial
Autor: Christopher lsherwood
Tradução: Maria do Rosário Sousa Guedes
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
254 págs., € 8,46



LARS GUSTAFSSON 1




O MAL ABSOLUTO



Conforme se vai lendo História Com Cão, o último romance de Lars Gustafsson traduzido para português, percebe-se que este possui uma “tonalidade” que o demarca na produção literária contemporânea a que habitualmente se tem acesso no nosso país; e o leitor que esteja um pouco familiarizado com os romances deste autor (as Edições Asa já lhe traduziram e editaram três livros) sabe que é comum às suas restantes obras. Porém, de um modo contraditório, assalta também ao leitor a dúvida (talvez irresolúvel) de saber se essa “tonalidade” é de facto específica da produção narrativa do escritor ou característica do contexto cultural de onde emana, já que se lhe pressente alguma sintonia com o “tom” de outras manifestações artísticas (literárias ou não) originárias da Suécia.

Seja como for, Lars Gustafsson é hoje não só o principal “embaixador” desta literatura periférica, como está estreitamente ligado à definição do seu “mainstream”, pelo trabalho crítico e ensaístico que exerce desde os anos cinquenta e, em particular, pela obra romanesca que começou a construir a partir da década seguinte. Além disso, o “diálogo”, nem sempre pacífico, que estabeleceu ao longo de mais de trinta anos com o seu amigo, e escritor, Sven Delblanc (falecido no ano passado), sobre todos os aspectos da realidade sueca, é hoje considerado como uma das mais estimulantes reflexões produzidas no seio da cultura do seu país durante este século.

Confesso que, de início, receei sobre o resultado deste romance, ao constatar que se passa em Austin, no Texas (cidade, em cuja universidade, Lars Gustafsson, há muitos anos, lecciona), pois estava convencido que a “tonalidade” referida era nórdica em demasia para que fosse transponível para outra área cultural e geográfica, sem parecer artificiosa. No entanto, Lars Gustafsson resolve muito bem este “risco” através da criação de um conjunto de situações que integram bem o leitor nos costumes de uma típica cidade média americana. E, algumas delas, são verdadeiras preciosidades literárias: recordo, por exemplo, o pormenor, bem humorado, da personagem principal, em noites de insónia, “dialogar” com a sua máquina limpadora de fundos de piscina…

Mas, por outro lado, talvez seja essa “mudança de paisagem” que torna mais evidente algumas das constantes narrativas que tipificam a produção literária deste autor.

Primeiro, a necessidade de uma ambiência de certa “semi-ruralidade”. Como se esse pequeno cosmos, com relações de vizinhança bem definidas, contivesse toda a problemática do mundo... Por isso, as notícias vindas de “outros universos” só servem para confirmar a sintonia que existe com esse pequeno cosmos retratado. Assim, em História Com Cão, as catástrofes naturais e sociais, de que a personagem principal vai tendo conhecimento, estão em perfeita consonância com aquilo que descobre, em pequenos sinais, no seu mundo privado: a crescente presença, por todo o lado, de um irremediável “mal absoluto”.

A segunda, o tipo de personagem principal que centraliza toda a estrutura narrativa: é sempre uma figura de cinquenta/sessenta anos, culta ou, pelo menos, com uma séria capacidade de reflexão sobre os mais ínfimos e efémeros pormenores do quotidiano e que, perante a diversidade da vida, tem sempre uma atitude de humildade quase religiosa… mas bem temperada de ironia.

Por último, todo o romance se centra, como se fosse uma monografia, sobre um tema de cariz filosófico, tratado de um modo exaustivo (deve-se a este aspecto o reconhecimento de que Lars Gustafsson é, antes do mais, um narrador-filósofo), e que ressalta das circunstâncias mais triviais da vida. É esta característica que permite estabelecer um dos contornos identificadores da sua obra: uma espécie de “densidade leve”, resultante de uma reflexão, integrada no mais simples e banal quotidiano, sobre questões determinantes da existência.

O carácter explícito em excesso destas componentes narrativas comprova que História Com Cão não é a melhor obra de Lars Gustafsson (tendo à mesma todos estes ingredientes, não há dúvida que o melhor romance deste autor continua a ser A Morte De Um Apicultor: a reflexão, verdadeiramente sentida - dando a este termo a sua significação mais “radical” -, sobre o papel que a “dor” tem na nossa existência, dá a esta obra uma dimensão pungente que a torna inesquecível). Em duas linhas, descreve-se a sua situação dramática nuclear: uma noite, Erwin Caldwell, juiz de falências em Austin, quando vai colocar o lixo na rua, vê um cão que, como em noites anteriores, ao tentar comer alguns restos, despeja o caixote, espalhando o conteúdo no seu jardim; perante a situação, perde as estribeiras e esmaga-lhe a cabeça à pancada. Este acontecimento desencadeia na personagem principal, figura com uma vida pacata e serena, um conjunto de dúvidas que passa a ocupar-lhe, de um modo obsessivo o seu espírito e ao qual parece reconduzir todos os pequenos actos e situações do quotidiano: “Se Deus existe, qual é então a origem do mal? Se Deus não existe, qual é então a origem do bem?” Será que “as concepções morais são apenas antropologia, como a etiqueta à mesa”?

Acredito que, apresentadas desta forma, estas questões possam parecer um pouco “démodés”, desligadas do frenesim do nosso mundo. Mas a capacidade narrativa de Lars Gustafsson, ao revelar como elas transparecem nas mais banais situações, permite-nos compreender como são determinantes, pois que nada, ao nível do comportamento pessoal ou da concepção que se faça do mundo, terá sentido sem a sua, mesmo que ilusória, resolução privada.


Publicado no Público em 1996.


Título: História Com Cão
Autor: Lars Gustafsson
Tradução do Sueco: Ana Diniz
Ano: 1996
Editor: Edições Asa
221 págs., € 10,47





quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

GONZALO TORRENTE BALLESTER



UMA FICÇÃO VORAZ



Em vários textos ensaísticos, Gonzalo Torrente Ballester sempre defendeu a novela cervantina como um paradigma narrativo inesgotável, encarando-a fundamentalmente como um exercício lúdico e cognitivo, um campo de “significação verbal” cujo principal recorrente é a produção escrita anterior. Devido, talvez, a esta forma de entender a ficção, a obra narrativa deste autor, ao longo das suas diversas fases, nunca se encontrou de todo ajustada às correntes estéticas dominantes da literatura espanhola do pós-guerra: nem na sua fase realista (refiro-me em particular à trilogia Los Gozos y las Sombras) existiu um objectivo linearmente detectável de problematização social ou de empenhamento ideológico, nem na fase de experimentação das estruturas narrativas houve um afastamento radical dos modelos ficcionistas clássicos (veja-se Off-side).

De certo modo, é só na fase conhecida por “trilogia fantástica” - iniciada, já na década de setenta, com La Saga/fuga de J.B. e que inclui o romance, agora traduzido, Fragmentos do Apocalipse e La Isla de los Jacintos Cortados - que Ballester se aproximou mais do paradigma cervantino. De facto, esta fase, resultante de um longo processo de maturação estética e narrativa, foi em geral assumida como charneira na recente literatura espanhola, visto que antecipou alguns princípios narrativos que os actuais ficcionistas protagonizam e procuram afirmar: ironia, valorização da intriga e da construção da personagem, assunção integral da especificidade do universo verbal da ficção, intertextualidade.

Em todos estes aspectos, Fragmentos do Apocalipse revela-se exemplar. O romance é constituído por um “diário de trabalho” onde um narrador/romancista vai descrevendo o difícil trabalho de elaboração de um romance, da construção do seu cenário e de como lhe “aparecem” as diversas personagens e estas se vão encadeando no jogo labiríntico das situações plausíveis. Trata-se, por conseguinte, de um metaromance em que Ballester reflecte sobre os mecanismos da construção narrativa e sobre a forma como a ficção se relaciona com a experiência do autor, isto é, com a própria realidade.

O próprio Ballester afirma, no prefácio à 2ª edição castelhana de Fragmentos do Apocalipse que a versão portuguesa reproduz, que pretendeu fazer este romance o mais realista possível e, se ele parece fantástico, é porque a realidade de um ficcionista é fantástica, dada a sua componente imagética.

Porém, mesmo nesta afirmação, já sobressai a profunda ironia com que é construído todo o romance. Senão, vejamos: se, de início, há algumas alusões que permitem uma identificação entre o autor e o narrador, rapidamente se percebe que essa identificação é ilusória. O narrador só existe no romance, o cenário por onde deambula é aquele que ele constrói e “diz”, as figuras com que se encontra são as personagens que entram no seu romance e ele inventa (ou “rouba” a obras alheias): o narrador/romancista é, por conseguinte, como tudo o resto no romance, pura “significação verbal”.

Cria-se, assim, um exercício vertiginoso: Fragmentos do Apocalipse é um romance constituído por um “diário de trabalho” que, por sua vez, insere um romance. Note-se que, a maior parte das vezes, não existe nenhuma distinção entre a “realidade’ do narrador/romancista e a “realidade” que ele constrói no seu romance. Conclusão: Fragmentos do Apocalipse estrutura-se numa “mise en abyme”, onde cada elemento referencia ou remete para outros elementos do romance ou para situações características da história literária ou cultural.

Por isso, creio que não é de espantar que se faça, em complemento, mais a seguinte afirmação: por este romance perpassa em alusões, trocadilhos, integrações de diverso nível (até mesmo, como já é comum no autor, ao nível estilístico), as mais importantes obras da literatura espanhola e, entre elas, muito em particular, essa novela, determinante para a ficção contemporânea, que é Niebla de Unamuno. Pode-se mesmo entender Fragmentos do Apocalipse, em certa perspectiva, como um prolongamento - ou uma resposta crítica, como o próprio Ballester prefere - àquela obra.

Dentro das estimulantes e inúmeras questões que Fragmentos do Apocalipse coloca, creio que convinha referenciar algumas: primeiro, que qualquer personagem ficcional (incluindo o próprio autor como determinante ‘personagem” literária) não é inventada, mas mero “puzzle” de “encontros” reais e literários; segundo, que o romancista é um simples jogador no xadrez das situações imaginadas ou, como o próprio Ballester metaforiza, um “Mestre das Pistas Que Se Bifurcam”; terceiro, que o autor, como tal, só existe com e dentro da obra, não sendo fácil (nem, de certo, 1ícito) procurá-lo em qualquer “exterior”; quarto, que a ficção não é um resquício, inevitavelmente deformante, de qualquer realidade, mas, pelo contrário, é a ficção que “devora” a realidade, fazendo com que esta, com o tempo, não tenha existência exterior ao “verbo”. Observa-se, em relação a este ultimo aspecto, que Fragmentos do Apocalipse se constrói em redor da criação de um “romance falhado” (o que, a seu modo, é bem arguto sobre a condição estrutural do romance como género) cuja “realidade” se volatiliza no seu final, como sucede, de forma não explícita, quando se encerram as páginas de qualquer romance.

Por fim, convinha salientar que poucas vezes, na edição portuguesa, se encontra, infelizmente, uma tradução que esteja à altura da dificuldade e da importância de obras como Fragmentos de Apocalipse. Não é este o caso: o leitor está de parabéns porque o tradutor revela não só uma louvável competência literária, em particular na reprodução do humor, bem “sui generis”, de Gonzalo Torrente Ballester, como um cuidado bem ajustado em situá-lo nas infindáveis referências à cultura espanhola, imprescindíveis para uma correcta compreensão de uma obra que é determinante na cultura contemporânea e, ao mesmo tempo, uma aprazível leitura.

Publicado no Público em 1991.


Título: Fragmentos de Apocalipse
Autor: Gonzalo Torrente Ballester
Tradutor: António Gonçalves
Ano: 1991
Editor: Editorial Caminho
307 págs., esg.


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

KIRSTY GUNN



A ÁGUA DA INFÂNCIA


Um dos elementos que mais tem contribuído para o vigor e dinamismo da literatura de expressão inglesa no corrente século tem sido, sem sombra de dúvida, a forma como consegue integrar a produção literária de autores oriundos de países pertencentes à antiga Commonwealth: basta consultar as “short-lists” dos mais importantes prémios literários ingleses para constatar este facto. É certo que esta situação é ainda uma sequela do colossal império que foi o Reino Unido e de continuar, como grande potência económica, a atrair e a formar a “inteligentsia” dos Estados que surgiram a partir da II Guerra Mundial. É neste contexto que se deve compreender a opção de muitos autores originários desses países em residir em Inglaterra e de adquirir a nacionalidade britânica. Mas mesmo em relação aos autores que resolveram permanecer no país de origem, a edição inglesa continua a ser o principal veículo da sua afirmação literária, dado o papel hegemónico que mantem, directamente ou através de sucursais ou de empresas geminadas, na publicitação de obras oriundas das antigas colónias.

A esta “absorção” cultural, não escapam os autores de países, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, em que existem níveis elevados de desenvolvimento económico e cultural. Repare-se, por exemplo, no caso de Katherine Mansfield. De facto, será mais determinante, para a compreensão da obra desta notável contista, saber que nasceu na Nova Zelândia ou que pertenceu aos círculos literários de Virginia Woolf e de D.H. Lawrence? Mesmo nos dias de hoje, em que se reconhece existir, tanto na Austrália como na Nova Zelândia, uma vida literária significativa, onde proliferam prémios, revistas e instituições, a consagração dos seus autores mais importantes, como C. K. Stead, Janet Frame, Alan Duff ou Patricia Grace, continua a fazer-se através da vida cultural inglesa.

Não admira, por isso, que, seguindo as pegadas dos seus antecessores, uma recente escritora neozelandesa, Kirsty Gunn, que despontou literariamente na década de noventa, com esta novela, Chuva, que agora é apresentada aos nossos leitores, o tenha efectuado em Inglaterra, onde ainda hoje vive.

Chuva é uma novela que faz transparecer uma imagem de fragilidade, onde a trama parece estar permanentemente a liquefazer-se, a escapar-se entre os dedos de quem a lê. De facto, o peso do elemento “água” nesta curta narrativa é tão constante, está tão presente em todas as suas páginas, que a própria acção parece desenrolar-se de uma forma ondulada, ao sabor das sinuosidades das elipses, criando uma cortina líquida que, de forma intencional, “turva” o olhar do leitor. Para este resultado contribui um acentuado cuidado estilístico - que se revela na criatividade da sua adjectivação e na depuração lírica das suas breves metáforas - que incute a esta obra uma qualidade poética muito peculiar.

A novela de Kirsty Gunn centra-se no sentimento de profunda amizade, de paixão quase materna, que a narradora, uma criança no início da adolescência, tem pelo irmão de cinco anos e nos seus solitários jogos infantis, em redor do lago próximo de sua casa, com que fugiam ao “olhar” adulto, a sonhar com uma independência selvagem, liberta de qualquer constrangimento, e que eles sabem ser uma utopia inconcretizável.

O universo de Chuva estrutura-se em redor de duas ideias-força fundamentais: a primeira, é a de que existe entre o universo infantil e adolescêntico e o universo adulto um acentuado grau de incomunicabilidade, resultante de visões e interpretações do mundo diferentes e de códigos de comportamento que são ilegíveis de parte a parte; a segunda, é a de que existe, na criança, uma sensualidade difusa, quase pré-sexual, e que é na tepidez dessa “água” que não só se fermenta a sensibilidade infantil, como é através dela que a criança consegue atingir aquela consonância com a natureza que lhe transmite uma auréola de esplendor divino. Neste contexto, a descoberta da sexualidade provoca o desaparecimento desta sensualidade sem objecto, rompendo em definitivo com a referida consonância e deformando o olhar que a narradora tem sobre o seu irmão. No fundo, a descoberta da sexualidade desencadeia o real processo de morte do corpo. Daí que a sexualidade apareça nesta novela como uma culpa desejada, um vórtice que os sentidos suplicam, mas que transforma a infância num paraíso perdido.

Chuva é, sem dúvida, uma das mais belas e interessantes obras que apareceu nos últimos tempos no nosso país sobre a infância. Grande parte da sua comovente beleza advém do pudor com que afronta os sinais trágicos da vida. Neste sentido, as páginas em que narra a descoberta da sexualidade por parte da personagem principal ou aquelas em que se desfecha o clímax da acção são exemplares de contenção emotiva, de tratamento subtil de tudo o que é insustentável para a sensibilidade infantil. Pena é que a tradução, algumas vezes, se deixe ficar demasiado presa à sintaxe inglesa e que, aqui e além, revele opções semânticas que não são as mais ajustadas.

Publicado no Público em 1999.


Título: Chuva
Autor: Kirsty Gunn
Tradutor: Margarida Vale de Gato
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
117 págs., esg.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FRED UHLMAN




AS AFINIDADES IRREDUTÍVEIS



Muitas vezes, os motivos e as condições do aparecimento de um livro, sem determinarem o seu sentido e valor, são acontecimentos que se inscrevem como estigmas no “corpo” da obra e o seu conhecimento contribui inequivocamente para que ela obtenha a sua afirmação plena.

Fred Uhlman viveu cerca de quarenta anos “habitado” por esta história que a edição portuguesa apelou de O Reencontro. Judeu alemão, Fred Uhlman nasceu em 1901 em Estugarda. Já advogado rural, recebeu em 1933 um telefonema de um amigo nazi, aconselhando-o a fugir de imediato da Alemanha. Sem voltar a ver os pais (que vão morrer em Auschwitz), Uhlman, depois de deambular um pouco pela Europa perseguido por todo o tipo de dificuldades, fixa-se em Inglaterra. Aí, nauseado com tudo o que se relaciona com a cultura alemã, resolve abandonar todas as suas anteriores actividades e, com as dificuldades de um homem já formado, aprender a língua inglesa. Enquanto a não domina, começa a trabalhar como desenhador e pintor. Só em 1960 se considerou em condições para redigir esta obra, elaborando, como refere Arthur Koestler na sua introdução, uma “pequena obra-prima” sobre o “tempo em que se derretiam cadáveres para fazer o sabão que mantinha limpa a raça dominante”.

O Reencontro narra a relação de amizade, nos anos de 1932/33, entre dois liceais, a do judeu Hans Schwarz por um descendente de uma das mais importantes famílias aristocráticas alemãs, Konrad vou Hohenfels. Mas esta relação, estabelecida com a capacidade de admiração e fascínio da adolescência, vai ser marcada pela diferença social e pelos preconceitos rácicos, pela ascensão do nazismo, e, por fim, brutalmente interrompida pelo exílio a que Hans Schwarz é impelido. E neste aspecto, na sua extrema simplicidade narrativa, O Reencontro é modelar na forma como encadeia a interferência da História na história privada e como revela que elas são, no fundo, as duas faces de uma mesma moeda.

Mas a singeleza dos meios utilizados na narração desta relação entre dois jovens, feita de uma imediata e intensa empatia e da cumplicidade resultante da descoberta em comum das emoções, e, além disso, de como ela consegue perdurar, após a adversidade imposta pelo nazismo, muito anos depois, transforma O Reencontro numa “história exemplar”, com uma dimensão quase mítica, da catástrofe política e social que foi aquele regime, mas, em particular, desse sentimento dolorosamente frágil que é a amizade.

Por outro lado, tanto a enorme paixão pela terra alemã, pela “Heimat”, revelada por Hans Schwarz (note-se que toda a novela é narrada por esta personagem como se fizesse, largos anos depois, uma rememoração nostálgica desta relação e das deambulações que ela propiciou pela Floresta Negra, pelas margens do lago Constança ou pelos arredores de Estrasburgo), como a sua posição de se assumir antes do mais como suábio, depois alemão e só por fim como judeu, ou ainda, mais tarde, a sua repugnância em contactar com qualquer alemão, tal é a ferida que sente por estes terem construído Auschwitz, demonstra que aquela personagem tem fortes traços analógicos com o próprio Fred Uhlman, ao ponto de transformar O Reencontro numa espécie de autobiografia idealizada.

Por fim, saliente-se alguns efeitos de encenação dramática particularmente eficazes e, por conseguinte, inesquecíveis, desta obra: é o caso do modo como é descrita a entrada na sala de aula de Konrad von Hohenfels, quando Hans Schwarz o vê pela primeira vez, ou então, quando esta personagem descobre, muitos anos depois da separação, o destino do seu amigo, situação esta que transfigura de forma trágica toda a relação narrada e todo o contexto social e político que a envolve.



Publicado no Expresso em 1989.



Título: O Reencontro
Autor: Fred Uhlman
Tradutor: Paula Vitória
Editor: Presença
Ano: 1989
90 págs. € 8,31





quarta-feira, 7 de novembro de 2012

PAUL BAILEY



A SOMBRA DO PAI



Uma das características das literaturas deste século da Europa Central e do Leste é o papel negativo que constantemente nelas assume a figura do pai. Alguma interpretação psicanalisante dirá que esse papel negativo é compreensível, uma vez que considera que a “deglutição” do pai está na génese da ficção, no sentido em que esta é a arte da “ocultação” das origens. Porém, no caso das literaturas referidas, creio que a questão é mais simples e objectiva: as sociedades que lhe deram origem têm uma má relação com a História imediata e a corporização dessa época ergue-se, como é natural, na figura do pai. Foi o pai que a construiu, que a constituiu. Basta recordarmos a dimensão sociológica dos factos sinistros que envolvem a II Guerra Mundial, as ditaduras estalinianas e a Guerra Fria para compreendermos que a radicalidade destas situações seria insustentável sem um “julgamento” das gerações posteriores e que tem sido esse, entre outras artes exorcistas, um dos papéis decisivos da narrativa deste século.

Não é tão comum, no entanto, que semelhante temática apareça na literatura inglesa, como sucede com este romance de Paul Bailey, intitulado Os Pecados dos Nossos Pais (versão infeliz - porque abusivamente explícita - de uma obra que se chama, na edição original, Kitty & Virgil; deve reconhecer-se, contudo, que este título tem pouco valor comercial e que, além disso, a intenção do autor - apresentar duas personagens que, na aparência, são comuns a muitas outras - se perde no nosso país; de qualquer forma, haveria decerto outras hipóteses mais em sintonia com o trabalho de tradução que é, em todas as restantes perspectivas, excelente). Paul Bailey, com uma obra iniciada na década de setenta e constituída, entre outros trabalhos, por meia dúzia de títulos de ficção, é um autor com um reconhecimento um pouco “secreto” em Inglaterra, tendo, porém, entre alguns prémios, já conseguido ser, por duas vezes (com os romances Peter Smart’s Confessions e Gabriel’s Lament), finalista do Booker Prize. Saliente-se que este último romance, agora publicado no nosso país, é, por unanimidade, considerado pela crítica inglesa como a obra mais interessante que o autor até hoje publicou.

Segundo declarações do próprio autor, Os Pecados dos Nossos Pais pretende ser uma homenagem ao povo romeno. Com esse intuito, Paul Bailey viajou demoradamente pela Roménia e pelo Leste europeu, levando cerca de quatro anos a redigir este romance. Nesta perspectiva, a obra concluída é, de certo modo, imprevisível e original. Porque esta “homenagem” deu origem a uma história de amor, elaborada num estilo e com uma estrutura quase clássicos, entre uma inglesa de meia-idade, vivendo do trabalho de preparação “editorial” de biografias, e um romeno, poeta e vagabundo, a viver em Inglaterra e fugido do regime de Ceausescu.

Porém, o que, de imediato, fascina neste romance de Paul Bailey é a forma como concilia e mescla tragédia e ironia, transformando-a numa obra de uma saborosa “ligeireza” que pondera e descreve situações graves e muito dolorosas. Neste sentido, parece que sobre Os Pecados dos Nossos Pais paira, à distância, as sombras tutelares de Milan Kundera e Bohumil Hrabal. Contribui, sem sombra de dúvida, para esta visão global da obra, um estilo que controla, pela farsa, o excesso de dramaticidade de certos momentos, mas, em particular, a criação de um conjunto de personagens secundárias que tingem de uma sábio cepticismo irónico a sinuosidade das suas existências: é o caso das deliciosas criações literárias que são as figuras do mordomo-amigo do pai de Kitty ou da dona da pensão, ex-cantora de ópera, em que Virgil mora.

De forma paradoxal, este romance, que se conclui com um suicídio e uma história amorosa abortada, é um “livro feliz”, já que as suas personagens transmitem, mesmo dilaceradas por sinistros fantasmas vindos do passado, o sentimento de uma intensa euforia pela vida. O amor, tal como nos é apresentado em Os Pecados dos Nossos Pais, seguramente que é incapaz de redimir ou de “salvar”, mas tem a capacidade, não despiciente, de dar um toque de jovialidade em destinos que já estão determinados antes de ele brotar. A própria situação, em que as personagens principais se “descobrem” uma a outra, parece ter os “sintomas” do percurso da sua história amorosa: Kitty está a acordar da anestesia, após ter sofrido uma histerectomia, quando dá de caras com o sorriso de um servente hospitalar, Virgil, que, junto à sua cama, lhe diz, com um sotaque estranho, que nunca tinha visto nenhuma mulher a dormir tão bela.

Todo o romance se estrutura no contraste de duas civilizações e dos comportamentos emocionais que, de um modo complexo, delas emana: por um lado, o modo de sentir britânico, com o seu gosto pelo cosmopolitismo, a sua visão “imperial” das outras civilizações, um quotidiano marcado pela urbanidade das existências; por outro, a Roménia, com o seu nacionalismo “jovem”, onde se faz sentir o peso da ruralidade e das tradições orais milenares, com um quotidiano marcado pelo medo e pela repressão. Ou, por outras palavras, Kitty e a contenção, como forma de se esforçar por depositar o “pé” das emoções e assim alcançar uma imagem de definitiva dignidade no seio da catástrofe; ou Virgil e o abandono à emoção, como forma de vivificar a intensidade poética do momento, fazendo dessa exploração uma forma de vida (por exemplo, são interessantes, até numa perspectiva ideológica, as considerações de Virgil sobre a repugnância que lhe provoca o “ser vigilante”).

É dentro deste contraponto civilizacional que deve ser entendido o estigma que, para as duas personagens principais, constitui o percurso dos seus pais. Tanto o pai de Kitty como o pai de Virgil deixaram atrás de si um rasto de destruição, como resultado da forma como a História, com os valores e princípios que segregou em cada contexto civilizacional, “trabalhou” as suas almas, transformando-os em monstros de frivolidade. A leviandade amorosa do pai de Kitty ou o aberrante comportamento “camaleónico” do pai de Virgil parecem, ao nosso juízo distante de leitores, como “crimes” abissalmente (e talvez objectivamente) distintos. Mas, no contexto da “história privada” de cada uma destas personagens, tiveram os mesmos efeitos devastadores, já que atingiram um poder similar de amputação sobre a sua capacidade de, em plenitude, conseguirem sentir e sobreviver.

No fundo, talvez Os Pecados de Nossos Pais venha reproduzir aquilo que a literatura deste século tem repetido de um modo incessante: que todos nós, quer queiramos ou não, nada mais fazemos, ao longo da vida, do que tentar fugir debaixo da sombra tutelar do pai, como forma de conseguir libertar-se da sua tenaz sufocante e plenamente respirar.

Publicado no Público em 2000.



Título: Os Pecados dos Nossos Pais
Autor: Paul Bailey
Tradução: José Vieira de Lima
Editor: Asa
Ano: 2000
286 págs., € 3,50




terça-feira, 30 de outubro de 2012

CARMELO SAMONÀ




A (A)NORMAL IRMANDADE



Há livros que são verdadeiras preciosidades. Como é evidente, pelo cuidado posto na edição. Mas, antes do mais, porque aparecem, de modo intrigante, à revelia das tendências dominantes do mercado editorial e nos revelam textos saborosamente imprevisíveis: é o caso deste Irmãos de Carmelo Samonà, um livro de uma rara e estranha beleza.

O autor, piemontês, especialista em literatura espanhola na Universidade de Roma, afirmou-se, de modo tardio, como ficcionista com este mesmo texto.

O enredo de Irmãos descreve-se de forma sucinta: trata-se de um relatório (?) de uma longa relação entre dois irmãos, vivendo sozinhos numa ampla casa, e em que o mais novo sofre de uma prolongada doença psíquica. Com um labor minucioso e atento, o irmão mais velho, como narrador, anota dados e informações sobre essa relação e em particular sobre o comportamento do doente, juntando interpretações e análises esparsas, descrevendo difusamente situações.

Emana, no entanto, deste texto uma perplexante ambiguidade que leva o leitor a pressentir, motivado até pela sua qualidade estilística, ramificações e sentidos ocultos. Ao ponto de alguns críticos terem interpretado Irmãos como uma espécie de fábula esotérica sobre as relações políticas e sociais da Sicília com a Península Itálica...

Mas, com rigor, pode afirmar-se que, tendo por base uma intensa relação afectiva, Irmãos analisa as relações discursivas e comportamentais entre “normalidade” e “anormalidade”, trazendo aliciantes pistas sobre os limites e as interpenetrações destes comportamentos.

No discurso da normalidade, enunciado aqui pelo narrador, há sempre uma tendência para este se assumir, perante a anormalidade, como uma consciência “paternal”, resultante da sua capacidade de autoanálise e da convicção que esta não existe no discurso que se lhe opõe. Mas nessa mesma assumpção transparece também a principal orientação daquele discurso perante o “anormal”: descobrir-lhe sentidos, torná-lo legível, em resumo, eliminar as diferenças que instituem a anormalidade e tentar reduzi-la a um típico subgénero da norma. Irmãos é, de certo modo, a cartografia dessa tentativa, obrigatoriamente fiascada, mas, por razões afectivas, necessária e continuada de forma perseverante.

Mas esta simples constatação ilude a riqueza de um texto que, mediando sempre entre a reflexão teórica e poética, consegue iluminar de um lirismo muito particular todo um conjunto diversificado de observações. As relações da doença com o espaço (o modo como, a níveis diversos, esta se espalha pelos interstícios familiares da casa ou ainda como se manifesta na rua num delírio exploratório), a importância da invenção narrativa como “canalizador” da alucinação, o mimetismo da normalidade como sintoma do agravamento conjuntural da doença, mas, em particular, o esforço de desdobramento do narrador para, de um modo solidário, acompanhar ou perseguir as permanentes “viagens” do seu irmão, são descritas com tanto rigor e sensibilidade que transformam Irmãos numa das mais belas e comoventes obras de ficção traduzida que a nossa edição nos revelou no ano transato.


(Publicado no Expresso em 1988).



Título: Irmãos
Autor: Carmelo Samonà
Tradução: Isabel Martins Tomé
Editor: Bertrand
Ano: 1987
129 págs., esg.






domingo, 28 de outubro de 2012

PAUL AUSTER




VIDA DE CÃO



Paul Auster é um dos poucos autores norte-americanos que obteve um tratamento privilegiado em Portugal: todos os seus livros de prosa - e já não são tão poucos quanto isso - estão traduzidos e editados no nosso país. Tal se deve ao inquestionável mérito literário do autor, mas, como é óbvio, não é esta a principal razão para este facto. O sucesso entre os leitores portugueses de Paul Auster deve-se, antes do mais, a uma certa consonância de sensibilidade. Na verdade, é já bem conhecido que a formação literária de Paul Auster foi feita em boa parte na Europa e em redor dos seus autores, em particular, dos franceses (deve ser salientado o seu trabalho de tradutor, principalmente de poetas contemporâneos franceses - “experiência de formação” que é muito invulgar entre os actuais escritores norte-americanos), como é também bem sabido o peso da francofilia na cultura portuguesa. A importância desta formação é tão notória na obra de Paul Auster que hoje é já consensual afirmar, em especial nos E.U.A., que este escritor é o mais destacado autor “europeu” da literatura norte-americana.

Não admira, por isso, que o sucesso de Paul Auster na Europa tenha sido mais rápido do que no seu país de origem. Efectivamente, pode dizer-se que Paul Auster só deixou de ser um autor apreciado por uma minoria muito restrita nos E.U.A. a partir da realização de Smoke e do relativo sucesso que este filme, pelo seu carácter inovador no quadro do “mainstream” da produção cinematográfica americana, aí obteve. Foi a partir desse momento que os leitores norte-americanos começaram a “descobrir” a anterior obra deste autor e que se lhe abriram de par em par as portas editoriais e da produção cultural em geral.

Percebe-se, assim, os motivos porque foi, passados poucos meses da sua publicação original, traduzido e editado no nosso país o seu último romance, Timbuktu, mesmo sendo do conhecimento público que este não foi consensualmente - como até aqui tinha sucedido com a anterior obra deste autor - bem recebido pela crítica, nem tenha conseguido atingir índices de vendas excepcionais. De facto, desta vez, Paul Auster conseguiu deixar perplexos os apreciadores da sua obra: este romance, tendo em conta as suas anteriores narrativas, é, de certo modo, imprevisível e, por isso, desconcertante.

De imediato, o leitor estranha que a personagem principal de Timbuktu seja um cão. E um banal rafeiro, cuja única peculiaridade é a de ser o companheiro inseparável de um poeta vagabundo, mais ou menos beat, que procura, nas ruas de uma qualquer cidade norte-americana, os sentidos possíveis da sua existência - e bem similar a tantas figuras que, ainda hoje, arrastam, por Nova Iorque ou por S. Francisco, o rasto fantasmagórico do seu esplendor juvenil dos anos cinquenta e sessenta.

Porém, mal se aceite as regras do jogo, o leitor compreende que a aposta narrativa de Paul Auster tem riscos demasiado elevados. Antes do mais, porque existe uma intencionalidade bem delineada: o que se procura não é construir uma fábula de legibilidade imediata, mas tornar credível, em termos romanescos, a história de um cão. Quer isto dizer, que se pretende transpor para a personagem principal de Timbuktu uma certa “humanidade” possível de se aceitar num animal, de molde a que o leitor - humano, “demasiado” humano - possa entender a perspectiva de um cão. No fundo, Paul Auster está, numa estratégia narrativa que não anda muito longe da tradição romanesca norte-americana (ao contrário do que seria previsível nele), a debruçar-se sobre o núcleo temático comum a alguns autores determinantes da literatura contemporânea: a fronteira entre a animalidade e a humanidade ou, por outras palavras, o que existe de “silenciosamente” animal no humano e, ao mesmo tempo, de “sensitivamente” humano no animal.

Ora, é esta aposta narrativa que, de certo modo, falha neste romance: o leitor - mesmo esforçando-se por assumir a maior empatia possível pela obra e pelo autor - nunca consegue aceitar como muito credível a personagem de Mr. Bones (o nome do referido cão) e procura, quase por impulso, descobrir, na sua história, a fábula que o ajude a compreender a vida dos homens no mundo de hoje.

Não estará Paul Auster, com esta aposta, a “esticar” demasiado os limites estéticos do romance, ao introduzir uma personagem canina nos padrões miméticos do romanesco convencional? Não será inevitável que o leitor encare Mr. Bones como humano em excesso para ser cão? De facto, assim sucede; e, a maior prova desta situação, é que o próprio autor não consegue, ao longo do romance, manter um registo coerente com a sua intenção inicial. Ao longo de Timbuktu, Paul Auster sente-se, por vezes, obrigado, na reflexão que a experiência de vida provoca em Mr. Bones, a “humanizá-lo” quase por completo: ao longo de muitas páginas, o leitor só “percebe” na personagem principal uma figura humana metamorfoseada em cão.

Por isso, quer Paul Auster o pretenda ou não, Mr. Bones não passa de uma figura de fábula sobre a condição humana. E, neste sentido, Timbuktu revela-se como uma obra particularmente pessimista. Uma visão pessimista que emana não somente do triste percurso de Mr. Bones, mas, muito em especial, de um princípio subjacente à reflexão que atravessa todo o romance: a condição humana é ontologicamente dependente e só subsiste num quadro de dependência, seja ele de que tipo for.

Timbuktu é, de facto, um romance falhado. Porém, afirmar este facto, não determina o desinteresse total do leitor por esta obra. Existe, como em qualquer outra obra de Paul Auster, páginas de uma beleza pungente e de uma particular argúcia sobre o estatuto humano nos dias de hoje e, em particular, sobre essa linha de demarcação, mais presente do que é costume imaginar, em que conflui o animal com o humano.


Publicado no Público em 2000.



Título: Timbuktu
Autor: Paul Auster
Tradução: José Vieira de Lima
Editor: Edições Asa
Ano: 2000
159 págs., € 13,50





sexta-feira, 19 de outubro de 2012

JEAN RHYS



AS INTENSIDADES INSULARES



Um dos aspectos mais salientes e invulgares da literatura inglesa é a importância que têm nela os autores do sexo feminino. Um peso e uma dimensão tão grandes, que levou já alguém a afirmar que esses autores são o principal fio condutor da literatura britânica, sendo impossível efectuar qualquer análise desta onde os seus nomes fossem omitidos, visto que a desfigurava de tal modo que a transformava num amontoado desconexo de obras.

É evidente que, de certo forma, esta afirmação é legítima para qualquer literatura. Mas em nenhuma outra é tão certeira como na literatura inglesa. E creio que não vale a pena esboçar aqui uma lista exaustiva de nomes de autores do sexo feminino, tantos já clássicos são e tantos aparecem em cada nova geração.

Por muito louvável que tal situação seja, é também inegável que provoca alguma estranheza. Será resultante de certas particularidades da sociedade britânica? Mas quais? Será consequência de uma certa compreensão do fenómeno literário? Mas então como caracterizá-la? Ou será, pelo contrário, motivada pela insularidade daquela literatura e daquela sociedade?

Vem isto a propósito do lançamento em Portugal, numa notável tradução de José Carlos Costa Marques, do romance de Jean Rhys, Wide Sargasso Sea, uma obra fulgurante que transformou a sua autora num caso muito especial dentro da literatura inglesa.

Jean Rhys nasceu, em 1890, nas Antilhas inglesas, mas ainda adolescente veio para Inglaterra, onde iniciou uma vida errante e acidentada que a fez viver nas principais capitais europeias. Em 1927, publica a sua primeira obra, The Left Bank, um conjunto de “histórias” que subtitulou de “esboços e estudos do Paris boémio dos nossos dias”, e, até ao final dos anos trinta, edita mais quatro romances (Quartet, After Leaving Mr. Makenzie, Voyage In The Dark e Good Morning, Midnight). No entanto, talvez devido a uma desadequada sintonia entre a sensibilidade da autora, bem manifesta na sua obra, e a sociedade britânica da altura, ninguém, à excepção de Ford Madox Ford, reconhece particulares méritos literários a Jean Rhys e, paralelamente, os seus livros tornam-se um verdadeiro fiasco de vendas.

Cansada de tentar furar uma barreira intransponível, Jean Rhys remete-se a um total silêncio literário. Depois de um longo período muito atribulado afectivamente (a autora vai então no seu terceiro casamento), resolve recolher-se na Cornualha, resignada a viver de forma humilde e anónima.

Até aqui, a vida de Jean Rhys parece um exemplo típico do percurso de um autor “falhado”. Mas eis que, de repente, no início da década de sessenta, se dá o seu verdadeiro “renascimento”: quando já há muito tinham desaparecido todas as suas obras das livrarias, uma actriz, Selma Vaz Dias, pertencente a um círculo reduzidíssimo de cultores e apreciadores da autora, resolve preparar para a BBC uma adaptação radiofónica de Good Morning, Midnight. Procura então saber se Jean Rhys ainda é viva e onde se encontra… e é através de um anúncio no jornal que a descobre. Mal a sua descoberta se torna pública, a autora recebe algumas cartas a acusá-la de farsante e de tentar usurpar um nome literário, aproveitando-se do facto de ser um pseudónimo, o que leva Jean Rhys a confessar com alguma ironia melancólica: “Tenho a impressão que é uma falta de tacto da minha parte ainda estar viva”.

Resolve nessa altura repegar nalguns papéis escritos que tinha abandonado no fundo das gavetas. E no final da vida, enfrentando a sua fragilidade física e a morte do marido, vai reescrevendo esses papéis até conseguir produzir mais alguns contos e este soberbo romance, Wide Sargasso Sea, que é publicado quando já tem 76 anos. Vem, por fim, a glória literária, os meios financeiros que até aí nunca tivera, morrendo em 1979, quando todos os círculos literários internacionais a reconhecem como uma das mais importantes autoras inglesas deste século.

Em Vasto Mar de Sargaços, Jean Rhys retoma uma personagem de Jane Eyre de Charlotte Brontë - a esposa louca de Mr. Rochester, Antoniette Mason, que vive encerrada no sótão da sua casa de Thornfield Hall - e descreve todo o seu percurso até ao início da situação narrada no romance do séc. XIX, dando, desse modo, uma interpretação ao comportamento daquela personagem. Situando a acção de Vasto Mar de Sargaços por volta de 1830, a autora vai incorporar nessa personagem a vivência da sua própria infância nas Antilhas, e a contenção, que semelhante artifício determina, retira desta obra qualquer cariz de autobiografismo melodramático.

Antoinette é crioula, oriunda de uma família que, possuindo escravos, ficou quase na total miséria, aquando da emancipação da escravatura. Toda a sua infância vai ser assim marcada por três factores: um isolamento selvagem, resultante de dois racismos que a deixam insituável (por um lado, o racismo dos negros, por outro, o racismo dos britânicos que a consideram ou uma falsa branca ou uma falsa negra, conforme o “olhar”); a ansiedade da sua mãe viúva que, impelida pela sua juventude, espera, no mais intenso desespero, voltar a “nascer” (daí o repúdio da filha onde ela reconhece o seu próprio “crioulismo”, as frenéticas fugas a cavalo, fazendo esvoaçar entre os negros a sua roupa andrajosa, e, por fim, o recolhimento e o mutismo, deixando as ervas crescerem nos caminhos que cercam a casa); e o convívio com a ama jamaicana Christophine, conhecedora das obscuras magias que sabem dominar e fazer mover “o outro lado”, esse fantasmático “outro lado” que pode agir sobre o destino de todos, redimindo-o ou destroçando-o.

Toda a infância de Antoinette fica assombrada pelo sentimento de que a vida é “insuportável”. Insuportável, porque, dada a sua situação de crioula, todos os outros a repudiam, obrigando-a a afastar-se para o meio de uma natureza, cuja florescência magnífica só torna presente o excesso da morte; e insuportável ainda, porque a História conduz a sua vida sem possibilidade de lhe resistir (a serenidade, que Antoinette vagamente se lembra, dos momentos em que o seu pai era vivo, foi substituída pela permanente coexistência do sono com o medo). Incapaz de ser outra coisa, o corpo resigna-se a ser um receptáculo vibrátil do sentir, provocando um desejo imenso de imobilismo e morte como forma de eliminar essa intensidade “insuportável”.

Há, portanto, em Vasto Mar de Sargaços, uma obsessiva consciência de uma ideia primordial: a de que toda a “intensidade” do sentir se concentra no corpo, transformando-o numa ilha isolada no mar da vida. Não só porque essa intensidade é, de certo modo, inexprimível, mas porque qualquer tentativa de expressão, por alheamento ou hostilidade do outro, se pode tornar mortal: é esta não só a causa da loucura da mãe de Antoinette (resultante do seu segundo marido não compreender o perigo que rodeava a sua casa e a sua família), mas também da própria Antoinette (provocada pela descoberta da inevitabilidade da falta de amor do marido a que se encontra, sem alternativa, presa).

Percebe-se assim que esse inlocalizável medo que rodeia a existência das personagens principais de Vasto Mar de Sargaços, e lhes cristaliza essa intensidade do sentir, é, no fundo, a consciência indecifrável, mas prenunciatória, de um incontornável final: a loucura como única “deriva” possível, como única forma de “deslizar” pelo mar que as cerca. A loucura transforma-se no meio “suportável” de esperar pela morte.

Mas há também neste romance uma dimensão fortemente catártica que, de certo modo, “ilude” a sua tonalidade desesperada: não é por acaso que Vasto Mar de Sargaços está organizado em três partes, tendo a primeira e a terceira um narrador feminino, redigidas numa escrita obsessiva e alucinada, e rodeando, portanto, uma segunda parte, com um narrador masculino, e dominada por um olhar que, no essencial, julga...

Contudo, a maior qualidade deste romance está na excepcional combinação do estilo com a matéria narrada. A contenção, quase obscena de excesso, com que tudo é descrito, a repetição constante de situações e imagens como se estas fossem presenças paralisantes da memória, a “objectividade glacial” (como refere Francis Wyndham na brilhante análise que introduz esta edição) com que Jean Rhys visualiza, de um modo dramático, as situações (a descrição do incêndio da fazenda de Colibri, com o papagaio, o animal preferido da mãe de Antoinette, de asas aparadas, a procurar voar completamente em chamas; a descoberta do cavalo da mãe, morto, “com os olhos negros de moscas”; ou a chegada a Massacre, o ermo hostil onde Antoinette e o noivo desembarcaram na Dominica, são imagens absolutamente inesquecíveis) dão-lhe qualidades estilísticas que nos lembra algumas das mais recentes obras de Marguerite Duras e que nos permitem classificar Vasto Mar de Sargaços como uma indescutível obra-prima.

Publicado no Expresso em 1988.


Título: Vasto Mar de Sargaços
Autor: Jean Rhys
Tradutor: José Carlos Costa Marques
Editor: Difel
Ano: 1988
169 págs., esg.





quinta-feira, 11 de outubro de 2012

DANIELE DEL GIUDICE




A PAISAGEM QUE FICA QUANDO SE VOA



Em todas as literaturas há, de tempos em tempos, uma figura que actua como uma espécie de “jardineiro divino”: reordena a paisagem literária, mudando os caminhos e os locais que sinalizam e orientam quem por ela anda, obrigando, os que vêm depois, a opções que, inevitavelmente, se terão de fazer “dentro” desse cenário - mesmo que pretendam, com maior ou menor ingenuidade, repudiar os trilhos já traçados. No caso da literatura italiana contemporânea, cada vez há menos dúvidas que essa figura foi Italo Calvino: a sua obra aparece de um modo constante como referente que topografa a criação literária italiana, levando os analistas a procurarem situar os escritores conforme a proximidade que a sua obra tem ao universo calviniano.

Quando se escreve sobre a obra de Daniele Del Giudice, é quase inevitável fazer esta alusão a Italo Calvino, de tal forma a sombra deste escritor tem perseguido a obra do autor de O Estádio de Wimbledon. Com uns escassos quatro títulos, publicados desde o início da década de oitenta, Daniele Del Giudice tem construído uma obra de registo intimista, quase secreto, em que, a partir da sua génese e estruturado com a sua temática, se efectua uma constante fusão da arte poética, do ensaísmo e da ficção. Talvez devido a este aspecto, a obra deste escritor granjeou fama de difícil, “culta” em excesso (e este epíteto tem muito que se lhe diga quando pretende ser detractor), repleta de referências, mais ou menos implícitas, à história literária: foi o que bastou para que a sua obra apareça sempre associada à de Italo Calvino e classificada, mais uma vez com sentido depreciativo, de “pós-moderna”.

No nosso país, onde já existe a tradução de O Estádio de Wimbledon, foi agora editada a sua penúltima obra, intitulada Quando A Sombra Se Separa Da Terra, provavelmente uma das mais representativas das preocupações estéticas e literárias de Daniele Del Giudice.

A perplexidade do leitor, ao abordar este livro, começa logo com a sua classificação. Poderá chamar-se-lhe um romance, tal como faz o editor português? É certo que todos os textos que o compõem são sobre uma temática afim, que notoriamente o seu narrador é sempre o mesmo e que, por último, em todos eles, está sempre mais ou menos presente, mais ou menos silencioso, o mesmo interlocutor privilegiado do narrador. Mas bastarão estes elementos para caracterizar esta obra como um romance?

O segundo motivo de perplexidade está no seu tema: conforme se pode pressentir pelo título, esta obra é sobre “voar”, não só no seu sentido mais metafórico (associado ao “pensar” e ao “desejo de voar”), mas, muito em particular, no de “pilotar”. Como compreender, à primeira vista, uma obra sobre um tema tão circunscrito? É certo que não nos esquecemos da obra de Antoine de Saint-Exupéry (um dos textos mais belos de Quando A Sombra Se Separa Da Terra é, de facto, uma evocativa “peregrinação” ao local em que morreu este escritor); mas o “voar” na obra de Saint-Exupéry foi sempre entendido como o “tempo” ideal para adquirir uma determinada visão ética do mundo e para apelar a um certo humanismo face às barbáries crescentes, e não, como sucede na obra de Daniele Del Giudice, como uma forma de aprender uma “gramática do viver”.

A estratégia de Daniele Del Giudice nesta obra é apresentar um conjunto de textos que, pela “exaustividade”, comprove que “voar” (no sentido de “pilotar”) contém todas as possibilidades - subjectivas, objectivas e comportamentais - de “viver”. De facto, o autor entende que o lugar de piloto “potencializa” (e representa) a situação de qualquer existência: na solidão desolada do “cockpit”, o comportamento do piloto - na sua resistência às adversidades naturais, na sua dependência aos sinais exteriores que o orientam e permitem sobreviver, na sua obstinada procura de se manter em rota, necessitando de aprender a “olhar” e a criar “intimidade” com a paisagem que é olhada - é, em tudo, similar ao lugar da consciência perante a natureza, procurando seguir o trilho do seu destino. Porém, o piloto sabe que o seu artifício de voar exige uma total precisão de decisão, controlando a emoção e o medo, numa obsessiva precaução contra o erro que pode ser fatal: é nesse sentido que “pilotar” se pode transformar numa “gramática do viver” (o “tudo o resto” a que se refere o título de um dos textos mais importantes deste livro), uma vez que também se entende a existência como um código de gestos, comportamentos e decisões cujo objectivo final é precaver-se do “erro” que é a dor e a morte.

Contudo, o narrador, que sempre se alimentou desse desejo de equilíbrio do “viver” que é “voar”, tem consciência de que hoje essa “gramática do viver”, que aprendeu ao pilotar, se revela obsoleta, porque “tudo o resto” (a vida) se tornou “numa erupção de dilacerações abertas como feridas, ou como bocas a rirem de escárnio”, “num emaranhado de enredos, presenças simultâneas e oposições dilacerantes” que transformam qualquer poder de decisão num exercício arbitrário e gratuito. É, por isso, que a leitura de Quando A Sombra Se Separa Da Terra deixa o rastro do perfume nostálgico dos paraísos terminados, o que intensifica a emoção de se estar em presença de uma obra de uma beleza frágil, quase etérea.

Por último, deve ser salientado que esta obra é um brilhante estudo retórico sobre o diálogo, na mais genuína tradição filosófica, uma vez que o narrador está constantemente “falando” ou “ouvindo” alguém (a si próprio, ao seu instrutor de pilotagem, à memória de outros pilotos, a fantasmas que a sua “paixão aeronáutica” cria, ao avião e à própria natureza), dando a ilusão que a obra se encerra no seu universo dialogante e transmitindo uma modulação narrativa que está em perfeita consonância com o seu percurso dicotómico (entre ar e terra, ordem e caos, voar e viver, etc.).



Publicado no Público em 1998.


Título: Quando A Sombra Se Separa Da Terra
Autor: Daniele Del Giudice
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Asa
Ano: 1998
144 págs., € 1,50




PRIMO LEVI





O LASTRO DA DOR



Em nenhum outro período histórico, provavelmente, como na época contemporânea, houve uma situação, semelhante a um “buraco negro”, em que toda a civi1ização ocidental se afundou, criando uma espécie de grau zero, onde todos os valores têm obrigatoriamente de ser revistos, nem que seja para continuar uma insatisfeita subsistência: essa situação foi a do universo concentracionário. E, durante muito tempo mais, há-de ainda permanecer no ar esta pergunta: como foi possível que esta civilização permitisse gizar, em campos de extermínio, a brutalidade de planos implacáveis, metódicos, sem rosto, de genocídio?

Para quem viveu essa experiência, ela revela-se como inexprimível, em particular a alguém que a não viveu, tal é a dimensão de ínfima humanidade, de dor vegetal, que provocou; e todos os testemunhos dela são sempre encarados como afloramentos desvirtuados de uma situação opaca, já que se recusa a qualquer comunhão colectiva. E, contudo, em paralelo, essa experiência, para quem a viveu, exige obsessivamente um testemunho que funcione como uma luz vermelha nos recônditos da nossa memória e como um alarme de um impossível que já se tornou possível.

Primo Levi foi um dos inúmeros judeus que foi parar a Auschwitz. E essa experiência, essa “aventura”, para utilizar uma expressão característica do autor, marcou-o para o resto da sua vida: “Eu nada esqueci; não posso deixar de ter presente na minha memória as palavras e os seres que me rodeavam”, afirmou numa entrevista dada a Philip Roth em 1986, um ano antes de morrer.

Como refere em O Sistema Periódico, uma das obras agora traduzidas, Primo Levi era descendente de uma família judia, ancestralmente fixada no Piemonte, e nasceu em Turim, em 1911. Foi na comunidade judaica desta cidade, com códigos culturais e até linguísticos muito particulares, que o autor viveu a sua infância e adolescência, criando vínculos culturais que as circunstâncias históricas posteriores só vieram acentuar. Empolgado pelos estudos químicos, Primo Levi, desde muito cedo, orientou nesse sentido a sua formação, porque, como ele assinala em O Sistema Periódico, estava convicto que o conhecimento científico da matéria lhe possibilitaria estabelecer uma melhor concepção da ordem natural do que todos os conhecimentos filosóficos e especulativos.

Entretanto, enquanto preparava a sua licenciatura em Química, ia-se consolidando, ao seu redor, o fascismo, esboçando-se a ordem política que provocaria a II Guerra Mundial. Em 1943, após a ocupação nazi da Itália, envolve-se na resistência piemontesa e é de imediato preso. Inicia-se então, em 1944, o calvário de Primo Levi pelos campos de concentração nazis. Liberto de Auschwitz pelo exército soviético, regressa a Itália através de um longo e doloroso périplo por uma Europa devastada pela guerra.

Mas não conseguiu libertar-se, nesse regresso, das imagens e das emoções brutais do holocausto por que passara. Como o próprio Primo Levi refere em O Sistema Periódico: “As coisas vistas e sofridas ainda me queimavam por dentro; sentia-me mais próximo dos mortos do que dos vivos, e culpado de ser homem, porque os homens tinham edificado Auschwitz, e Auschwitz engolira milhares de seres humanos, muitos meus amigos, e uma mulher que me estava no coração.” Sentiu então necessidade de escrever, de contar, de “purificar-se” de uma experiência que o manchara: foi desta forma que nasceu o seu primeiro livro Se Ainda É Um Homem (a editar brevemente em Portugal) e que começou uma importante obra literária que deu títulos como Lilith, A Trégua, Agora Ou Nunca e estes Se Não Agora, Quando? e O Sistema Periódico.

Se Não Agora, Quando?, a obra agora traduzida e editada pelas Publicações Dom Quixote, excepcionalmente em Primo Levi, não tem um cunho autobiográfico. Como o autor refere numa nota final, este romance pretende descrever a vida de “homens e mulheres que anos de sofrimento tinham endurecido mas não humilhado, sobreviventes de uma civilização (…) que o nazismo destruira pela raíz”. Essa civilização é a das comunidades judaicas da Europa de Leste, em particular as radicadas na Polónia e na Rússia; esses homens e essas mulheres são os resistentes judeus ao nazismo que, isolados e sem preverem qualquer futuro, procuravam, de armas na mão, conquistar uma morte digna.

Abrangendo um período que vai de 1943 a Julho-Agosto de 1945, toda a acção de Se Não Agora, Quando? se situa em redor das peripécias bélicas de um grupo de resistentes - os “gedalistas’ - nas estepes russas e polacas, os seus contactos com outros grupos de resistentes não-judeus e com o exército soviético, e, por fim, a sua deslocação, durante o colapso do regime nazi, pela Europa Central até Itália, onde projectam embarcar a caminho de Israel.

Este romance, resultante de um testemunho recolhido por um amigo de Primo Levi num campo de acolhimento de “foragidos de guerra”, mas quase por completo ficcional, pretende narrar uma realidade extrema e desesperada, procurando eliminar toda a dimensão de libelo acusatório e fazendo um esforço analítico e descritivo imparcial e objectivo. Daí que Se Não Agora, Quando? tenha, antes do mais, um duplo interesse histórico (note-se que o romance é acompanhado por uma significativa bibliografia onde o autor se fundamenta para a composição deste tema): por um lado, permite ao leitor mergulhar nos hábitos e costumes de um povo com uma longuíssima tradição cultural (com variantes distantes como o “hassidismo” e o “judaísmo talmúdico”); por outro, transmite-nos uma imagem dos judeus durante a II Guerra Mundial bem diversa daquela que comummente é dada: a imagem do judeu resistente que, libertando-se da vertente cultural ”hassidica” de resignação e piedade, resolveu, face à barbárie, vender caro o dom fundamental da vida.

No fundo, Se Não Agora, Quando? mostra-nos, através da narração de uma série de destinos individuais, o sofrimento épico de todo um povo que, de repente, viu deceparem-lhe os estreitos vínculos que o prendiam a uma vasta região e que, por isso, só conseguiu sobreviver agarrando-se a uma mística sionista. É esta mesmo, note-se, uma das contradições mais patéticas da história judaica: ter sido no momento histórico em que o anti-semitismo se revelou como mais radical que o sionismo assumiu uma verdadeira dimensão social e um objectivo preciso - Israel.

À justificação tradicionalmente dada da errância judaica - destino irremediável que deverá sofrer um povo deicida –, Se Não Agora, Quando? contrapõe uma outra razão mais fundamentada na cultura hebraica: o peso ancestral de uma imagem utópica de Sião, o lugar paradisíaco na Terra, continuamente procurado e ininterruptamente destruído. Assim, a errância judaica é uma simples e permanente “aliya” (o termo hebraico que define a migração libertadora e redentora para Sião). Mas, por conseguinte, o povo judeu não é por essência nómada: pelo contrário, está enraizado a um lugar que não existe, mas que ele procura construir com um empenho que ultrapassa a existência individual e que estabelece um cimento coeso a todo este povo, seja qual for o ponto da Diáspora onde se encontre.

É por isso que este romance de Primo Levi está impregnado por um intenso optimismo (difícil de encontrar noutras obras deste autor), mesmo quando se narram situações limite de desumanidade e violência. Se Não Agora, Quando? revela uma enorme vivacidade de escrita, encadeando rápida e estreitamente as cenas dramáticas, e dando, assim, muitas vezes, a sensação de estarmos em presença de um puro romance de guerra.

Um outro interesse deste romance de Primo Levi está no modo como clarifica as difíceis e complexas relações entre a comunidade judaica e o Estado soviético neste período de libertação do território russo da ocupação nazi. É certo que, ao exército soviético, interessavam as acções de sabotagem realizadas pela resistência judaica no interior das linhas alemãs; por outro lado, é também certo, e isso está expresso inúmeras vezes no decorrer da acção de Se Não Agora, Quando?, que os judeus ficaram gratos ao povo russo pelo seu epopeico esforço na guerra contra o nazismo. Mas a incompreensão soviética pelo nacionalismo judaico fez com que nunca desaparecesse a desconfiança mútua, e este romance demonstra como o apoio a estes resistentes judeus, por parte do exército soviético, foi puramente táctico, e como, algumas vezes, este se desinteressou da sua sorte, abandonando-os, desarmados, diante das ofensivas nazis.

Quanto ao outro livro de Primo Levi agora editado pela Gradiva, O Sistema Periódico, pode-se, antes do mais, afirmar que tem características muito distintas do anterior e que é, inegavelmente, bem original e difícil de classificar.

O autor pretende nele descrever apenas algumas das suas experiências e emoções como químico. Para isso, resolve associar a cada elemento químico uma situação autobiográfica em que ele, directa ou indirectamente, esteve presente, ou uma personagem real ou inventada que tenha características análogas, ou ainda uma história ficcionada que ilustre as funções desta ou daquela substância, etc.

Mas, sob este objectivo na aparência simples, oculta-se uma outra intenção mais profunda: a de comprovar, caso a caso, como a relação entre matéria e espírito não é pura “química”, e como se pode descobrir, através do convívio científico com as substâncias, uma ordenação cósmica, e, ao mesmo tempo, elementar, que permite interrelacionar a matéria inorgânica a um juízo moral, por exemplo.

Saliente-se que é em O Sistema Periódico que mais se revela a diversidade dos cambiantes estilísticos de Primo Levi, em particular a dimensão lírica e nostálgica da sua prosa. E se alguns destes capítulos são notáveis de observação e argúcia sobre certas situações e personagens, um há, no entanto, que me parece importante realçar pelo seu carácter excepcional: é o último capítulo, intitulado “Carbono”.

Este texto, de uma beleza de certo modo inesperada, narra o ciclo de uma molécula ao longo dos séculos, passando pelas rochas, pelos seres vivos, pela água, até, depois de um infinito circuito, se ir, por fim, depositar no cérebro do narrador e contribuir para escrever o ponto final com que a obra se encerra. A leitura deste capítulo deixa-nos a tal ponto surpresos quanto à capacidade de Primo Levi em transformar um assunto potencialmente árido numa narrativa empolgante, e até comovente, que nos leva a interrogar como foi possível que a sua obra só se começasse a divulgar entre nós após o obscuro suicídio de Primo Levi em 1987.



Publicado no Expresso em 1988.



Título: Se Não Agora, Quando?
Autor: Primo Levi
Tradutor: José Colaço Barreiros
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
328 págs., € 15,00


Título: O Sistema Periódico
Autor. Primo Levi
Tradutor: Maria do Rosário Pedreira
Editor: Gradiva
Ano: 1988
195 págs., € 6,54








segunda-feira, 1 de outubro de 2012

ELIZABETH GEORGE



A LÓGICA ASSASSINA



Um dos factos mais intrigantes no romance policial é a importância dos autores do sexo feminino neste universo de violência e de crime. Não existe, seguramente, nenhum outro subgénero literário em que as mulheres tenham tal importância criadora. Não só se constata a sua presença quase desde a sua origem como, a partir dos anos vinte do nosso século, principalmente em Inglaterra, se afirmaram como alguns dos autores mais proeminentes deste tipo de ficção. Basta recordar o caso de Agatha Christie, cuja obra é ainda hoje uma das mais lidas em todo o mundo, com várias dezenas de milhões de exemplares vendidos por ano. Além disso, o que é um facto sintomático das profundas transformações actuais da sociedade, as escritoras introduziram-se, a partir dos anos oitenta, com um tremendo sucesso comercial, no universo hegemonicamente masculino do romance negro. Hoje, seguindo as pegadas de uma Sara Paretsky ou de uma Sue Grafton, existem, um pouco por todo lado, autoras que conseguiram conquistar um lugar de primeiro plano num dos bastiões literários que parecia ser de uma masculinidade inexpugnável.

Na Inglaterra, já depois da geração de P. D. James e Ruth Rendell, que se firmou durante os anos sessenta e setenta, apareceu uma nova geração de escritoras de romances policiais, ainda pouco conhecidas no nosso país, onde pontuam Minette Walters, Frances Fyfield e, curiosamente, duas autoras de origem americana que situam toda a sua obra nas Ilhas Britânicas: Martha Grimes e Elizabeth George. Foi desta última, nascida em 1949 no Ohio, e já com oito romances publicados, que pela primeira vez se editou agora no nosso país uma obra, a mais recente, com o título Na Presença do Inimigo.

Antes do mais, convém referir que esta obra entronca na mais genuína tradição do romance policial, associando a componente mistério com ténues matizes de “thriller” e suspense, e conseguindo, tal como sucede sempre nos bons romances deste género, uma perspicaz caracterização das ambiências psicológicas e sociais das personagens tipificadas.

No entanto, Na Presença do Inimigo possui algumas inovações assinaláveis no quadro do romance policial: por um lado, não existe a característica personagem central que, possuidora de uma excepcional capacidade analítica, é a principal responsável pelo desvendar do próprio crime; por outro, a autora abdica do próprio artifício que é a existência de um raciocínio soberano que, de forma mais ou menos linear, vai conectando, como num puzzle, vestígios até à reconstituição da cena criminosa. Pelo contrário, de uma forma muito mais plausível, o exercício de investigação parte de vários hipotéticos vestígios e, por percursos distintos e diversos tentames, vai aproximando-se da resolução do mistério: no fundo, a compreensão do crime é fruto de um acaso que a própria investigação, ao eliminar pistas erróneas, tornou possível.

A partir de uma trama centrada em sinistros raptos de crianças, Elizabeth George orienta a sua observação, nesta obra, para o ambiente hipocritamente puritano que mina o Partido Conservador durante o período recente em que esteve no poder em Inglaterra e, em paralelo, para a falta de escrúpulos do famigerado jornalismo de escândalos britânico que, no fundo, se alimenta do jogo duplo, entre vida pública e privada, dos grupos sociais dominantes. O que Na Presença do Inimigo revela é a existência de um verdadeiro “braço de ferro” entre estas duas forças com vista a controlar a opinião pública e como esta luta origina lógicas brutais que não só favorecem certo tipo de carreirismos, de todo destituído de valores e sentimentos, como admitem aproveitar-se de todas as fragilidades do adversário, inclusive sacrificar figuras completamente alheias a esta “guerra”, como é o caso dos elementos familiares. Na situação concreta exemplificada no romance, as crianças raptadas são títeres vitimados por estas lógicas e o próprio rapto não passa de um acidente criminoso que permite revelar até que ponto elas podem chegar. Por outro lado, Na Presença do Inimigo mostra, através de uma situação patética e quase absurda, os efeitos nefastos, e mesmo perigosos, que o jornalismo sensacionalista pode provocar ao cultivar, entre os seus leitores, o fascínio pela vida privada de figuras públicas.

Por fim, é pertinente assinalar como acontecimentos recentes (a morte da Princesa de Gales) vêm confirmar a actualidade e a importância da problemática retratada em Na Presença do Inimigo. Estas coincidências não são fruto do acaso. Um dos maiores méritos da boa literatura policial é a sua capacidade para absorver os bons e os maus “espíritos do tempo” e o presente romance, perante estes factos recentes, ganha, sem dúvida, um interesse redobrado: o leitor poderá perceber como se delineiam os comportamentos, os jogos e os interesses que estão subjacentes a situações como aquelas que vitimou a Lady Di. Só é pena que a obra tenha uma dimensão talvez excessiva - abordando muito vagamente outros aspectos da sociedade britânica, como, por exemplo, o caso do I.R.A., que, por impossibilidade de um tratamento aprofundado, deveriam ser eliminados - e seja traduzida de uma forma pouco mais do que sofrível.


Publicado no Público em 1997.


Título: Na Presença do Inimigo
Autor: Elizabeth George
Tradutor: Ana Faria
Editor: Planeta Editora
Ano: 1997
567 págs., esg.