terça-feira, 31 de dezembro de 2013

JORGE EDWARDS

 
 
 
 
 
A EXPOSIÇÃO DO SEXO

 

A estratégia utilizada nos anos setenta para a irradiação internacional do romance latino-americano assentou numa opção “uniformizadora”: diluíram-se as literaturas nacionais sob aquele epíteto (para isso contribuíram muitas declarações dos próprios autores) e identificou-se este romance com uma única forma de tratamento narrativo - o chamado “realismo mágico”. Esta opção, se teve o inegável mérito de contribuir para tornar o romance latino-americano uma das referências fundamentais na segunda metade deste século, ocultou, principalmente perante o grande público, as diversas variantes estéticas e estilísticas da narrativa que já existiam naquelas paragens e, por outro lado, escamoteou a especificidade das literaturas nacionais, com as poucas excepções das literaturas argentina, cubana e mexicana. Ora, esta estratégia vitoriosa, talvez justificável naquela época, branqueou o percurso e o peso de certas literaturas hispano-americanas, como é o caso, muito particular, da chilena.

 
Já mesmo antes do chamado “boom” latino-americano, a literatura chilena tinha evidenciado nos circuitos internacionais da edição e da cultura a obra de poetas como Vicente Huidobro, Gabriela Mistral e Pablo Neruda (estes dois últimos foram, como é sabido, galardoados com o Prémio Nobel), o que, por si só, dá uma ideia da sua importância. Mas se juntarmos a estes poetas - e só para referirmos autores já conhecidos em Portugal - o nome de romancistas como José Donoso, Francisco Coloane, António Skarmeta, e mesmo sucessos de grande público como Isabel Allende ou Luis Sepulveda, fica-se com plena consciência de que esta literatura é, de facto, uma das mais relevantes do universo hispano-americano. Para o leitor português, faltava, no entanto, entre alguns mais, juntar aos já citados o nome de Jorge Edwards, o romancista de quem foi agora publicado A Origem do Mundo, e que é, com José Donoso, um dos mais significativos autores da geração que despontou na década de sessenta.

 
Esta novela é um exercício literário em redor de uma pintura do naturalismo oitocentista que sofreu um percurso assaz bizarro e significativo: trata-se do pequeno quadro A Origem do Mundo de Courbet que retrata, com enorme realismo, um sexo feminino. Como o próprio Jorge Edwards descreve de passagem no seu livro, parece que este quadro foi encomendado ao pintor por um “bey” turco e durante várias décadas esteve escondido num gabinete reservado, sob uma portinhola mediocremente pintada com uma paisagem bucólica. Depois foi passando de proprietário em proprietário até chegar às mãos de Jacques Lacan, que o guardava na sua casa de campo. Só após a morte deste, é que a sua viúva, filha de Georges Bataille, permitiu a sua exposição pública, passados mais de cem anos de ter sido pintado.

 
Não basta explicar o sigiloso percurso deste quadro pelo seu conteúdo sexual: existem obras com uma dimensão erótica muito maior que não sofreram este destino. É certo que não deve existir nenhuma outra obra na História da Arte que retrate uma vagina com tão minucioso pormenor. Mas, quase de certeza, a razão fundamental do seu percurso - e a sua dimensão perturbantemente transgressora - está relacionada com o despúdico “abandono” ao olhar do pintor que aquele sexo aparenta. E é esta ideia que, de uma forma notória, motivou a homónima novela de Jorge Edwards.

 
O enredo da novela é muito simples: um septuagenário médico chileno, exilado em Paris, e casado com uma mulher mais nova, descobre no espólio de um grande amigo - um D. Juan fisicamente desgastado pelo álcool que resolvera suicidar-se - um conjunto de fotografias das suas amantes, onde se encontra o retrato da sua mulher e uma fotografia de um sexo feminino, mimético do quadro de Courbet, e cujo modelo ele crê ser também ela. Esta descoberta provoca-lhe a uma tão perturbante dúvida sobre se a mulher fora de facto amante do seu amigo que leva-o a sentir que lhe vão soçobrar as forças com a ansiedade.

 
O aspecto mais interessante da novela de Jorge Edwards é que parte do pressuposto que a substância do ciúme está associada a uma “imagem obsessiva”: a disponibilização do sexo do ente amado para outro. A razão principal do transtorno do velho médico está na “imagem” do sexo da sua mulher naquela fotografia e no que, de um modo alucinante, parece representar: a intensidade do desejo dela é tão forte que aceita disponibilizar o seu apelo erótico à reprodução mecânica e, por conseguinte, ao olhar clandestino do seu amante. O que aquela fotografia “expõe” é um desejo de plenitude que a personagem principal não conhece no seu ente amado. E o seu ciúme não é tanto resultante da infidelidade, mas da “revelação” de uma tal intensidade de desejo de plenitude na sua mulher que chega ao ponto de deixar “reproduzir” a parte do corpo que “objectualiza”, em termos simbólicos, o desejo do velho médico. E percebe que essa “visão” é tão contagiante que, por si só, subjuga (e estimula) o seu próprio desejo: desde que ela confessa o seu adultério, ele anseia por “encenar” a situação que deu origem à fotografia, convencido que a disponibilidade assim revelada pela sua mulher lhe bastará para “absorver” a intensidade do desejo que, num determinado momento, ela sentiu por outro.   


Escrito de uma forma aliciante e fluida, A Origem do Mundo revela-se um curioso “estudo” sobre o ciúme e o desejo e, em particular, sobre os mecanismos que levam este a fixar-se, de forma significativa, em objectos e coisas que são testemunhas empenhadas de uma relação erótica. Longe vai o tempo em que uma hipócrita moral dominante remetia a temática desta novela para o “ghetto” simplista do fetichismo...

 

Publicado no Público em 1997.

 


Título: A Origem do Mundo
Autor: Jorge Edwards
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1997
143 págs., € 10,60

 

 
 
 



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

JORGE IBARGÜENGOITIA 1


 
 
 
A PRESENÇA LARVAR DA MORTE

 

A imbricada aculturação de uma milenar tradição índia, já, em grande parte, desfigurada pela colonização espanhola, com uma desconexa integração no mundo moderno deu ao México a imagem de um subúrbio exótico. Essa realidade, perpassada, ao mesmo tempo, pelo mais vincado ruralismo e por uma importação maciça dos valores urbanos da sociedade norte-americana, transformou-se num campo de contradições extremas que sobressaem como um rugoso relevo na história contemporânea do México. E atingiram tal grau de intensidade que toda a realidade mexicana parece ser possuída por uma presença larvar da morte: os conflitos sociais e intersubjectivos têm, por isso, uma constante dimensão telúrica, de um confronto de forças pré-conscientes.

 
Uma realidade com semelhantes características exerceu, como é natural, enorme fascínio sobre a literatura contemporânea (recorde-se, por exemplo, os casos de D.H. Lawrence e de Malcolm Lowry), ao ponto desta impressionar, de um modo incisivo, a imagem que, do exterior, se faz daquela. Por outro lado, é inegável que a força desta realidade delineou também vigorosamente os campos temáticos e, quase de certeza, as próprias estruturas formais da literatura mexicana. Ora, se se tiver em consideração que esta, desde sempre, teve um enorme ascendente no quadro das literaturas latino-americanas (recorde-se os casos conhecidos de Rulfo, Fuentes ou Paz), pode perceber-se como a partir da representação simbólica da realidade mexicana se enformou “parâmetros narrativos e poéticos” que têm uma irradiação significativa em toda a América Latina.

 
É neste contexto que o romance As Mortas de Jorge Ibargüengoitia (um autor nascido em 1928 e que faleceu, malogradamente, num acidente de aviação em Madrid, em 1983, que vitimou também outros intelectuais latino-americanos) parece encaixar-se perfeitamente. De facto, a obra deste autor já não sofreu os efeitos benéficos, em termos de divulgação, do chamado “boom” latino-americano, por lhe ser posterior, e, por isso, As Mortas torna-se uma notável revelação que ultrapassa em interesse os limites do género policial, para o qual o leitor poderá ser remetido, dada a colecção onde o romance foi publicado em Portugal.

 
Em redor da tentativa quase absurda de duas proxenetas em manter retidas as prostitutas de um bordel, após o seu encerramento forçado, provocando um alucinante ambiente concentracionário, onde, em catadupa, se vão sucedendo as cenas de violência e crime, as inumações clandestinas, as primárias cumplicidades de subsistência, Jorge Ibargüengoitia mostra, mais uma vez, como as situações de marginalidade efectiva funcionam como verdadeiros “daguerreótipos” desse embate de forças pré-conscientes que tem lugar nuclear na realidade mexicana.

 
Mas o mais interessante em As Mortas é as suas características estilísticas, já que o narrador tem a mera função de efectuar o levantamento dos acontecimentos, aproveitando-se de depoimentos de testemunhas, provas de tribunal, etc. Esta tonalidade de relatório, concisa e objectiva, serve na perfeição, através de uma descrição ironicamente ingénua, para realçar a própria crueza dos factos e a rudeza destas personagens, habituadas a saber que é o medo do sofrimento que está na base das relações de poder que estruturam uma sociabilidade fechada.

 
Por fim, convirá salientar a tradução de António Sabler que, de modo adequado, respeita os intuitos estilísticos do autor, assim como a capa de Henrique Cayate que, mais uma vez, realiza um belíssimo, na sua aparente singeleza, trabalho gráfico, “marcando” uma colecção que se tem mostrado como fundamental na divulgação da boa literatura policial e de ficção científica.

 

Publicado no Expresso em 1986.

 

Título: As Mortas
Autor: Jorge Ibargüengoitia
Tradutor: António Sabler
Editor: Ed. Caminho
Ano: 1986
184 págs, esg.

 

 



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

FRANCIS SCOTT FITZGERALD


 
 
 

UMA RADIOSA SOMBRA

 

O que fica de um romance-estandarte de uma geração? Se todos forem como O Grande Gatsby, fica muito: este romance em particular, e com ele o seu autor, instaurou um percurso na literatura americana. Alguém duvida hoje que escritores como Norman Mailer (das primeiras obras), Jack Kerouac ou Bret Easton Ellis, e só para falar de três escritores tão diversos e pertencentes a diferentes gerações, não são genuínos herdeiros deste romance?

 
Mais do que Este Lado do Paraíso, de Terna É a Noite ou de O Último Magnate, O Grande Gatsby cola-se que nem uma luva à imagem que nos ficou de Francis Scott Fitzgerald. É da Lei Seca, da violência, do optimismo votado ao fracasso, das fontes de champagne em festas alucinadas, do jazz e do fox-trot estonteantes, da paixão que tudo consome até a autofagia, do fascínio pelo precipício de quem subiu todos os degraus sociais rindo à gargalhada da própria sociedade, é de tudo isto que este romance fala. Na sua essência, o romance por excelência dos “beautiful loosers”, dos que deitam pela janela do automóvel, em desenfreada velocidade, os bilhetes de entrada no sucesso. Será possível não amar estas personagens? As constantes reedições e o entusiasmo com que gerações e gerações continuam a ler este romance parecem dar resposta a esta pergunta.

 
E, no entanto, F. Scott Fitzgerald, depois de anos eufóricos de êxito e dinheiro, arrastou-se no final da sua vida, doente, endividado, totalmente esquecido, pelas traseiras dos prédios de Sunset Boulevard. Hollywood, que sempre o fascinara, tragara-o como “scriptwriter”. E foi o esforço de divulgação da sua obra, feita por amigos pessoais, como Edmund Wilson ou Budd Schulberg, que fez com que a sua obra, já depois da sua morte, voltasse a ser reeditada e o seu estatuto na literatura americana reconhecido. Hoje, é já lugar comum dizer que ele faz parte, com Hemingway e Faulkner, da tríade fundadora da literatura deste século dos Estados Unidos.

 
Mas deixemos a vida de Francis Scott Fitzgerald. Sobre a sua luminosa tragédia, tem o leitor muita informação no prefácio que José Rodrigues Miguéis escreveu, no princípio dos anos sessenta, para esta sua tradução que a Ed. Presença vem reeditando.

 
Falemos antes de Gatsby. A sua ambição fá-lo acreditar no “sonho americano” e, ao mesmo tempo, dá-lhe plena consciência de que nada de essencial passa por aí. E fica-lhe a nostalgia do tempo das convicções sem sombra. É essa nostalgia que ele procura ensopar em álcool, esfumar em festas. É essa nostalgia que o não deixa crescer, que o obriga a acreditar na paixão como derradeiro caminho que confirme as suas convicções. Mas Daisy, a amada que tudo legitima, é a própria encarnação da impossibilidade do “sonho americano”. E a ordem social destroça Gatsby como qualquer outro que chegue, trazendo, como único capital, os valores que a própria sociedade propagandeia. Sobre a esfacelada máscara do optimismo aparece o rosto do pessimismo inconsolável.

 
O Grande Gatsby tem uma estrutura límpida, com a concisão das tragédias clássicas. Foi publicado tinha F. Scott Fitzgerald vinte e nove anos. E ainda hoje assombra pela capacidade do autor em transformar a “matéria vivida” numa história que nada tem de autobiográfica. Daí a comoção que ainda provoca, semelhante à que se tem perante coisas irremediáveis e que nem sequer deviam ter sucedido.

 
Publicado no Público em 1997.

 

Título: O Grande Gatsby
Autor: F. Scott Fitzgerald
Tradução (e prefácio): José Rodrigues Miguéis
Editor: Editorial Presença
202 págs., 10,35 €

 




quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

TONI MORRISON 1

 
 
 
 

A ASSOMBRAÇÃO DA DOR

 
Os ameríndios, os judeus (e os palestinianos?), os khmers, os negros americanos, a título de exemplo entre tantos outros povos, sabem, melhor do que ninguém, que, muitas vezes, para sobreviver é necessário esquecer. Mas, sabendo-se também que a memória é a matriz que encaminha o destino dos povos e dos homens, que existência é que fica?

 
É essa a questão que Amada, o último romance da escritora negra Toni Morrison, levanta - de uma forma soberba, diga-se de imediato. Mas, ao mesmo tempo, é também uma impressionante análise dos limites do sofrimento e, por isso mesmo, um autêntico exorcismo da escravatura, essa presença fantasmática que continua a determinar as relações rácicas nos Estados Unidos.

 
Pela primeira vez na sua obra, Toni Morrison resolve regressar ao período da Guerra de Secessão e da abolição da escravatura. A personagem principal de Amada é uma ex-escrava negra, Seth, que, ainda na escravidão, resolveu matar os seus filhos, decidida a não deixar que vivessem a não-vida que tinha sido a sua. Mas, presa na própria circunstância, só consegue degolar uma das filhas; daí em diante, o seu presente vai ficar dominado por este acontecimento: isolada da sua comunidade (que condenou o acto), abandonada pelos filhos varões (que, não entendendo o excessivo amor materno, receavam que voltasse a tentar matá-los), vivendo com a outra filha sobrevivente (que, recusando qualquer contacto com a realidade, se isolou num obstinado mutismo) e sofrendo a assombração da filha morta (que lhe ocupa a casa, afugentando vizinhos e visitantes), Seth está condenada a subsistir na cinzenta opacidade dos que, por excesso de sofrimento, foram roubados da memória e da alegria.

 
 Por isso, a realidade de Seth não tem sentido (ou, mais literalmente, não tem sentidos: Seth deixou de ver a cor e o seu corpo vive a insensibilidade rugosa de uma árvore), tornando-se, em consequência do recalcamento da memória, uma ausência, uma integral fantasmagoria. Quando Paul D., também um ex-escravo vindo do passado de Seth, lhe começa a colorir a realidade através do amor, vê-se obrigado, antes disso, a escorraçar o fantasma, destroçando a casa. Mas Seth ainda não conseguiu serenar o seu passado e, por isso, a sua filha assassinada, encarnada em Amada, “regressa”, exigindo-lhe o amor que, segundo ela, a sua mãe lhe tinha negado com o assassínio, vampirizando-a e tentando expulsar os afectos de Paul D. e da outra filha, Denver. Só quando Seth, no limite das suas forças, sai do seu torpor e tenta matar o Mal, corporizado no “homem sem pele”, no branco, é que Amada, sorrindo, desaparece, dando à sua mãe, pela primeira vez, a possibilidade de um “real concreto”, isto é, um presente com devir.

 
 Creio que esta sinopse, ainda que um pouco longa, permite ao leitor perceber a dimensão simbólica que, não sendo nem demasiado explícita nem linear, as personagens e as situações de Amada assumem. De facto, Toni Morrison não pretendeu fazer uma mera descrição de um drama da escravatura, mas transfigurá-lo de modo a que se torne mais compreensível a raiz sociocultural da actual comunidade negra norte-americana. Por outro lado, não pretendeu também descrever a realidade da escravatura de um ponto de vista “exterior” mas revelá-la de uma forma verdadeiramente “pornográfica” (o adjectivo é da própria autora, ao tentar caracterizar as suas intenções narrativas): através das memorizações, estilhaçadas por um sofrimento insuportável, das diversas personagens de Amada.

 
Mas nada ainda aqui fica dito sobre o fôlego lírico de tantos entrechos, a contenção estilística com que a autora se esquiva a um sentimentalismo fácil, a permanente recriação simbólica e as experiências narrativas sempre adequadas que tornam Amada uma referência fundamental na literatura americana das últimas duas décadas e posicionam Toni Morrison, mesmo tendo presente a importância de autores como Richard Wright, Ralph Ellison e James Baldwin, como uma das mais importantes escritoras de sempre da literatura negra norte-americana.

 
Publicado no Público em 1990.
 
 
(Foto da Autora de Timothy Greenfield-Sanders)

 
Título: Amada (Beloved)
Autor: Toni Morrison
Tradução: Evelyn Kay Massaro
Editora: Difusão Cultural
Ano: 1989
349 págs., esg.
 
 
 

 



terça-feira, 19 de novembro de 2013

MICHEL RIO 1

 
 



PRETENSÃO E TEORIAS

 Desde há alguns anos, que se foi generalizando a “imagem” da literatura francesa contemporânea como desinteressante, confusa e maçadora, de um formalismo excessivo, solipsista e de temática medíocre, e tenta justificar-se esta “imagem” pelo facto de os antigos “clercs” do pós-guerra e dos anos sessenta terem desaparecido e não existirem novas figuras que os tenham substituído. Mas quem acompanha de forma atenta o desenvolvimento desta literatura sabe que essa “imagem” é bem injusta e não tem em consideração que a atmosfera cultural do mundo se alterou profundamente nos últimos vinte anos e hoje os ventos sopram de forma hegemónica vindos das terras anglo-saxónicas. E que esta circunstância óbvia não retirou interesse à literatura francesa, só lhe retirou “visibilidade”.

No entanto, qualquer argumentação em favor da cultura e da literatura francesas torna-se sinceramente difícil em presença de livros como este O Princípio da Incerteza de Michel Rio. Este escritor, que começou a publicar nos finais da década de setenta, tem construído uma obra prolífera, mas caracterizada por uma significativa irregularidade: alguns dos seus romances são estimulantes, lembro os casos de Merlim e Tlacuílo (também traduzidos e editados pela Ed. Teorema), ou ainda de Manhattan Terminus e, segundo parece pela recepção que lhe fez a crítica francesa, o muito recente La Statue de la Liberté; outros são, de uma forma quase inexplicável, assombrosamente falhados, como é o caso deste muito breve O Princípio da Incerteza. De qualquer modo, esta irregularidade já permitiu perceber uma das principais tentações em que o autor por vezes cai, fazendo desmoronar alguns dos seus romances: o gosto de Michel Rio pela filosofia e pela teoria em geral faz com que as suas obras sejam muitas vezes uma mera “exposição” de algumas problemáticas da actualidade, sem uma verdadeira e coerente contribuição do autor, nem um elaborado e consistente tratamento narrativo.

 O Princípio da Incerteza inicia-se com uma situação onde um escritor, que desistiu de escrever, deambulando à beira-mar, se sente, de súbito, fascinado por uma paisagem. E, perante a emoção que esta paisagem lhe provoca, torna-se mais convicto no seu cepticismo sobre o sentido do seu trabalho, reforçando-lhe a ideia de que o único sentido para a existência é, depois de fruir o universo como um puro “voyeur”, “se diluir” nele numa comunhão mortal.

 Porém, depois deste princípio relativamente aliciante, Michel Rio resolve efectuar uma viragem no romance e iniciar, à maneira das novelas em diálogo filosófico de Voltaire, um longo debate, entre o escritor e uma outra personagem, um velho actor de cinema em situação de “reforma”, sobre temas como o significado do acto de escrever e da arte, a figura de Deus, a relação entre a filosofia e a ciência, a natureza do tempo, a física de Galileu e Newton e a de Hawking, o pensamento e a matéria, o “Big-Bang” e o destino do universo, o determinismo, o caos e a eternidade, etc., etc., ocupando mais de metade do romance com esta ininterrupta exposição de teorias e ideias. É certo que o sentido deste diálogo é contextualizar a motivação que levou o escritor a deixar de escrever, convencer o leitor da “impotência” da criação humana perante as forças do universo e fundamentar a posição do escritor em assumir-se como uma simples partícula de vida num jogo cósmico que não pode dominar. Mas é necessário confessar que esta opção de Michel Rio não está de modo algum bem resolvida e que O Princípio da Incerteza, durante esta longa parte, mais parece uma obra de divulgação científica e filosófica, vagamente romanceada, onde o autor se deleita em desfigurar-se numa pretensiosa ostentação de saberes. Este pretensiosismo é tanto mais acentuado quanto está associado a uma fácil sofisticação de ambientes, num preciosismo esteticista que torna mais nítida a dimensão artificiosa dos diálogos e das situações.

No final, o romance faz uma nova viragem e, através de uma situação de “rodagem” cinematográfica, em que se está a recriar a situação anteriormente vivida entre as duas personagens principais, procura-se analisar a relação interactiva entre a arte e a vida, voltando-se de novo - mas aqui, sim, de forma romanesca - ao ponto de partida filosófico do início do romance sobre o primado da vida sobre a arte.

 Os aspectos mais interessantes de O Princípio da Incerteza confinam-se a uma certa reflexão sobre o medo do fim (o fim da escrita, o fim dos afectos, o fim da vida) e a uma perturbante associação entre o desejo de “diluição de si na paisagem” como perfeito sentido da existência e o desejo sexual como impulso para a “diluição de si no Outro”, assumindo aqui o Outro uma unicidade cósmica. É evidente que esta concepção da sexualidade, tal como aparece formulada no romance, tem uma excessiva e questionável componente “masculina”. De qualquer forma, é nestas páginas que perpassa uma certa “sensualidade” que faz recordar, neste aspecto, a obra de André Pieyre de Mandiargues, e que evidencia as qualidades estilísticas que Michel Rio já bem explanou noutras obras.

                   
Publicado no Público em 1997.

 

Título: O Princípio da Incerteza
Autor: Michel Rio
Tradutor: Magda Bigotte de Figueiredo
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
101 págs.,  esg.

 

 



segunda-feira, 18 de novembro de 2013

E. L. DOCTOROW 1

 
 
 
 

AS PORTAS DO MUNDO ADULTO

 
Em princípios de setenta, quando apareceu The Book of Daniel de E. L. Doctorow, a crítica americana ficou muito bem impressionada com este romance, porque conseguia colocar implícitas preocupações militantes (o tema era - mais uma vez - o caso Rosenberg) numa perspectiva original. O romance centra-se no filho desse casal de cientistas que resolve encetar, dez anos após o famoso julgamento, uma investigação com o intuito de perceber como é que a argumentação judicial destruiu em termos psicológicos os seus pais. Com esta estratégia, The Book of Daniel transmitia toda a perspectiva “interior” do drama dos Rosenberg, revelando, com maior acutilância, a dimensão brutal da situação sociopolítica que os envolveu. E. L. Doctorow iniciava, desse modo, a fase de maturidade da sua obra, onde, na sequência do trabalho de John Dos Passos, procurava problematizar as relações entre ficção e História. De seguida, vai desenvolver esta problemática em Ragtime, o seu romance mais conhecido, em consequência do filme homónimo de Milos Forman, em que associa personagens de ficção e figuras reais e cria, num jogo desmistificador e humorado, relações plausíveis entre estas, dando, ao mesmo tempo, um retrato inovador e estimulante dos anos vinte americanos. O que se pretendia, era, mais uma vez, “inventar a História” para melhor revelar a verdadeira História.
 
Nos últimos tempos, a obra de E. L. Doctorow tem-se orientado para a tentativa de estabelecer correlações entre história pessoal e história colectiva, fazendo um levantamento diversificado dos parâmetros culturais, das linguagens e dos mitos de várias épocas contemporâneas. É este o sentido de livros como Lives of Poets e, em particular, de Feira Mundial, agora traduzido.

 
Este romance, explicitamente autobiográfico, narra a infância do autor até aos dez anos, terminando quando já é previsível a participação americana na II Guerra Mundial. É, pois, um romance sobre o crescimento e a formação, em que se procura expor as interrogações e a gradual penetração do olhar de uma criança no universo adulto. Por conseguinte, o romance é construído como um diálogo de olhares entre a personagem principal e os seus parentes mais próximos, realçando-se, assim, uma diferença de pontos de vista resultante, antes do mais, de uma nova formulação de regras, de construção de outras linguagens, de identificação com outros mitos. Para esta criança, é a dolorosa confirmação de que uma personalidade distinta só se obtém, como sempre, com a afirmação pública da sua “fala” (a redacção que é premiada com uma menção honrosa no concurso da Feira Mundial), com o desvendamento em si próprio dessa dimensão oculta dos adultos que é a sexualidade e com a consciência eufórica de que se é possuidor de um futuro próprio (é essa a descoberta que a criança faz entre os pavilhões da Feira Mundial).

 
A História aparece aqui como o cenário de um passado pessoal que, ao condicioná-lo, o constrói a seu modo. Por isso, a criança de Feira Mundial entende, por fim, que as pessoas são, antes do mais, resultado do profundo imbricamento da História com a história individual; ninguém em particular pode ser apontado como culpado da inconstância e do aventureirismo do seu pai, da amargura e do desencanto da sua mãe, da frustração e da fuga do seu irmão: cada um deles carrega apenas um destino resultante de circunstâncias, externas e internas, impossíveis - provavelmente - de dominar.

 
Como já era bem notório noutros romances de E. L. Doctorow, como Ragtime, Feira Mundial revela uma enorme sobriedade e elegância de estilo, assim como um admirável saber narrativo em encadear as situações e dar-lhes verosimilhança. Mas, considerando outros aspectos, é inegável que o romance fica bem aquém do que a anterior obra do autor permitia esperar. Admira, por exemplo, que, na sua estrutura, nada transpareça sobre as analogias metodológicas que existem entre a reconstrução do passado pessoal e a da História, nem, em particular, sobre a dimensão que, em qualquer delas, existe de ficção: é já hoje inadmissível um optimismo tão ingénuo sobre o papel da memória. Talvez, por isso, o romance permaneça quase sempre numa certa platitude insignificante que o torna monótono.

 
Publicado no Público em 1991.

 

Titulo: Feira Mundial
Autor: E. L. Doctorow
Tradução: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1991
371 págs., € 13,11
 
 



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ÁLVARO POMBO

 
 
 
 
A IDENTIDADE MATERNA

 
Uma das cíclicas interrogações que aparece nos cenáculos literários, tanto nacionais como internacionais, é sobre a morte da literatura (ou mais especificamente do romance). Colocando já de lado a inutilidade da questão, um dos aspectos que ela evidencia é o gozo (ou, noutros casos talvez, o sincero desespero) apocalíptico de alguns humildes mortais, ligados a estas matérias, se sentirem a “viver” hipotéticas “milenares viragens de páginas da História” e, por isso mesmo, serem os últimos representantes de uma linguagem. O que é de estranhar nesta formulação é os seus autores não desconfiarem de um certo “espírito de época” (nunca se viu, como nos últimos tempos, tantos “fins” - da História, das religiões, das artes), de continuarem, de um modo irreflectido, a associar a morte das línguas com a das linguagens (é possível conceber em termos históricos o fim de uma linguagem?) e de não perceberem que, quando estão a prever a morte da literatura ou do romance, estão, pelo contrário, a prenunciar a sua própria morte como leitores.

 
Porém, tem de se confessar que, por vezes, a leitura de certas obras, como é o caso de Casa das Mulheres de Álvaro Pombo, “parece dar sentido a este receio do fim da literatura e do romance. Álvaro Pombo (n. 1939) é um dos autores mais conceituados da vizinha Espanha, com uma obra já vasta de romancista, e que obteve diversos galardões literários, entre os quais o mais recente Prémio Nacional de Narrativa com este romance agora traduzido. No entanto, Casa das Mulheres, para além de algumas virtualidades que uma leitura cuidada pode esforçar-se por desvendar, dá uma primeira impressão de ser um romance que nasceu “velho”, sem ter adquirido a sabedoria que o tempo traz.

 
É certo que o autor já nos habituou a uma certa argúcia na observação psicológica e a um tratamento particular das personagens, perspectivando-as segundo um prisma pessoal, o que dá origem, aqui e além, a algumas asserções que são preciosidades fulgurantes. Mas nem isso chega para que não fiquemos com a ideia de que Casa das Mulheres não seja uma espécie de teia de aranha, salpicada de cristais de orvalho, mas totalmente esgarçada e onde o próprio autor se enredou.

 
A nossa perplexidade começa logo com o sentido que mobilizou o romance. Tudo leva a crer que o autor pretendeu delimitar, em termos romanescos, uma “especificidade do feminino na Espanha franquista. É esta leitura que consegue dar uma visão mais integrada e significativa desta obra e que o título original (Donde las Mujeres) expressa (note-se que o título português parece-nos uma versão acertada de um título “complicado” para uma tradução literal e sintomático de um trabalho de inegável qualidade). Mas será ainda estimulante e criativo formular nos nossos dias um projecto semelhante?

 
A própria estrutura romanesca transmite ao autor um estatuto ambíguo. Ao colocar, como narradora do seu romance, uma figura feminina que, durante a maior parte da acção dramática, se “identifica” com os valores, as regras e a visão que predominam na “casa das mulheres” onde vive, o autor parece procurar ocultar a sua “visão masculina”, impossível de escamotear, por detrás dela - o que não é muito coerente com a sua visão do romanesco que valoriza a especificidade espaço/tempo como coluna dorsal da formulação narrativa.

 
Casa das Mulheres desenvolve-se sinuosamente através do processo formativo, infantil e adolescêntico, de duas irmãs, confrontando-o com o estádio de maturidade de outras irmãs - a mãe e a tia - pertencentes à geração anterior (excluindo, neste caso, uma terceira que “morre de amor” logo nas primeiras páginas), todas vivendo em duas casas próximas e isoladas num promontório que as marés transformam em ilha. É evidente que estas últimas - uma com um comportamento mais excêntrico e mundano, outra marcada pelo gosto de uma vivência intimista e irrealista e ocultando-se permanentemente sob um manto de veleidades artísticas - estabelecem uma órbita de comportamentos que cerca as “jovens” e se torna a sua constante referência. Mas, tão importante como a interactividade entre estas duas gerações, é a circulação de diversas figuras masculinas que “visitam” de um modo cíclico estas mulheres e que povoam o seu imaginário como entes frágeis, esbatidos e, ao mesmo tempo, determinantes.

 
De facto, essas figuras masculinas (no seu diverso estatuto de pais, maridos, amantes e irmãos), na generalidade mais ausentes do que presentes fisicamente, aparecem como duendes que, com a sua simples presença e com o estatuto que representam, se transformam nas “estacas” por onde tem que passar o sinuoso “slalom” do destino destas mulheres. No fundo, os homens são embaixadores de um universo “exterior” à casa materna que, por um lado, a condiciona com regras, legais e económicas e, por outro, origina um certo fascínio entre os seus habitantes que inevitavelmente leva ao seu desmoronamento. Porém, quando este sucede, o que as sobreviventes fazem (isto é, as representantes da geração mais nova) é “transportar” os elementos identificadores dessa casa materna, fundando uma nova.

 
O que Álvaro Pombo pretende evidenciar, com Casa das Mulheres, é que existe um universo-matriz (“a identidade é sempre maternal”, afirma o autor já para o final do romance) que, ao longo dos tempos, se vai alterando, sem se modificar, em consequência da contingência que é a presença, no seio desse universo, da “figura masculina” - como se esta fosse o grão de areia em redor da qual se forma a pérola da ostra feminina. Por conseguinte, na mulher, tudo se transforma e nada se modifica, já que ela transporta consigo a identidade materna.

 
  Publicado no Público em 1997.

(Foto do Autor de Europa Press). 

 
Título: Casa das Mulheres
Autor: Álvaro Pombo
Tradutor: Luís Filipe Sarmento
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1997
230 págs., € 5,04 

 




sexta-feira, 6 de setembro de 2013

JOHN IRVING

 
 
 
 

A FAMÍLIA: DA NOSTALGIA À VORACIDADE

 
Cada vez menos existem dúvidas de que alguma inflexão, a partir dos últimos anos da década de setenta, ocorreu no reino da ficção e do romanesco. Se, durante cerca de vinte anos, a inquietação criativa dominante, na área do romance, circulou em redor de uma reflexão expressa sobre a problemática da produção textual e de uma atitude arrojada de experimentação das técnicas narrativas, nos últimos anos, talvez por exaustão deste tipo de trabalho, tem-se visto renascer uma literatura que coloca a tónica no engendrar do enredo ou, por outras palavras, uma viragem da ficção que, integrando alguma da anterior reflexão, se centra mais sobre o contorno das personagens, numa mais funcional representação da temporalidade e numa mais imaginativa, e mesmo fantasista, caracterização e conexão das situações dramáticas.
 

 É certo que já fora sintoma disto tudo a receptividade espectacular que a literatura latino-americana teve durante a década de setenta; mas, na generalidade, esta literatura nascia ainda sob pressão de um constringente “corpus” ideológico. Ora, a ficção recente quer-se, antes de tudo, acentuadamente “ingénua”, isto é, que os seus efeitos éticos e políticos sejam mais “ecos dispersos de uma leitura” do que “causas marcantes de uma produção”.

 
 Face a esta ficção, creio que o mais fácil é determinar-lhe alguns epítetos ou acusá-la de ser mais um “modismo”. Porém, poderá ser muito mais interessante perceber, pelo contrário, com alguma humildade, qual o “conjunto de sinais” que a crítica internacional tem tentado desvendar na mais recente ficção norte-americana e que permite identificá-la com uma similar prática literária de alguns autores do Velho Continente.

 
 Vem isto a propósito da edição portuguesa de dois romances, O Estranho Mundo de Garp e O Hotel New Hampshire, aparecidos com a avalanche de um tremendo sucesso editorial, mas que, em paralelo, foram considerados, pela crítica americana a que tive acesso, como marcantes na sua actual produção literária. O autor, John Irving, nascido em 1942, “writer-in-residence” da Universidade de Iowa, tinha publicado três desapercebidos romances (Setting Free the Bears,The Water-Method Man, The 158-Pound Marriage) e algumas “short-stories”, quando, em 1978, saiu, em dupla edição, londrina e novaiorquina, o The World according to Garp. De imediato, toda a sua anterior produção foi reavaliada, e a edição, em 1981, de The Hotel New Hampshire serviu para redobrar os elogios e os encómios.

 
Os romances de John Irving envolvem de tal modo o leitor numa teia de sedução que se torna por vezes difícil precisar as motivações de semelhante efeito. De facto, existe nestes romances uma ampla tonalidade narrativa, que vai desde o humor à comoção, um misto de rudeza e ternura, que, por sistema, à sua leitura, nos faz vir à memória dois dos mais importantes ficcionistas americanos deste século: F. Scott Fitzgerald e J. D. Salinger. Por outro lado, há, nas obras de John Irving, uma obcecante presença de certos elementos ambíguos (os ursos, as violações, as mutilações, a cegueira, Viena, etc.) que prenunciam o caldeamento da experiência pessoal numa prodigiosa imaginação romanesca, onde se encadeia situações dramáticas, comuns e incomuns, com personagens, muitas vezes demarcados por originais comportamentos simbólicos, mas que, de modo notório, parecem referenciar tipos reais (é o caso do urso Suzie, das Ellen jamesianas, do transsexual Roberta Muldoon, da anã que escreve para crescer, etc.).

 
Mas, para lá destes efeitos estilísticos, existe, nestes romances de John Irving, uma interessante perspectivação da problemática relativa à família (problemática essa bem comum à moderna ficção americana e que, muitas vezes, se encontra acompanhada por uma, aparentemente “leviana”, crítica à instituição psicanalítica).

 
A incapacidade manifesta da instituição familiar em se integrar nos novos quotidianos, industriais e urbanos, em entender os conflitos geracionais e em adequar-se a uma mais abrangente aceitação dos comportamentos sexuais (a psicanálise, ao contribuir para uma melhor inteligibilidade da componente sexual na malha de relações que constitui a família, permitiu percepcionar a sua intencionalidade, alterando, de um modo radical, a forma de a encarar), provocou, nos últimos vinte/trinta anos, uma dinâmica social que motivou o aparecimento de “modus vivendi” fragmentários e contigentes que, por sua vez, contribuíram para uma acentuada desagregação da instituição familiar. Depois de uma fase mais ou menos eufórica a esse "modus vivendi", atingiu-se o momento em que chegaram à idade adulta os seus "frutos" (em gíria, os ”filhos do divórcio”), o que propiciou o aparecimento de um nostálgico posicionamento teórico sobre a família: ora, neste sentido, os romances de John Irving são sintoma de uma geração.

 
O Estranho Mundo de Garp e O Hotel New Hampshire são dois característicos “romances de formação”, em que se narra o nascimento, vida e morte de uma família. Mas, enquanto no primeiro, o núcleo narrativo se desenrola em redor da família que a personagem principal constitui, em O Hotel New Hampshire, a acção desenvolve-se na família originária do narrador até à formação da sua.

 
 Por outro lado, enquanto no primeiro, Garp nasce numa família estruturada na ausência paterna, motivando que toda a sua “educação sentimental” seja feita numa obsessiva protecção daquela que ele próprio constitui, no segundo, a “educação sentimental” do narrador realiza-se na observação dos comportamentos dos membros da família originária, parecendo que o processo posterior se transforma num mero epílogo do essencial de uma existência.

 
 Mas, em qualquer dos romances, há uma mesma visão da instituição familiar: as relações que se estabelecem no seu seio são “perenes e constantes”, sendo este o seu elemento caracterizador. Isto quer dizer que estas relações não estão dependentes do comportamento dos seus membros, que este poderá motivar flutuações conjunturais, mas nunca situações de fractura.

 
 Assim, no “interior” da família, para lá de todos os índices que esta possa atingir de tragédia ou de felicidade, nada se passa que seja provocado a partir de dentro, visto que todos os seus afectos se mantêm em linha contíinua (apenas com débeis modulações) sem sofrerem o desgaste do tempo e pairando de forma “a-histórica”.

 
 Este entendimento da família sobressai, com uma nostálgica sentimentalidade, em toda a acção destes romances. Mas, em O Hotel New Hampshire, é, em particular, notória a importância que John Irving reconhece a esta “bolsa emocional e afectiva” na formação caracteriológica de todos os seus membros, encarando-a como complemento fundamental da gestação incipiente dos homens.

 
Contudo, do “exterior”, esta “bolsa emocional e afectiva” é facilmente rasgável, vertendo, assim, as águas letárgicas (porque eliminam a angústia do tempo) do afecto. Sob a força hipnótica do Outro (nome que aqui iremos dando à Natureza, em particular, às suas imanências que são a Morte e a Sexualidade, sempre soberanas e nómadas), os seus membros poderão ser acometidos de um “impulso de fuga”, de des-identificação, que os impelirá a querer despedaçar os cordões que os prendem.

 
 No entanto, esse impulso de fuga, e isto é bem expresso nas primeiras partes de O Estranho Mundo de Garp, é mutilante, deixando marcas físicas em todo o corpo familiar, já que o “exterior”, onde não existem as defesas institucionais, é brutal, isto é, pertencente ao reino da Natureza: as inúmeras mutilações, que aparecem nos dois romances, têm este sentido; e a obsessiva presença da violação é sintoma também desta compreensão da Natureza, visto que é sempre entendida como consequência trágica, e última, de um impulso sexual não matizado por essa teia de relações perenes e constantes que caracteriza, segundo Irving, a família.

 
 Daí que a família provoque o aparecimento de mecanismos de “vigilância” (o expressivo título de uma das ‘short-stories’ de Garp) em cada membro: cria-se uma teia de fios de sombra, paralela à dos afectos, entre todos os membros da família, obrigando-os a um comportamento hibrido entre o hedónico e o agónico (Helen Garp, quando sente a urgência de uma relação extraconjugal, afirma: ”A questão sou eu. Quero que alguém me preste atenção.”). E a quebra de “vigilância”, resultante dessa atracção pelo “exterior”, provoca culpabilizações (há, em John Irving, vestígios de um sentimento “laicizado” de pecado) que, ao enfraquecerem cada membro face aos outros e a si próprio, estabelecem estatutos de hierarquia que originam um reforço dos códigos de “vigilância” sobre os membros enfraquecidos: a ansiedade da personagem principal de O Estranho Mundo de Garp nasce deste modo.

 
Contudo, uma obsessiva vigilância, uma desconfiança radical em relação ao “exterior”, cria uma "ambiência laboratorial", dentro da instituição familiar, que agudiza o impulso de fuga dos seus membros. Foi esta ambiência que arrastou toda a família de Garp, no primeiro romance agora editado, para um aparatoso acidente rodoviário, situação limite expressivamente descrita e que nos parece crucial na obra de John Irving, em particular se entendermos os romances O Estranho Mundo de Garp e O Hotel New Hampshire como integrantes de uma assumida continuidade.

 
 A partir desse momento, as personagens dos romances de John Irving reflectem a consciência de que a ansiedade de defesa provoca uma falha de simpatia pelo Outro e que essa falha só fragiliza a célula familiar no confronto com a intolerância exterior. De um modo estratégico, começa-se a assumir que a consolidação daquela passa pela quebra do isolamento celular e pela abertura à pregnância do Outro: toda a parte final de O Estranho Mundo de Garp descreve a abertura ao exterior da instituição familiar e como esta beneficia, vinda sempre de fora, da acção do tempo.

 
Porém, enquanto em O Estranho Mundo de Garp, esta abertura ao “exterior”, é entendida (e descrita) como uma inevitabilidade trágica, em O Hotel New Hampshire, romance com uma estrutura muito mais equilibrada, a presença do tempo é encarada como o elemento épico que redimensiona a existência familiar: é este que obriga cada um dos seus membros a um constante confronto, no “exterior”, com todas as formas de intolerância que o caracterizam (os terroristas de Viena) ou a defenderem-se da “lascívia” (na terminologia de Garp), isto é, dessa sexualidade exterior à já referida teia de relações perenes e constantes (as prostitutas de Viena).

 
 Mas se a passagem do tempo vai semeando sinais de Morte no seio da família, e fazendo sempre aparecer a ansiedade e a angústia da sua presença (que nestes romances têm divertidas, e ternas, representações simbólicas: o sapo subaquático, o embalsamado cão Sorrow - que vem sempre à tona de água), ela vai também permitir o reconhecimento do Outro. Na sua busca, a família torna-se um hotel em algures, onde toda a gente pode entrar, desde que “fique aparafusado para toda a vida”, e ao mesmo tempo, um ser voraz, onde tudo deve e pode passar-se (é desse modo que fica “legitimada” a paixão, louca e insuportável, entre irmãos).

 
 Existe, por isso, nestes romances de John Irving, uma gradual convivência com a passagem do tempo (“Os homens de quarenta anos/Aprendem a fechar docemente/As portas dos quartos/A que não regressarão”, diz um poema de Donald Justice, citado em O Hotel New Hampshire) e uma insaciável vontade de viver e de sonhar (o “urso” que sempre se procura e que nos dará a ilusão da inencontrável felicidade) que transmitem um saudável optimismo. Talvez se deva a este contraponto optimista, pano de fundo de todos os registos estilísticos de John Irving, a razão por que estes romances, mesmo com as suas contradições e ingenuidades, se tornaram peças fundamentais de uma literatura que, cada vez mais, vive submersa num ambiente social em que só se referencia a crise e a descrença.

 
Publicado no Expresso em 1985.

 

Título: O Estranho Mundo de Garp
 Autor: John Irving
Tradutor: Maria Adelaide Namorado Freire
Editor: Distri Editora
Ano: 1984
2 vols. (253 + 267 págs.), esg.

 
Título: O Hotel New Hampshire
Autor: John Irving
Tradutor: Ana Falcão Bastos
Editor: Distri Editora
Ano: 1985
421 págs., esg.