A ALEGRIA DE VIVER
A recepção em Portugal da obra de Philippe Sollers é bem
sintomática das mutações que nas últimas décadas se têm manifestado nas
relações culturais entre Portugal e França. Apesar de envolto nas críticas e
nas acusações mais assombrosas, Philippe Sollers é provavelmente um dos
intelectuais que mais influenciou os percursos literários e culturais franceses
nos últimos quarenta anos. E, contudo, sendo certo que a sua obra é conhecida e
(menos) apreciada no sector universitário e por alguns intelectuais, os seus
livros mal foram traduzidos no nosso país. Ora, se compararmos este facto com a
situação das obras de alguns escritores (talvez menos influentes) de uma
geração anterior à sua - que foram bem traduzidas e divulgadas em Portugal -,
torna-se evidente - e por si só demonstrativo - de como a cultura francesa
deixou de ter um ascendente significativo na cultura portuguesa.
Philippe Sollers publicou o seu primeiro romance, Une
Curieuse Solitude, ainda nos finais dos anos cinquenta (tinha apenas 22
anos), tendo sido muito bem recebido pela crítica (segundo rezam as crónicas,
com rasgados elogios de François Mauriac e de Louis Aragon, o que levou o
autor, anos mais tarde, a afirmar que a sua entrada na literatura fora
abençoada pelo Vaticano e pelo Kremlin) e obtendo um expressivo sucesso
comercial. Mas já com o seu segundo romance, Le Parc (que ganhou o
Prémio Médicis), abandona as opções narrativas da primeira obra e abraça
claramente as posições estéticas, então em voga, do “nouveau roman”. Inicia
então uma carreira de crescente afirmação nos circuitos literários, muito em
consequência da fundação, em plena guerra de Argélia, com alguns amigos (o
círculo das suas amizades inclui, nesta altura, a sua mulher, Julia Kristeva,
Jacques Derrida, Jacques Lacan, Louis Althusser, Michel Foucault e Guy Debord),
da revista “Tel Quel” - que se transformou num instrumento de reflexão e
intervenção das vanguardas filosóficas e literárias da França durante os anos
sessenta e setenta - e do seu papel decisivo nos comités editoriais das
Editions du Seuil. Participa de um modo empenhado em todos os grandes debates
ideológicos desta altura (afasta-se do “nouveau roman”, assume-se marxista,
intervem no Maio de 68, defende os maoistas), tornando-se uma presença constante
em todos os “media” (situação que mantem até aos dias de hoje), com
entrevistas, crónicas, crítica literária, polémicas, enquanto, ao mesmo tempo,
vai publicando uma obra ensaística e narrativa com posições cada vez mais
radicais, tanto em termos formais como ideológicos (a obra mais marcante desta
fase é Paradis, constituída por uma gigantesca frase, sem pontuação,
em que se entrecruzam, muitas vezes em forma de “pastiche”, todo o tipo de
discursos).
Porém, no início dos anos oitenta, sai das Editions du
Seuil, extingue a revista “Tel Quel” e entra para os quadros das Editions
Gallimard, onde funda a revista “L’Infini” e uma colecção homónima (que ainda
hoje existem). Inicia então uma fase de ruptura com os seus amigos do passado,
cujo marco principal é, sem dúvida, o romance Femmes, um grande sucesso
comercial, e onde, no estilo “roman à clef”, expõe as privacidades e os
comportamentos de alguns dos seus amigos de outrora (Alberto Moravia, Jacques
Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, etc.), parecendo abandonar as posições
do vanguardismo formal que até aí tinha defendido. Ao mesmo tempo, aproxima-se
dos chamados “novos filósofos” (nos quais pontua Bernard-Henri Levy) e das suas
posições críticas ao “totalitarismo comunista”. É nesta fase – que, com
diversos matizes, se prolonga até aos dias de hoje – que cria um leque amplo e
diversificado de inimigos e críticos, alguns deles seus ex-amigos e “compagnons
de route”, como Angelo Rinaldi, Regis Debray, Patrick Besson, Pierre Bourdieu,
etc., passando a ser uma das figuras de intelectual parisiense mais temída e
detestada. Contudo, o seu ascendente nos circuitos literários e editoriais
continua a crescer, através da sua rede de amizades,
participando, sempre de uma forma frontal e provocatória, em todo o tipo de
debates, sejam eles literários ou não, sejam eles sobre o mais pequeno
“fait-divers” ou sobre a questão mais transcendente (recordo, por exemplo, a
sua defesa de algumas encíclicas de João Paulo II ou as suas posições
pró-israelitas no conflito do Médio Oriente). Hoje, há quem o acuse, através de
denúncias públicas, de “manobrar” por sistema - em favor das suas posições
estéticas e ideológicas e das suas relações de amizade - não só júris de
prémios literários (é o caso do Prémio Goncourt) como críticos e suplementos
literários (é o caso das acusações de compadrio feitas a Josyane Savigneau e ao
“Le Monde des Livres”).
Creio que Philippe Sollers é uma figura que permite
evidenciar bem a complexidade de relações e teias de poder do que se entende
hoje como a “instituição literária” (este termo define o conjunto de circuitos
e relações que se estabelecem, interactivamente, entre autores, empresas
editoras, crítica literária e meios de comunicação social, academias e outras
instituições, públicas e privadas, que promovem a criação literária, a leitura
e as relações autor/obra/leitor e, por fim, o fortalecimento do tecido
empresarial que sustem a produção e a comercialização do livro). De facto, na
proporção da importância crescente que as produções culturais vão tendo na vida
social, económica e política das sociedades modernas, mais complexa e
envolvente se tornam as instituições que lhe servem de suporte e meio de
afirmação. Hoje é uma mera ilusão procurar entender – como pretendem ainda
alguns defensores “puristas” do fenómeno literário - a literatura sem a
“instituição literária” onde, como linfa vital, aquela circula, permitindo o
florescimento e afirmação da “instituição literária” e esta, naturalmente, a
projecção social e a “canonização” do texto literário e do autor. Figuras, como
Philippe Sollers, serão, por isso, inevitáveis emanações da própria
“instituição literária”, cujo ascendente deriva da sua criatividade e
capacidade crítica, da sua competência literária e, por fim, como tantas outras
coisas na vida, do seu poder de sedução. Por isso mesmo, não é aceitável
considerar Philippe Sollers como uma espécie de “aberração”, de “tumor maligno”
a eliminar para bem da literatura, porque intelectuais como ele são, como já
referi, elementos estruturantes e dinamizadores da “instituição literária”:
poderá o leitor estar certo que, todo aquele que afirmar o contrário só o está
a fazer com o intuito de protagonizar um papel nos conflitos de poder (que, como
é natural, no universo literário, assume muitas vezes a face pública de um
conflito geracional) que servem de corrente eléctrica na linha condutora da
história literária.
De qualquer modo, convém fazer um esforço para destrinçar,
na figura de Philippe Sollers, o seu papel como “animador” da “instituição
literária” do seu papel estrito de escritor. E, neste aspecto, pode dizer-se
que a sua obra, após quase cinquenta anos de carreira, é de facto
monumental: excluindo prefácios, participação em obras colectivas ou livros de
entrevistas, confinando-nos ao universo da narrativa (romances, novelas e
diários) e do ensaísmo, este autor já publicou mais de quarenta obras. Razão
mais para estranhar que, em Portugal, após a publicação há décadas de O
Lago, só agora se tenha publicado uma nova obra romanesca do autor,
intitulada A Estrela dos Amantes.
Ao invés do que Philippe Sollers afirmou antes da sua
publicação, esta narrativa não efectua nenhuma ruptura com a sua produção
literária anterior nem com o meio literário parisiense (o autor considerou,
numa das suas típicas “boutades” mediáticas, que este livro era um “11 de
Setembro da edição”). Pelo contrário, A Estrela dos Amantes é bem
representativa da sua mais recente produção literária e do seu fulgor criativo.
No fundo, Philippe Sollers retoma aqui o seu mais fiel fascínio por dois
“corpus” filosóficos que só formalmente parecem antagónicos: o “espírito das
Luzes” e a defesa incondicional do estatuto de livre-pensador (são fascinantes
as suas páginas sobre o modo de estar refractário) e, em paralelo, a “meditação
oriental”, nas suas vertentes mais vitalistas e que buscam a articulação
harmónica entre homem e Natureza. Ao colocar em situação um casal de amantes –
um velho escritor e a sua jovem paixão – numa ilha deserta, vivendo em exclusivo
o seu amor e em constante divagação, no jogo de cumplicidades, verbal e físico,
dos amantes, Philippe Sollers desenvolve, no seu estilo deambulante, uma
reflexão sobre a alegria de viver, principalmente de forma sensorial, na sua
combinatória com a leitura - apetece dizer, com este livro, que não há prazer
de viver sem prazer de ler -, como se esse fosse o princípio vital (não
orgânico) para conseguir escapar à ganga cinzenta do tempo e da morte (é
curioso, por exemplo, como Philippe Sollers considera que o elemento visual, na
sua tentativa de fixação do momento, pertence às “hostes” da morte). É essa
tentativa de repudiar e, ao mesmo tempo, delimitar os campos da morte que leva
o autor às critícas mais virulentas contra os meios sociopolíticos e literários
parisienses e à sua cómoda ambição de se satisfazer com enredos eroto-políticos
e em narrativas que reproduzem, até ao esgotamento da palavra, tramas
anacrónicas. Com a sua arte habitual de “curto-circuitar” referências culturais
e literárias (aparecem aqui, entre outras, as presenças dialogantes de
Shakespeare, Rimbaud, Monteverdi e Baudelaire) e efectuar “jeux de mots”, o que
torna, contudo, mais fascinante esta narrativa de Philippe Sollers é a sua
liricidade imprevista e a capacidade de fazer cintilar as palavras no jogo
libertino dos sentidos e das emoções.
Publicado no Público
em 2003.
Título: A Estrela dos Amantes
Autor: Philippe
Sollers
Tradução: Paula Reis
Ano: 2003
Editor: Teorema
151 págs., esg.
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