O OUTRO SUBLIME
Uma
tentativa de definição do “mainstream” da ficção irlandesa de expressão inglesa
deverá realçar que pretende retratar uma certa rusticidade da ambiência social,
das comunidades imobilizadas no tempo, de quotidianos que se prolongam numa apagada
mediocridade; e, ao mesmo tempo, que as suas personagens são possuídas por uma
permanente ânsia de “fuga”, de procura em contextos sociais alienígenas de
condições mais favoráveis à afirmação individual. Esta definição permite talvez
perceber a relação de amor/ódio que a maior parte dos autores irlandeses tem
com o seu país e que sulca, como uma ferida, toda a sua produção literária. Por
outro lado, deixa entender a razão da imediata impressão de “reconhecimento” que
o leitor português tem perante os ambientes retratados pelos escritores
irlandeses: mesmo com substratos culturais distintos, há, de facto, grandes
similitudes entre os actuais contextos socio-culturais dos dois países.
Estas
constatações são bem nítidas na novela agora traduzida, Noites No Alexandra, de
William Trevor, um autor que começou a publicar nos finais da década de sessenta
e que, depois de ter obtido vários prémios literários no seu país, tem
ultimamente adquirido um grande prestígio além-fronteiras (foi, por exemplo, em
1991, um dos finalistas do Booker Prize, com a sua obra Reading Turgenev).
Noites
No Alexandra é mais uma narrativa, linear e despretensiosa,
sobre a adolescência e o encantamento. O narrador, já com quase sessenta anos, conta
como, quando andava no final dos estudos secundários, durante a II Guerra
Mundial, se fascinou por uma inglesa, casada com um alemão muito mais velho,
“prendendo-se” para o resto da vida. Este adolescente, filho do dono de uma
serração numa cidade de província, com o destino já determinado para seguir as
pegadas do pai, vislumbra, neste casal, um universo tão fascinante e
desconhecido como um “vale encantado”: primeiro, é o seu cosmopolitismo, que
lhe dá um comportamento “distinto” e intrigante em relação a comunidade onde se
insere; segundo, é a experiência “aventurosa” deste casal, anómalo em termos históricos, de resistência a
animosidade dos respectivos países; terceiro, é a sua relação de afecto, feita
de um “jogo” de árduas e radicais dádivas, assente numa “caritas” premente de
quem sabe que, a qualquer momento, tudo se interromperá com a descida abrupta
dos mantos negros da morte.
Ao
ficar como herdeiro material deste “ jogo de dádivas”, o narrador sente-se
condenado a ser a testemunha ‘fiel” desta “ficção” sublime”. O “Alexandra”, o
magnifico cinema que o alemão constrói para oferecer à mulher, permanecerá, ao
revelar todas as noites outras “ficções intocáveis”, como o espaço onde
“renascerá” o clima mágico e contagiante daquela relação amorosa, como o “vestígio
material” do universo que aquele casal veio desvendar no seio daquela
comunidade rural.
Por
contraste, o que mais evidencia esta história simples, de aprazível leitura, de
Noites
No Alexandra, é a falta de expectativas de uma sociedade - bem encarnada
na nostálgica “paixão” do narrador pela relação amorosa de outrem. Ou, noutro
registo de leitura, que só há “sublime” na existência dos outros, apreendida, inevitavelmente,
como ficção.
Publicado
no Público em 1993.
Titulo: Noites No Alexandra
Autor: William Trevor
Tradução: Emanuel Lourenço Godinho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
113 págs, € 13,12
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