terça-feira, 26 de agosto de 2014

PHILIP LARKIN

 
 
 
 
 
 
 
A INTENSIDADE DO TRIVIAL

 
O tempo escoa-se. E, de repente, acreditamos que ”o melhor das nossas vidas” (para parafrasear o título de um conhecido filme de William Wyler) já passou. Quando? Em que momento a vida das pessoas começa a descer a absurda encosta? “Nada se sabe, ou, com um pouco de sorte, julga-se descobrir depois”, responde-nos Philip Larkin. “E o momento é tão subliminar que nem se pode falar de tragédias”. A principal substância das existências está no “inominável” dos quotidianos. ”Como? E a paixão?”, retorquir-lhe-á o leitor. “Pois, essa é a “irrealidade com que preenchemos a nossa realidade”, concluirá o poeta.

 
É esta, em síntese, a convicção que norteia Uma Rapariga no Inverno, a derradeira tentativa romanesca de Philip Larkin, feita ainda ele tinha vinte e seis anos. Depois, a ficção tornou-se, nas próprias palavras do autor, “uma experiência demasiado fatigante e ilusória”. A partir daí, Philip Larkin vai dedicar-se em exclusivo ao trabalho poético.

 
Estava-se em 1947. Os característicos hábitos insulares do povo britânico começavam a recuperar-se, mesmo transformados, da “Batalha do Ar”, da deslocação de milhares de homens para as frentes de guerra, da presença de refugiados oriundos de todos os cantos de Europa continental. Em termos poéticos, a Inglaterra rendia-se aos clamores visionários que Dylan Thomas, o incendiário verbal, o crucificado nas próprias obsessões sexuais e panteístas, declamava por toda a parte, até cair morto por excesso de álcool. Por outro lado, assistia-se à consagração definitiva da obra e da figura de D.H.Lawrence.

 
Neste contexto social e estético, de forma bem silenciosa, começa a erguer-se a obra poética de Philip Larkin e, em paralelo, aparece este romance com sinal explícito de manifesto. Contra o discurso tonitruante dos “apocalipsistas”. Contra os experiencialismos desgastantes dos “modernismos” e “vanguardas” e a sua obsessiva necessidade de “inventar caminhos para parte nenhuma”. E em defesa de um realismo diferente, longe das longas discursividades exaltadas, ajustado às rotinas e hábitos dos dias comuns, contido ao fluir cinzento dos tempos.

 
É óbvio que tal “manifesto” não era motivado por razões primárias de demarcação geracional, mas pela urgência sentida de afirmar uma nova poética que, em moldes clássicos e na aparência simples, fosse atenta à triste ironia dos silêncios, à epicidade dos quotidianos feitos de breves alegrias e desencantos, ao apagamento das existências. E diga-se de passagem, de forma coerente com a sua obra, a vida de Philip Larkin, este poeta que é hoje considerado um dos maiores e dos mais genuinamente britânicos do pós-guerra, foi uma obstinada tentativa de anulação e recuo. A sua biografia confina-se a uma escrita diária (“ao fim do dia, depois de lavar a loiça”, como ele próprio referiu numa entrevista). Para lá disso, sabe-se por algumas declarações públicas, que levou uma existência solitária, exercendo, como a personagem principal de Uma Rapariga no Inverno, actividades de bibliotecário em obscuras cidades de província, que sempre foi conservador (“porque a esquerda é o vicio”), que leu muito (“mas principalmente romances fáceis”) e que a sua grande paixão foi o jazz anterior a Charlie Parker e ao “bop”.

 
Uma Rapariga no Inverno narra, em três partes, dois momentos da humilde existência de uma jovem refugiada de guerra (donde, é coisa que o autor, de forma deliberada, nunca esclarece, dando-lhe uma evidente carga simbólica): um dia de trabalho, na aparência trivial, e as férias que, alguns anos antes, passou em Inglaterra, a convite de um rapaz com quem mantinha uma correspondência regular com vista a aperfeiçoar o domínio do inglês.

 
Esta trama bem vulgar vai, no entanto, servir a Philip Larkin para revelar as intensidades que se ocultam sob as situações triviais, estruturando inteligentemente o romance de modo a tornar bem nítida a força anímica dos processos ilusórios.

 
Assim, na primeira parte, a personagem principal é contextualizada através de várias situações (as conversas banais com as colegas no trabalho, uma discussão com o chefe, o acompanhamento de uma colega ao dentista, etc.) que evidenciam a dimensão de circuito incomunicante, opaco, em que se encerra, de forma quase irremediável, o comum quotidiano. Contudo, percebe-se já aqui que a aparente esterilidade deste quotidiano pode ser transfigurada por breves gestos comunicacionais (o auxílio a uma colega com uma confrangedora dor de dentes) ou pela expectativa de algo (uma carta, no caso do romance) que perspective o retorno a um idílico momento do passado.

 
Na segunda parte, narra-se esse “momento idílico” que, no fundo, funciona como raiz psicológica que permite a subsistência existencial da personagem. E o que se demarca na narração desse momento (as já referidas férias em Inglaterra) é o seu carácter convencional e como as relações que nele se estabeleceram (em particular com Robin, o rapaz que a convidara e de quem, mais tarde, esperará, ansiosa, uma carta) são, antes do mais, um jogo de mal-entendidos e não-ditos. Torna-se, assim, evidente que a sua dimensão idílica nada tem de real, mas que foi originada pela cristalização na memória de uma situação que é encarada, a partir do presente, num contexto determinado de carências.

 
Por fim, na terceira parte, regressa-se ao presente da personagem e a uma aprendizagem e revalorização de todo o real que a rodeia: a descoberta acidental de que a opacidade das existências é sempre ilusória (o seu chefe, até aí a personificação da incomunicabilidade e do estereótipo, transforma-se, de repente, numa perturbante figura que vive uma conflituosa situação afectiva, tendo, por isso, níveis diversos de existência) e que as “exaltadas” comunicabilidades de um encontro no presente ou ainda o carácter idílico de um momento no passado só têm esse sentido num real psicológico.

 
No fundo, de um modo desencantado e com uma amarga ironia, Uma Rapariga no Inverno vem afirmar aquilo que incansavelmente a literatura contemporânea, de uma forma ou de outra, tem repetido: que não existe realidade exterior ao olhar e que este, de um modo inevitável, conflui para o mesmo ponto, tornando-os indissociáveis, verdade e ficção, transformando as existências numa cadeia ininterrupta de convicções e ilusões.

 
Publicado no Expresso em 1990.

 

 
Título: Uma Rapariga no Inverno
Autor: Philip Larkin
Tradução: Ana Maria Chaves
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
248 págs., € 12,59
 
 
 



domingo, 10 de agosto de 2014

LUIS SEPÚLVEDA

 
 
 
 
 

ATREVER-SE A VOAR

 
Há livros que têm a singeleza de procurar responder às necessidades do tempo: é essa a principal qualidade desta fábula que Luis Sepúlveda agora escreveu com o longo título de História De Uma Gaivota E Do Gato Que A Ensinou A Voar. Talvez esta difícil qualidade seja resultante de uma exigência comum às restantes obras deste escritor chileno, que a si próprio se define como escritor militante; mas, como é natural, transparece de uma forma mais nítida numa obra que pretende atingir um público juvenil.

 
A trama deste pequeno livro está quase por completo contida no título. E essa eliminação do efeito surpresa da trama, pela sua enunciação no título, leva forçosamente o leitor a concentrar a sua atenção na fruição estilística, na criatividade dos elementos secundários da narrativa e, em particular, no “ensinamento” da fábula, dando assim realce ao seu valor de parábola.

 
Em termos estilísticos, História De Uma Gaivota... foi nitidamente “trabalhada” para acentuar a função comunicante, neutralizando os seus efeitos simbólicos até ao limite da mais límpida legibilidade. Há que transmitir a urgente consciência de como a tragédia ambiental é já quotidiana do universo infantil e, em paralelo, estimular o espírito de enfrentá-la com um sentido colectivo de entreajuda que auxilie cada um a cumprir o seu lugar no mundo. É esse o objectivo da tolerância - o “ensinamento” principal desta obra, segundo algumas entrevistas do autor. Por isso, o empenhamento do gato do título, em posicionar a gaivota na “ordem das coisas”, só é conseguido porque é assumido pelo “colectivo” dos gatos do porto de Hamburgo e pelo “poeta-humano” que ensina à gaivota a melhor forma de concretizar o seu “sonho”: ousar assumi-lo como destino.

 
No entanto, talvez o melhor “ensinamento” deste livro seja aquele que menos explícito é, mas que mais intimamente está subjacente à sua escrita: como um bom livro sobre gatos, o que nele mais “transpira” é um intenso prazer de viver, onde tudo, desde a aceitação da diversidade dos seres, o afrontamento dos interditos, ou a superação das dificuldades e do sofrimento, parece contribuir para reforçar o júbilo da vida. E talvez seja por isso que esse “gozo” de viver (e, claro, de escrever) transpareça na dimensão lúdica desta pequena obra - é deliciosa a enumeração borgesiana do conteúdo do “Harry - Bazar do Porto” - que consegue colocar nos limites do suportável a sua componente “pedagógica”.

 
Fique clara, porém, uma coisa: este livro não pretende ser mais nem menos do que um livro para a infância. E é um bom livro para a infância. Por isso, parece-nos de uma ridícula e confrangedora banalidade a frase promocional que aparece na cinta que acompanha esta edição. Será que ainda tem algum efeito comercial escrever que um bom livro para a infância é “para jovens dos 8 aos 88”? 

 

Publicado no Público em 1997.

 

 
Título: História De Uma Gaivota E Do Gato Que A Ensinou A Voar
Autor: Luis Sepúlveda
Tradução: Pedro Tamen
Editor: Ed. Asa
Ano: 1997
122 págs.,  € 7,75

 

 



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

WILLIAM TREVOR


 
 
 

O OUTRO SUBLIME

 

Uma tentativa de definição do “mainstream” da ficção irlandesa de expressão inglesa deverá realçar que pretende retratar uma certa rusticidade da ambiência social, das comunidades imobilizadas no tempo, de quotidianos que se prolongam numa apagada mediocridade; e, ao mesmo tempo, que as suas personagens são possuídas por uma permanente ânsia de “fuga”, de procura em contextos sociais alienígenas de condições mais favoráveis à afirmação individual. Esta definição permite talvez perceber a relação de amor/ódio que a maior parte dos autores irlandeses tem com o seu país e que sulca, como uma ferida, toda a sua produção literária. Por outro lado, deixa entender a razão da imediata impressão de “reconhecimento” que o leitor português tem perante os ambientes retratados pelos escritores irlandeses: mesmo com substratos culturais distintos, há, de facto, grandes similitudes entre os actuais contextos socio-culturais dos dois países.

 
Estas constatações são bem nítidas na novela agora traduzida, Noites No Alexandra, de William Trevor, um autor que começou a publicar nos finais da década de sessenta e que, depois de ter obtido vários prémios literários no seu país, tem ultimamente adquirido um grande prestígio além-fronteiras (foi, por exemplo, em 1991, um dos finalistas do Booker Prize, com a sua obra Reading Turgenev).

 
Noites No Alexandra é mais uma narrativa, linear e despretensiosa, sobre a adolescência e o encantamento. O narrador, já com quase sessenta anos, conta como, quando andava no final dos estudos secundários, durante a II Guerra Mundial, se fascinou por uma inglesa, casada com um alemão muito mais velho, “prendendo-se” para o resto da vida. Este adolescente, filho do dono de uma serração numa cidade de província, com o destino já determinado para seguir as pegadas do pai, vislumbra, neste casal, um universo tão fascinante e desconhecido como um “vale encantado”: primeiro, é o seu cosmopolitismo, que lhe dá um comportamento “distinto” e intrigante em relação a comunidade onde se insere; segundo, é a experiência “aventurosa” deste casal,  anómalo em termos históricos, de resistência a animosidade dos respectivos países; terceiro, é a sua relação de afecto, feita de um “jogo” de árduas e radicais dádivas, assente numa “caritas” premente de quem sabe que, a qualquer momento, tudo se interromperá com a descida abrupta dos mantos negros da morte.

 
Ao ficar como herdeiro material deste “ jogo de dádivas”, o narrador sente-se condenado a ser a testemunha ‘fiel” desta “ficção” sublime”. O “Alexandra”, o magnifico cinema que o alemão constrói para oferecer à mulher, permanecerá, ao revelar todas as noites outras “ficções intocáveis”, como o espaço onde “renascerá” o clima mágico e contagiante daquela relação amorosa, como o “vestígio material” do universo que aquele casal veio desvendar no seio daquela comunidade rural.

 
Por contraste, o que mais evidencia esta história simples, de aprazível leitura, de Noites No Alexandra, é a falta de expectativas de uma sociedade - bem encarnada na nostálgica “paixão” do narrador pela relação amorosa de outrem. Ou, noutro registo de leitura, que só há “sublime” na existência dos outros, apreendida, inevitavelmente, como ficção.

 

Publicado no Público em 1993.

 

Titulo: Noites No Alexandra
Autor: William Trevor
Tradução: Emanuel Lourenço Godinho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
113 págs, € 13,12