A
INTENSIDADE DO TRIVIAL
O
tempo escoa-se. E, de repente, acreditamos que ”o melhor das nossas vidas”
(para parafrasear o título de um conhecido filme de William Wyler) já passou.
Quando? Em que momento a vida das pessoas começa a descer a absurda encosta?
“Nada se sabe, ou, com um pouco de sorte, julga-se descobrir depois”, responde-nos
Philip Larkin. “E o momento é tão subliminar que nem se pode falar de tragédias”.
A principal substância das existências está no “inominável” dos quotidianos. ”Como?
E a paixão?”, retorquir-lhe-á o leitor. “Pois, essa é a “irrealidade com que
preenchemos a nossa realidade”, concluirá o poeta.
É
esta, em síntese, a convicção que norteia Uma Rapariga no Inverno, a
derradeira tentativa romanesca de Philip Larkin, feita ainda ele tinha vinte e
seis anos. Depois, a ficção tornou-se, nas próprias palavras do autor, “uma
experiência demasiado fatigante e ilusória”. A partir daí, Philip Larkin vai
dedicar-se em exclusivo ao trabalho poético.
Estava-se
em 1947. Os característicos hábitos insulares do povo britânico começavam a
recuperar-se, mesmo transformados, da “Batalha do Ar”, da deslocação de
milhares de homens para as frentes de guerra, da presença de refugiados oriundos
de todos os cantos de Europa continental. Em termos poéticos, a Inglaterra rendia-se
aos clamores visionários que Dylan Thomas, o incendiário verbal, o crucificado
nas próprias obsessões sexuais e panteístas, declamava por toda a parte, até
cair morto por excesso de álcool. Por outro lado, assistia-se à consagração definitiva
da obra e da figura de D.H.Lawrence.
Neste
contexto social e estético, de forma bem silenciosa, começa a erguer-se a obra
poética de Philip Larkin e, em paralelo, aparece este romance com sinal explícito
de manifesto. Contra o discurso tonitruante dos “apocalipsistas”. Contra os experiencialismos
desgastantes dos “modernismos” e “vanguardas” e a sua obsessiva necessidade de
“inventar caminhos para parte nenhuma”. E em defesa de um realismo diferente,
longe das longas discursividades exaltadas, ajustado às rotinas e hábitos dos
dias comuns, contido ao fluir cinzento dos tempos.
É
óbvio que tal “manifesto” não era motivado por razões primárias de demarcação
geracional, mas pela urgência sentida de afirmar uma nova poética que, em
moldes clássicos e na aparência simples, fosse atenta à triste ironia dos silêncios,
à epicidade dos quotidianos feitos de breves alegrias e desencantos, ao
apagamento das existências. E diga-se de passagem, de forma coerente com a sua
obra, a vida de Philip Larkin, este poeta que é hoje considerado um dos maiores
e dos mais genuinamente britânicos do pós-guerra, foi uma obstinada tentativa
de anulação e recuo. A sua biografia confina-se a uma escrita diária (“ao fim
do dia, depois de lavar a loiça”, como ele próprio referiu numa entrevista). Para
lá disso, sabe-se por algumas declarações públicas, que levou uma existência solitária,
exercendo, como a personagem principal de Uma Rapariga no Inverno, actividades
de bibliotecário em obscuras cidades de província, que sempre foi conservador
(“porque a esquerda é o vicio”), que leu muito (“mas principalmente romances fáceis”)
e que a sua grande paixão foi o jazz anterior a Charlie Parker e ao “bop”.
Uma
Rapariga no Inverno narra, em três partes, dois
momentos da humilde existência de uma jovem refugiada de guerra (donde, é coisa
que o autor, de forma deliberada, nunca esclarece, dando-lhe uma evidente carga
simbólica): um dia de trabalho, na aparência trivial, e as férias que, alguns
anos antes, passou em Inglaterra, a convite de um rapaz com quem mantinha uma correspondência
regular com vista a aperfeiçoar o domínio do inglês.
Esta
trama bem vulgar vai, no entanto, servir a Philip Larkin para revelar as
intensidades que se ocultam sob as situações triviais, estruturando
inteligentemente o romance de modo a tornar bem nítida a força anímica dos processos
ilusórios.
Assim,
na primeira parte, a personagem principal é contextualizada através de várias
situações (as conversas banais com as colegas no trabalho, uma discussão com o
chefe, o acompanhamento de uma colega ao dentista, etc.) que evidenciam a dimensão
de circuito incomunicante, opaco, em que se encerra, de forma quase irremediável,
o comum quotidiano. Contudo, percebe-se já aqui que a aparente esterilidade
deste quotidiano pode ser transfigurada por breves gestos comunicacionais (o
auxílio a uma colega com uma confrangedora dor de dentes) ou pela expectativa
de algo (uma carta, no caso do romance) que perspective o retorno a um idílico
momento do passado.
Na
segunda parte, narra-se esse “momento idílico” que, no fundo, funciona como
raiz psicológica que permite a subsistência existencial da personagem. E o que
se demarca na narração desse momento (as já referidas férias em Inglaterra) é o
seu carácter convencional e como as relações que nele se estabeleceram (em
particular com Robin, o rapaz que a convidara e de quem, mais tarde,
esperará, ansiosa, uma carta) são, antes do mais, um jogo de mal-entendidos e não-ditos.
Torna-se, assim, evidente que a sua dimensão idílica nada tem de real, mas que
foi originada pela cristalização na memória de uma situação que é encarada, a
partir do presente, num contexto determinado de carências.
Por
fim, na terceira parte, regressa-se ao presente da personagem e a uma
aprendizagem e revalorização de todo o real que a rodeia: a descoberta
acidental de que a opacidade das existências é sempre ilusória (o seu chefe, até
aí a personificação da incomunicabilidade e do estereótipo, transforma-se, de repente,
numa perturbante figura que vive uma conflituosa situação afectiva, tendo, por
isso, níveis diversos de existência) e que as “exaltadas” comunicabilidades de
um encontro no presente ou ainda o carácter idílico de um momento no passado só
têm esse sentido num real psicológico.
No
fundo, de um modo desencantado e com uma amarga ironia, Uma Rapariga no Inverno
vem afirmar aquilo que incansavelmente a literatura contemporânea, de uma forma
ou de outra, tem repetido: que não existe realidade exterior ao olhar e que este,
de um modo inevitável, conflui para o mesmo ponto, tornando-os indissociáveis,
verdade e ficção, transformando as existências numa cadeia ininterrupta de
convicções e ilusões.
Publicado
no Expresso em 1990.
Título:
Uma Rapariga no Inverno
Autor:
Philip Larkin
Tradução:
Ana Maria Chaves
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano:
1990
248
págs., € 12,59
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