Um Escher romanesco
Não há
dúvida que um crime impune é mais intrigante do que aquele em que o culpado
recebeu as consequentes tramitações legais. A impunidade de um crime provoca
sempre uma desordem que expõe, como num fruto aberto, as insuficiências da
justiça e da moral.
É sobre
um crime “ilibado” que Friedrich Dürrenmatt (n. 1921), um dos mais importantes
escritores e dramaturgos suíços de expressão alemã, escreveu este último
romance, utilizando, tal como nas obras que publicou a partir dos anos cinquenta
(O
juiz e o seu carrasco, A suspeita, A promessa, etc.), um enredo
policial. Genericamente, pode afirmar-se que toda a sua produção romanesca,
sempre marcada por uma aguçada ironia e por uma particular tonalidade de
pessimismo existencial, gira em torno das manifestações do Mal e do sentimento
de culpa.
Justiça foi
um romance que Dürrenmatt esboçou em 1957 e que resolveu, aproveitando a
realização de uma edição conjunta das suas obras, refundir, por “divertimento e diletantismo”, em 1987.
Mas se o fez, como referiu nessas declarações recentes, com este objectivo, conseguiu,
dessa forma, sem sombra de dúvidas, produzir um daqueles romances que “prendem”
o leitor do princípio ao fim.
Sabe-se
como este tipo de emoção é daqueles que mais equívocos provocam (quantas vezes
descobrimos, perplexos, que essas obras, que tanto nos seduziram, não
“aguentam” uma segunda leitura…). Mas no caso de Justiça, o que atrai a nossa
atenção é um rastro brilhante de inteligência: impressiona a capacidade
demonstrada em questionar de forma romanesca, o modo hábil de encadear situações
e diálogos, o humor renovado de página para página. Tudo isto numa clareza de
escrita que, sem a espartilhar por objectivos demasiado explícitos, sabe, de
forma notória, o que quer e que, por isso, parece jorrar naturalmente.
Tudo
começa quando um notável suíço, o deputado e doutor “honoris causa” Isaak
Kohler, entra num restaurante, à hora do almoço e, perante uma enorme
clientela, resolve interromper o repasto de um professor universitário,
assassinando-o. Condenado à prisão perpétua, o deputado solícita ao jovem advogado
Spät, em dificuldades financeiras, que pondere a hipótese, por razões de pura
ciência jurídica, de ser outro o assassino do crime porque fora julgado. E o
advogado, à revelia da sua consciência e das suas certezas, consegue levantar
as pistas “teóricas” que vão permitir a absolvição do criminoso. É isto que é narrado
num relatório, que constitui as duas principais partes do romance, escrito pelo
advogado Spät, em estado de permanente alcoolização, e que ele pretende fazer
chegar as mãos do comandante da polícia, após ter reposto a justiça no seu
devido lugar, matando o assassino e suicidando-se. Por fim, a terceira parte da
obra tem como narrador o próprio autor quando este, trinta anos mais tarde, trava
conhecimento com os intervenientes deste caso e descobre, no meio dos seus papéis,
o referido relatório.
Um dos
aspectos interessantes de Justiça é o seu enredo deliberadamente
inverosímil. Dürrenmatt parte do princípio de que o quadro romanesco é apenas
ficcional e, portanto, a verosimilhança está só na inter-relação lógica dos
elementos do romance. Não se espante, por isso, o leitor por ver aparecer
empresas industriais de próteses, que afinal fabricam fundamentalmente armas de
guerra e são dirigidas por médicos anões, advogados que são ex-assassinos e que
apenas estão interessados em libertar criminosos da alçada da justiça, frágeis
e corrompidos campeões olímpicos, melómanos que só gostam de ouvir várias
sinfonias ao mesmo tempo, etc.
No
entanto, esta inverosimilhança aparece num contexto de aparência real, o que
transforma este romance numa espécie de parábola crítica dos mecanismos sociais
e políticos das classes dominantes suíças. Esta dimensão é ainda reforçada pelo
facto de todas as personagens de Justiça terem um comportamento
social que se poderia considerar como amoral. Simplesmente, é inadequado
classificar desta forma o seu comportamento, visto que, para Dürrenmatt, a
moral, ao incidir na intencionalidade da acção, pertence a esfera do privado e não
do social.
É a justiça,
como instrumento de concertação social, que intervém sobre os actos, sendo
daqui decorrente a sua principal insuficiência. Porque se a justiça incide
sobre actos, essa realidade é obviamente passada, e como tal, um jogo de
causalidades, de interdependências, sujeito a interpretações, à formulação de uma
“ficção”. O romance de Dürrenmatt, partindo desta concepção de realidade e de
justiça, está, portanto, estruturado em redor de uma interrogação essencial: se
a realidade, desde que passada, é um campo de verdades diversas, conforme o seu
lugar originário e uma presumível “profundidade” das lógicas interpretativas
possíveis, não terá de ser arbitrária a execução da justiça? Não será a definição,
em termos sociais, da culpa e da inocência, uma mera interpretação?
Mesmo
o logro que leva a revolta do advogado Spät, tentando repôr a justiça que crê
ser certa, é resultante da consciência de saber qual o verdadeiro crime do
deputado Isaak Kohler: o de intervir na realidade como um exímio jogador de bilhar,
dominando todos os efeitos encadeados da sua acção, identificando-se, assim, de
forma profanante, com o Grande Criminoso que é a figura divina.
A
estrutura romanesca de Justiça acaba, por fim, por reflectir
toda esta problemática, porque, ao perseguir as deambulantes inquirições do
advogado Spät pelas diversas personagens que, directa ou indirectamente, estão
relacionadas com o crime, vai ocultando, como nas gravuras de Escher, verdades
com outras verdades possíveis e encadeando, portanto, a presumível realidade
numa “visível” ilusão.
Publicado
no Expresso em 1987.
Título:
Justiça
Autor:
Friedrich Dürrenmatt
Tradutor:
Maria Emília Ferros Moura
Editor:
Relógio d’Água
Ano: 1987
230
págs., € 10,91
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