O CRISÂNTEMO VERMELHO
Um aspecto que, com o passar dos tempos, se torna mais
evidente, quando nos debruçamos sobre a figura de Yukio Mishima, é que este
escritor se tornou um ícone. E, quando uma entidade se transforma num ícone, uma
constatação é quase sempre inevitável: a verdadeira personalidade, que esse
ícone representa, fica oculta e objectivamente desconhecida – em particular
para o grande público que reconhece o ícone, julgando, assim, que conhece a
personalidade.
Ora, como ícone, Yukio Mishima representa muitas
coisas. Antes do mais, a própria figura do “escritor japonês” no Ocidente. De
facto, mesmo tendo em consideração o sucesso ocidental de alguns escritores de
gerações posteriores (estou a recordar-me de Haruki Murakami ou de Yoshimoto
Banana), não há nenhum outro autor japonês que se aproxime sequer do
reconhecimento público que obteve Yukio Mishima no Ocidente (e não estou a
esquecer os autores que obtiveram o Prémio Nobel, como Yasunari Kawabata ou
Kenzaburo Oê).
Segundo, devido ao seu trágico fim, Yukio Mishima é
encarado como a personificação do artista que ultrapassou os limites do
possível na defesa dos valores culturais do Japão tradicional. O espectacular sacrifício
final do escritor transmite a imagem de extremo guardião desses valores
tradicionais, perante a ofensiva avassaladora dos modelos culturais que os EUA foram
impondo ao Japão, em resultado da sua derrota militar na II Guerra Mundial.
Terceiro, Yukio Mishima é considerado um dos
autores que mais contribuíram para a sobrevalorização da realidade corpórea, aparecendo
esta, na sua plenitude física, como o radical sustentáculo do homem. Esta
valorização da carnalidade, em termos filosóficos e estéticos, é não só uma
componente temática central na sua obra literária, mas, como veremos mais
adiante, um dos elementos cruciais nas diversas facetas que revestiu a sua
produção artística.
Quarto, Yukio Mishima conseguiu, em termos literários
e artísticos, dar um estatuto de plena cidadania ao erotismo homossexual. Neste
sentido, e mesmo tendo em consideração a ambivalência com que sempre lidou com
o seu desejo sexual, a figura do escritor tornou-se, nos tempos modernos, um
dos estandartes, em particular no Ocidente, da comunidade homossexual.
Por último, Yukio Mishima tornou-se um exemplo extremo
de autor que condiciona, sob os mesmos objectivos estéticos e éticos, vida e
obra, equiparando-as a simples meios para atingir uma beleza que as transcende,
mesmo manifestando-se apenas nelas. Saliente-se que os próprios objectivos
estéticos e éticos estão, para o escritor, estreitamente entrelaçados e, na
circunstância de existir alguma hierarquização, será sempre do corpo em relação
ao novelo ininterrupto da escrita e da obra.
Quando, em termos sociais, se faz referência a Yukio
Mishima, é habitual que os nossos interlocutores façam alusão ao conjunto de retratos
que o autor tirou nas décadas de cinquenta e sessenta (depois de, já adulto, se
ter dedicado a uma obsessiva preparação física e a treinar diversas artes
marciais, em particular “kendo”), servindo-se da arte dos notáveis fotógrafos
Eikoh Hosoe e Kishin Shinoyama, ou que chamem a atenção para as posições, francamente
provocatórias perante a sociedade democrática japonesa, de deificação da figura
do Imperador, ou ainda para o papel do escritor na organização de um exército
de samurais modernos (a milícia “Tate no Kai”) que ambicionava ser o bastião de
defesa de um Japão tradicional, puro e incorruptível. Porém, é raro ouvir-se referências
concretas à sua obra literária.
Ao observar o conjunto da produção literária de
Yukio Mishima, um dos aspectos que mais impressiona é a sua dimensão, tendo em
conta que o autor morreu em plena maturidade criativa: nos quarenta e cinco
anos que duraram a sua vida (1925-1970), publicou perto de quarenta romances,
cerca de duas dezenas de colectâneas de novelas, vários volumes de peças de
teatro e de ensaio, ao mesmo tempo que mantinha uma constante intervenção pública,
com polémicas sobre diversos problemas culturais e políticos (teve enormes
repercussões a polémica que manteve com o futuro Prémio Nobel Kenzaburo Oê
sobre as relações entre homossexualidade e comportamentos de extrema-direita ou
o debate conflituoso que teve na Universidade de Tóquio, nos finais da década
de sessenta, com estudantes esquerdistas e comunistas que o acusavam de
defender posições fascistas).
Além disso, é sabido que Yukio Mishima foi sempre um
leitor compulsivo, devorando não só obras de autores nipónicos (é conhecida a
importância que teve no seu pensamento algumas obras clássicas japonesas, em
especial as relacionadas com as regras de conduta samurai, assim como a produção
de alguns autores contemporâneos, como é o caso de Junichirô Tanizaki e de Yasunari
Kawabata), mas também obras da literatura ocidental, em particular a francesa
(lembro, para referir apenas algumas que deixaram claro vestígio na sua actividade
literária, a obra de autores como Raymond Radiguet, Jean Cocteau, Georges Bataille,
Sade, etc).
Numa produção tão extensa, é evidente que os
comentadores têm tendência para destacar certas obras em detrimento de outras,
de acordo com o seu gosto pessoal: no meu caso, irei salientar, como marcos
fundamentais, os romances Confissões de uma Máscara (1949) e O
Templo Dourado (1956) e a tetralogia O Mar da Fertilidade
(1964-1970), não só porque são verdadeiras obras-primas, mas também porque são exemplares
na progressão do pensamento de Yukio Mishima. Saliente-se – e esse é, sem
dúvida, um aspecto muito relevante na obra deste autor – que existe uma
profunda coerência evolutiva em toda a sua produção literária, alicerçada numa
complexidade estrelar de conceitos e numa teia de obsessões que, de forma gradual,
vão evoluindo e encaminhando-se para um final que teria de ser inevitavelmente
trágico.
Confissões de uma Máscara, que o autor publicou quando tinha vinte e quatro
anos, é um romance de características autobiográficas, onde um jovem descobre,
de forma dilacerada, o seu desejo homossexual. Dilacerada, porque a personagem
principal assume que a manifestação do seu desejo tem um carácter perverso, já que
a homossexualidade transforma o desejo do outro na busca de uma representação narcísica.
Sendo assim, o desejo homossexual torna-se perverso por ser, na sua essência,
reflector, como um espelho, e não permitir, como sucede com o desejo
heterossexual, a “saída de si próprio” do sujeito para alcançar o momento de
dissolução no outro (como Yukio Mishima formulará, de forma clara, mais tarde,
após a empolgada leitura da obra de Georges Bataille).
Esta concepção do desejo (que vai desenvolvendo e
amadurecendo ao longo dos anos) nunca permitiu que Yukio Mishima tivesse uma
relação pacífica com a sua própria homossexualidade. Pelo contrário, terá
tendência a tornar-se tragicamente contraditória: por um lado, vai reforçando-se,
no seu pensamento, a componente narcísica, ao cuidar do seu próprio corpo como
representação material da identidade (movimento identitário); por outro, ao
considerar a Morte como o momento sublime da unidade cósmica (satisfação plena
do desejo que tem, como objectivo final, o desaparecimento do eu), começa a
desenvolver uma obsessão suicida, à procura apenas de uma motivação “teatral”
para se concretizar.
Por volta dos trinta anos, começa a espelhar-se, no
seu pensamento e na sua obra, um conceito que, tendo estado sempre presente, se
torna agora fulcral: a ideia do Belo como sentido transfigurador da existência.
Neste aspecto, o romance O Templo Dourado é exemplar para
compreender a forma como o Belo passa a ser entendido por Yukio Mishima: a
tortuosa paixão do monge, que serve como personagem principal, pela beleza avassaladora
do templo Kinkakuji e a sua incapacidade em aceitar-se, perante aquela beleza
sublime, como ser confinado e perecível, leva-o a destruir-se ao tentar
consumir pelo fogo o objecto da sua adoração.
Saliente-se que a noção de Belo, em Yukio Mishima , está
profundamente associada à ideia de representação, uma vez que o Belo, na sua
essência, é inacessível: a alma manifesta-se na beleza de um corpo, a “alma
imortal japonesa” na encarnação do Imperador, o conceito estético na
representação plástica, literária ou teatral. Posteriormente, concebe toda a
existência como uma representação sujeita à determinação do Belo: é Ele que se
deve manifestar na superfície do corpo e nas suas emoções, assim como no gesto
e no texto.
É neste contexto que deve ser compreendido esse
projecto literário, que tem tanto de ambicioso como de insólito, chamado O Mar
da Fertilidade. Este título (que alude a uma região da Lua) é a afirmação
irónica da esterilidade de existências que, mesmo pulsando de vida e de
juventude, estão condenadas a redimir-se por um acto de beleza mortífera que
supere a mera representação - da mesma forma que o protagonista de uma peça Nô só
poderá abandonar a sua máscara e encarnar a sua personagem se morrer em
cena.
O “seppuku” teatral, encenado para que a beleza do
gesto superasse a própria motivação que o originou (a tentativa de um golpe
militar que permitisse retomar o antigo poder do Imperador), foi preparado até
ao pormenor (Yukio Mishima deixou na editora, pronto para ser publicado, o último
romance de O Mar da Fertilidade, no dia em que se suicidou), consciente
que as suas palavras e a sua paixão não poderiam ter senão o repúdio dos
espectadores que ele desejava que o compreendessem e amassem: rodeado pelo seu
amante e pelos seus companheiros mais chegados, Yukio Mishima fez jorrar em
cena, ao esventrar-se, o grande crisântemo vermelho a que confinava a sua
existência.
Publicado pelo Centro Cultural de Belém, em 2008,
por alturas do ciclo Mishima, Um Esboço
do Nada.
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