segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

HERMANN UNGAR

 
 
 
UNGAR, O ESQUECIDO
 
O meio editorial europeu, há quatro ou cinco anos, começou a reeditar um escritor em língua alemã, cujas obras nunca mais vieram a público desde que morrera em 1929. E, um pouco por todo o lado, a crítica literária ficou tão impressionada com a sua importância que o referenciou como sendo um Kafka esquecido. Esse autor era Hermann Ungar.
 
Era fácil a comparação, visto que este escritor era um judeu checo, contemporâneo de Kafka e com uma temática onde era possível estabelecer correlações com a obra deste. Sucede, porém, como refere a breve nota que acompanha esta edição de Meninos e Assassinos, Hermann Ungar morrera ainda novo e no preciso momento em que tinha decidido dedicar-se em exclusivo à literatura, tendo, por isso, publicado poucas obras: algum teatro (que viu ainda encenado), dois romances e duas colectâneas de novelas. Este rápido percurso literário, mesmo que assinalado por algumas personalidades (Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertolt Brecht), deu origem a um total esquecimento.
 
A produção literária deste autor é facilmente enquadrável na tendência do expressionismo alemão que se dedicava a analisar as “almas perversas e doentias”, de forma a compreender, pelas motivações desses comportamentos extremos, os meandros do psiquismo humano. As duas novelas, que compõem Meninos e Assassinos, são um bom exemplo disto, pois evidenciam o seu carácter expressionista, não só pela utilização dos efeitos estilísticos habituais, mas também pelos seus contextos ambientais (privilegiando-se, como sempre, os cenários lúgubres).
 
Uma outra característica de época, que esta obra apresenta, é a que está subjacente ao próprio título da colectânea: a pretensão de situar na infância a motivação fulcral do comportamento de uma personalidade. De facto, as personagens centrais destas duas novelas foram “meninos” que se tornaram assassinos, o que quer dizer que a explicação do seu comportamento criminal se encontra por inteiro na forma como se processou a sua meninice. Note-se que o título Meninos e Assassinos é não só notável pela sua capacidade sintética de definição programática, mas, em particular, pelo efeito expressionista dado à copulativa, decorrente da utilização de dois termos de significação acentuadamente contrastante (nesse sentido, a capa de Carlos Ferreiro, ao reforçar o grafismo da copulativa, pareceu-nos bem acertada e eficaz).
 
Mas o aspecto mais relevante e original destas duas novelas (como da restante obra de Hermann Ungar) é centralizarem-se nas relações de poder e no modo como estas podem ser agudizadas pela insatisfação do desejo.
 
De facto, as personagens centrais das duas novelas encaram as relações entre as pessoas como assentes numa lógica de poder, hierarquizando-as em carrascos e vítimas: os seus crimes são apenas a sua conclusão extrema (e incongruente). No entanto, a crueza desta visão da sociedade é em grande parte resultante de não terem assimilado, enquanto “meninos”, mecanismos afectivos que a atenuasse (a infância destas personagens é feita sob o signo do ódio ou da indiferença). Por isso, segundo Hermann Ungar, a “perversão” não está no seu comportamento, mas nas condições de formação das pessoas e na lógica social.
 
Assim, o drama essencial das duas personagens, que se sentem na base da hierarquia que a sua própria visão da sociedade estabelece, é o de serem incapazes de gerir a humilhação que desta situação resulta. Por exemplo, a personagem principal de “História de um Assassinato”, fisicamente débil e humilhado pela tibieza moral do seu pai, projecta todo o seu ódio sobre os “doentes e deformados” seus semelhantes (mas que conseguem, pela argúcia e pela perfídia, compensar a sua incapacidade física, dominando os “normais” moralmente fragilizados como o seu pai) e satisfaz “in extremis” a sua necessidade de poder, torturando e matando os gatos vadios que encontra. E quando tem possibilidades de se libertar da humilhação que o comportamento do seu pai lhe provoca, matando-o, ou de afirmar a sua necessidade de poder, liquidando um recém-nascido indefeso, decide, quase por instinto, assassinar a figura que corporiza a “normalidade” (o verdadeiro fulcro da sua humilhação) e que, ainda por cima, do alto da sua superioridade, pretende ser bondoso e “compreender” a sua impotência.
 
Em paralelo, a personagem central de “Um Homem e uma Criada” também não consegue gerir a humilhação que lhe origina a recusa da satisfação do seu desejo por parte de uma criada imbecilizada e apática (tanto mais que a sua formação não lhe deu o contraponto afectivo que lhe permita perceber e orientar essa força). Por isso, vai canalizar esse desejo para a concretização de um percurso económico que lhe possibilite a “compra” do ente desejado, o seu aviltamento e prostituição, e, mais tarde, a reprodução no filho deste, das condições deformantes em que tinha sido criado.
 
Confesso que não vejo interesse (a não ser, talvez, comercial) em afirmar que este autor é outro Franz Kafka. Porque existe na obra de Hermann Ungar um caracter radicalmente subversivo, resultante da forma como perspectiva a realidade a partir do universo sem saída dos “perdedores” de todas as vidas, que lhe dá um estatuto inconfundível dentro da literatura mundial.
 
A Natureza resolveu dar uma coerência particular à obra de Ungar, o esquecido, dando-lhe um destino solidário com o das suas personagens. Mas é contra ela que trabalha a memória dos homens: poucas recuperações literárias dos últimos anos tiveram tanta pertinência como esta.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: Meninos e Assassinos
Autor: Hermann Ungar
Tradução: Célia Henriques e Vítor Silva Tavares
Editora: & etc
Ano: 1990
99 págs., € 7,50 €
 




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