UNGAR, O ESQUECIDO
O meio
editorial europeu, há quatro ou cinco anos, começou a reeditar um escritor em língua
alemã, cujas obras nunca mais vieram a público desde que morrera em 1929. E, um
pouco por todo o lado, a crítica literária ficou tão impressionada com a sua importância
que o referenciou como sendo um Kafka esquecido. Esse autor era Hermann Ungar.
Era fácil
a comparação, visto que este escritor era um judeu checo, contemporâneo de
Kafka e com uma temática onde era possível estabelecer correlações com a obra
deste. Sucede, porém, como refere a breve nota que acompanha esta edição de Meninos
e Assassinos, Hermann Ungar morrera ainda novo e no preciso momento em que
tinha decidido dedicar-se em exclusivo à literatura, tendo, por isso, publicado
poucas obras: algum teatro (que viu ainda encenado), dois romances e duas
colectâneas de novelas. Este rápido percurso literário, mesmo que assinalado
por algumas personalidades (Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertolt Brecht), deu
origem a um total esquecimento.
A produção
literária deste autor é facilmente enquadrável na tendência do expressionismo alemão
que se dedicava a analisar as “almas perversas e doentias”, de forma a compreender,
pelas motivações desses comportamentos extremos, os meandros do psiquismo humano.
As duas novelas, que compõem Meninos e Assassinos, são um bom
exemplo disto, pois evidenciam o seu carácter expressionista, não só pela
utilização dos efeitos estilísticos habituais, mas também pelos seus contextos
ambientais (privilegiando-se, como sempre, os cenários lúgubres).
Uma
outra característica de época, que esta obra apresenta, é a que está subjacente
ao próprio título da colectânea: a pretensão de situar na infância a motivação
fulcral do comportamento de uma personalidade. De facto, as personagens
centrais destas duas novelas foram “meninos” que se tornaram assassinos, o que
quer dizer que a explicação do seu comportamento criminal se encontra por inteiro
na forma como se processou a sua meninice. Note-se que o título Meninos
e Assassinos é não só notável pela sua capacidade sintética de definição
programática, mas, em particular, pelo efeito expressionista dado à copulativa,
decorrente da utilização de dois termos de significação acentuadamente
contrastante (nesse sentido, a capa de Carlos Ferreiro, ao reforçar o grafismo
da copulativa, pareceu-nos bem acertada e eficaz).
Mas o
aspecto mais relevante e original destas duas novelas (como da restante obra de
Hermann Ungar) é centralizarem-se nas relações de poder e no modo como estas podem
ser agudizadas pela insatisfação do desejo.
De
facto, as personagens centrais das duas novelas encaram as relações entre as
pessoas como assentes numa lógica de poder, hierarquizando-as em carrascos e vítimas:
os seus crimes são apenas a sua conclusão extrema (e incongruente). No entanto,
a crueza desta visão da sociedade é em grande parte resultante de não terem
assimilado, enquanto “meninos”, mecanismos afectivos que a atenuasse (a infância
destas personagens é feita sob o signo do ódio ou da indiferença). Por isso,
segundo Hermann Ungar, a “perversão” não está no seu comportamento, mas nas
condições de formação das pessoas e na lógica social.
Assim,
o drama essencial das duas personagens, que se sentem na base da hierarquia que
a sua própria visão da sociedade estabelece, é o de serem incapazes de gerir a
humilhação que desta situação resulta. Por exemplo, a personagem principal de
“História de um Assassinato”, fisicamente débil e humilhado pela tibieza moral
do seu pai, projecta todo o seu ódio sobre os “doentes e deformados” seus semelhantes
(mas que conseguem, pela argúcia e pela perfídia, compensar a sua incapacidade
física, dominando os “normais” moralmente fragilizados como o seu pai) e
satisfaz “in extremis” a sua necessidade de poder, torturando e matando os
gatos vadios que encontra. E quando tem possibilidades de se libertar da
humilhação que o comportamento do seu pai lhe provoca, matando-o, ou de afirmar
a sua necessidade de poder, liquidando um recém-nascido indefeso, decide, quase
por instinto, assassinar a figura que corporiza a “normalidade” (o verdadeiro
fulcro da sua humilhação) e que, ainda por cima, do alto da sua superioridade,
pretende ser bondoso e “compreender” a sua impotência.
Em
paralelo, a personagem central de “Um Homem e uma Criada” também não consegue
gerir a humilhação que lhe origina a recusa da satisfação do seu desejo por
parte de uma criada imbecilizada e apática (tanto mais que a sua formação não
lhe deu o contraponto afectivo que lhe permita perceber e orientar essa força).
Por isso, vai canalizar esse desejo para a concretização de um percurso económico
que lhe possibilite a “compra” do ente desejado, o seu aviltamento e prostituição,
e, mais tarde, a reprodução no filho deste, das condições deformantes em que
tinha sido criado.
Confesso
que não vejo interesse (a não ser, talvez, comercial) em afirmar que este autor
é outro Franz Kafka. Porque existe na obra de Hermann Ungar um caracter radicalmente
subversivo, resultante da forma como perspectiva a realidade a partir do
universo sem saída dos “perdedores” de todas as vidas, que lhe dá um estatuto inconfundível
dentro da literatura mundial.
A Natureza
resolveu dar uma coerência particular à obra de Ungar, o esquecido, dando-lhe
um destino solidário com o das suas personagens. Mas é contra ela que trabalha
a memória dos homens: poucas recuperações literárias dos últimos anos tiveram
tanta pertinência como esta.
Publicado no Público em 1990.
Título: Meninos e Assassinos
Autor: Hermann Ungar
Tradução: Célia Henriques e Vítor Silva Tavares
Editora: & etc
Ano: 1990
99 págs., € 7,50 €
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