terça-feira, 31 de maio de 2016

URS WIDMER

 
 

O AMOR NA SOMBRA

 

O caso da literatura contemporânea suíça é particularmente interessante para tentar compreender a importância da língua, por um lado, e das cidades – como pólos catalisadores da actividade cultural -, por outro, para a consolidação e expansão da literatura narrativa. Não há dúvida que, quer se considere o campo da expressão alemã, quer se considere o campo da expressão francesa (o caso da expressão italiana parece ser menos significativo, devendo, contudo, assinalar-se o caso da notabilíssima escritora Fleur Jaeggy), a literatura suíça tem, na geografia da narrativa do séc. XX, uma importância indiscutível: basta lembrar os nomes de Robert Walser (que a edição portuguesa, com mérito, descobriu o ano passado), Max Frisch, Friedrich Dürrenmatt, Paul Nizon, Adolf Muschg e Fritz Zorn, no primeiro campo, ou, no segundo, de C.-F. Ramuz, Blaise Cendrars (mais tarde naturalizou-se francês), Albert Cohen, Robert Pinget e Jacques Chessex. Contudo, enquanto, no cânone contemporâneo da literatura suíça de expressão alemã, são inteligíveis elementos que permitem definir uma certa “territorialidade”, já no caso da literatura suíça de expressão francesa esta nos parece mais diluída, dando, por conseguinte, a ideia de que não tem significativa autonomia e vive ainda muito na órbita do pólo cultural parisiense. Este facto, que nos parece facilmente confirmável, permite-nos colocar questões pertinentes para a compreensão do fenómeno da literatura narrativa escrita: até que ponto a situação acima enunciada deriva do poder catalisador distinto, em termos culturais, dos pólos urbanos de Zurique/Basileia e de Genebra/Lausana? Será que a especificidade da literatura narrativa de expressão alemã está relacionada com o suporte de uma estrutura editorial com alguma autonomia em relação à edição alemã e austríaca, enquanto, pelo contrário, a estrutura editorial que sustenta a literatura narrativa de expressão francesa é muito mais frágil e subsidiária em relação à edição francesa?

 
Estas considerações são de imediato motivadas pela edição portuguesa da excelente novela de Urs Widmer, O Amante Da Minha Mãe. Este autor, de expressão alemã, começou a sua vida literária por publicar narrativa nos finais dos anos sessenta; é, contudo, nos domínios da dramaturgia que se vai destacar nas décadas seguintes, durante uma larga estadia na Alemanha, em Frankfurt, onde participa activamente na vida cultural desta cidade, ganhando os mais importantes prémios para dramaturgia em língua alemã. Paralelamente, no entanto, continua a publicar narrativa (já publicou mais de uma dúzia de títulos, entre romance, colectâneas de contos, autobiografias e narrativa de viagens) e, nesta área, ganhou também vários prémios, tanto na Suíça como na Alemanha (realço, em particular, o Prémio Heimito von Doderer). No início dos anos oitenta regressa a Zurique, tornando-se uma das figuras mais intervenientes na vida cultural suíça. A novela O Amante Da Minha Mãe foi publicada, pela primeira vez, em 1999, tornando-se até hoje o seu maior sucesso comercial.

 
Um dos aspectos aliciantes desta novela deriva da forma como “desliza” pelas suas páginas a história do séc. XX europeu, em particular, através dos seus reflexos no destino das personagens. E o termo “deslizar” parece-nos (passe a imodéstia) bem apropriado: é que o tempo flui nesta narrativa como um rio sereno, de ondulação suave, mesmo quando origina paixões ou sofrimentos insustentáveis. Ao mesmo tempo, esta breve novela espelha, de forma também aliciante, como se formou e afirmou, a partir do início do século passado, a vanguarda estética da chamada música erudita contemporânea: de facto, O Amante Da Minha Mãe revela, de um modo exemplar, como o entusiasmo heróico de um pequeno grupo de seguidores de Ravel e Bartok (que aparecem fugazmente nas suas páginas) conseguiu impor, passo a passo, as suas concepções musicais nas salas de concerto das capitais culturais da Europa e, por outro lado, como esse movimento se sustentou no papel mecenático da ascendente burguesia industrial esclarecida da “Mitteleurope”.

 
Outro elemento atractivo desta novela emana da ambiência tipicamente burguesa - descrita de uma forma que já não é comum na ficção contemporânea – das famílias das personagens principais, com a sua ascensão e queda de fortunas, e se constata como a sinuosidade trágica do tempo não é mais do que a linha obscura da sorte, da obstinação, do trabalho e do poder inventivo. São memoráveis, pelo seu poder de evocação, as páginas onde se narra a origem italiana da família da figura feminina central (a muda e trágica aparição do Preto, essa figura mítica de africano, fugindo a um destino de miséria, e a noite de compaixão e amor em que se gerou o seu avô) ou se descreve as cumplicidades festivas e patriarcais das famílias vinhateiras do Piemonte com as autoridades fascistas romanas.

 
É evidente que o núcleo de O Amante Da Minha Mãe, tal como o título prenuncia, é uma intensa história de amor, de uma vida inteira, da mãe do narrador. Uma peculiar história de amor, embebida de reconhecimento e admiração, em que a personagem principal, procurando sempre controlar a exigência de afirmação do seu afecto e reduzindo-se a uma sombra fugaz para não perturbar o glorioso esplendor do amado, assumiu o destino silencioso dos satélites; uma história de amor patética no desespero em que o ente amante contraria a intensidade com o pudor e implode no delírio e na loucura.

 
Mas o que transforma esta novela numa pequena preciosidade é o cuidado estilístico com que Urs Widmer procura transmitir, de forma contida, mas, ao mesmo tempo, vibrante, sentimentos e destinos que atingem o limite do indizível (um magnifico exemplo destas qualidades narrativas está na forma como é descrita a morte da mãe), dando uma tonalidade de música de câmara ao percurso de figuras que, a seu modo, estiveram associadas à formação da Europa tal como hoje culturalmente a entendemos. Há, de facto, em O Amante Da Minha Mãe, uma tonalidade, ao mesmo tempo lírica e nostálgica – muito bem apreendida pela tradutora –, que irá, de certeza, gerar um conjunto significativo de leitores cúmplices na descoberta de uma obra bela e comovente.

 

Publicado no Público em 2003.

(Foto do Autor de ddp).

 

 
Título: O Amante Da Minha Mãe
Autor: Urs Widmer
Tradutor: Maria Nóvoa
Editor: Asa
Ano: 2003
122 págs., esg.

 

 




quinta-feira, 12 de maio de 2016

J. M. COETZEE 3

 
 
 
A LÍNGUA
 
Um dos aspectos mais interessantes da obra de J. M. Coetzee relaciona-se com a estratégia com que se coloca perante a instável realidade sul-africana. O autor procura formular cada conjuntura numa problemática nuclear, liberta de qualquer circunstancialismo, ficciona-a num contexto puramente imaginário e sem qualquer relação linear com a realidade circundante, transformando-a numa parábola com sabor mítico. Esta estratégia, sendo útil ao autor no seu esforço de se situar com maior lucidez no meio da tempestade que tem sido a Africa do Sul, dá-lhe, por outro lado, uma abrangência que a toma aliciante para qualquer leitor.
 
A Ilha, o último romance de J. M. Coetzee agora traduzido, retomando as figuras arquetípicas de Robinson Crusoé (aqui nomeado Cruso) e o seu escravo Friday, pondera as hipóteses de comunicabilidade entre universos culturais distantes e a importância existencial de possuir uma “fala”. Por isso, a experiência de náufrago de Cruso é relativamente marginal (é só a primeira parte do romance que a narra), já que para o autor o essencial é compreender por que motivo Defoe se interessou por essa história. Dai que A Ilha se centre numa personagem forjada por J. M. Coetzee, Susan Barton, a mulher que naufragou na ilha de Cruso e que, por ter sido a única sobrevivente em condições de testemunhar essa experiência, a “narrou” a Daniel Defoe.
 
Cruso funciona nesta obra como uma espécie de pólo negativo, de alteridade radical em relação as inquietações das restantes personagens: dominando a ilha, Cruso esforça-se para que a História não entre nela (isto é: não crê na comunicação, rejeita qualquer dimensão material da civilização e qualquer tipo de intervenção produtiva), aceitando a temporalidade pura que é o acaso. Como não necessita de moldar o tempo, não necessita de “fala”. Basta-lhe, como sinal da sua existência, deixar um vestígio material: os terraços que constrói para se entreter e sem nenhum fim prático.
 
É contra este projecto de existência que Susan Barton, na segunda e terceira parte de A Ilha, se insurge: ela sabe que a veracidade da sua experiência só existe na “voz” que a comunicar. Por isso, a história de Cruso e Friday, pelo silêncio que sobre ela caiu, tornou-se-lhe mais importante que a sua própria memória. De certo modo, Cruso e Friday passam a ser personagens de Susan Barton, personagens que só existem se ela conseguir convencer alguém a dar-lhes uma “fala”.
 
Neste sentido, Friday, por não ter língua, torna-se, de um modo obsessivo, mais importante para Susan Barton do que Cruso. Friday é um continente, uma personagem “pura”, visto que todas as memórias lhe podem ser forjadas. Ou por outras palavras: Friday é um escravo, na acepção mais radical desta condição, já que até a sua memória lhe foi usurpada. Porém, ao mesmo tempo, é um canibal: porque a premência que Susan Barton sente em dar existência a Friday (dando, assim, existência à sua experiência de náufraga) através de uma “fala”, devora a autonomia e a identidade dela.
 
É neste contexto que se vai processar todo o diálogo conflituoso entre Susan Barton e Daniel Defoe: até que ponto é legítimo outrem dar uma “língua” a Friday? Haverá um Friday exterior à “língua” que por ele “fala”? Entre personagem e autor, quem devora quem? De quem realmente “fala” a obra?
 
Susan Barton crê que só existe veracidade de uma experiência na obra artística; porém, se assim é, ela própria só existe na narrativa: é feita de papel e tinta, vive da volubilidade de quem a escreve. Por isso, Daniel Defoe defende que a dominação mantem-se em quem está em último lugar a transmitir a “fala”: Friday continuará escravo de quem por ele “falar”. No entanto, a própria existência de Defoe contraria isto: miserável, perseguido, doente, é as suas histórias, os fantasmas das suas personagens, a veracidade que ele constrói com a sua arte que o vampirizam, vivendo a sua custa.
 
A Ilha é um complexo, exaustivo e admirável requisitório sobre o estatuto do escritor (não é por acaso que o seu título original é Foe: a solução adoptada pela edição portuguesa, tendo algum valor polissémico, não “traduz” com rigor a intenção do autor). Porém, para lá disso, há neste romance uma ambição mais ampla de leitura do processo civilizacional, salientando que este assenta mais num universo de retóricas, num clamor de “vozes”, do que num quadro institucional, material e técnico.
 
Publicado no Público em 1993.
 (Foto do Autor de Bert Nienhuis)
 
Título: A Ilha
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: Marta Morgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
159 págs.,  € 11,61
 
 


segunda-feira, 2 de maio de 2016

GORE VIDAL 1

 
 
 

OS PILARES DO PODER
 
A mais óbvia constatação, que se pode fazer sobre o escritor Gore Vidal, é que é hoje considerado - mesmo pelos seus detractores - como uma respeitada e conceituada instituição cultural americana. Esta situação deve-se à globalidade da acção sociocultural deste homem que, na sua essência, se focaliza em três frentes: a intervenção política (que se tem caracterizado por um razoável insucesso: o melhor resultado que obteve foi, na década de oitenta, um segundo lugar na eleição para senador pela Califórnia...; é necessário, no entanto, assinalar que Gore Vidal é encarado, pelo menos, por parte dos sectores mais liberais do Partido Democrático, como uma espécie de “consciência crítica” da sociedade americana); a participação, sempre pautada por uma ambivalência de amor/ódio, no universo do audiovisual (recordo que Gore Vidal foi actor, argumentista de filmes e séries televisivas e que, principalmente, foi comentador político regular - sempre rodeado de tremendas polémicas - de alguns canais de televisão); e, “last but not least”, a criação literária.
 
Como escritor, pode-se dizer que Gore Vidal, de certo modo, instituiu na literatura americana um subgénero narrativo: o romance político, querendo, por esta designação, definir um tipo de ficção que não só pretende analisar as atitudes comportamentais das figuras que circulam na órbita do poder, mas, sobretudo, que procura compreender os fundamentos da “vontade de poder” que motiva essas figuras. Pode-se, por isso, também afirmar, com alguma ironia, que a obra de Gore Vidal assume o percurso antitético da dos escritores “regionalistas” (na acepção que esta expressão tem no quadro da literatura americana): partindo de uma temática muitas vezes universalista, ela visa sempre ter como interlocutor principal aquelas entidades, ao mesmo tempo contraditoriamente vagas e reais, que povoam os labirínticos corredores burocráticos de Washington, D.C. (o título do romance até hoje mais conseguido de Gore Vidal) e que se deleitam a construir ou a definir os contornos de impérios e a determinar com os seus gestos e frases sibilinos o áspero quotidiano da população mundial.
 
O que, de alguma maneira, resgata a obra de Gore Vidal para a universalidade, são dois princípios bem claros e que, de certo modo, fundamentam o seu liberalismo radical: a primeira, é que o poder político é, na sua essência, uma luta de interesses que se traduz numa decisão individual e, por conseguinte, idêntico em qualquer parte do mundo, distinguindo-se, em exclusivo, por uma graduação qualitativa e quantitativa de soberania; a segunda, é que a existência, no contexto da sua sociabilidade, assume sempre a forma de uma relação de poder.
 
É evidente que, para esta concepção do poder e da existência, contribuiu, de forma decisiva, a sua origem e a formação que recebeu desde o berço: recorde-se que Gore Vidal, hoje com setenta e cinco anos, pertence a uma família que, tradicionalmente, se mantem nas proximidades do poder político americano (desde o seu avô materno, um lendário e poderoso senador, com quem Gore Vidal viveu parte da adolescência e para quem leu - porque ele era cego - inúmeras obras clássicas da sua biblioteca, até Al Gore, seu primo afastado, e actual candidato democrático à presidência americana e Vice-Presidente dos Estados Unidos, passando pela família Kennedy, com quem a sua mantem relações de parentesco por afinidade) e, por conseguinte, é natural que conheça intimamente a forma como se arquitecta o poder político e aquilo que motiva as suas decisões.
 
Gore Vidal iniciou muito cedo a sua carreira literária: ainda com vinte e um anos publicou o seu primeiro romance, Williwaw, baseado na sua experiência militar durante a II Guerra Mundial. Mas é com o seu terceiro romance, A Cidade e o Pilar, centrado numa temática homossexual e redigido de uma forma estilística inovadora, que obteve notoriedade, dividindo a crítica e fazendo erguer uma auréola de escândalo em seu redor. Contudo, os seus romances seguintes foram mal recebidos e o próprio Gore Vidal não os considerou de todo satisfatórios; por isso, durante a década de cinquenta, abdicou da produção romanesca, dedicando-se em exclusivo ao guionismo, cinematográfico e televisivo, e à dramaturgia. Só nos anos sessenta, Gore Vidal voltou à ficção, começando então o seu período mais profícuo: recorde-se o ciclo sobre a história americana, iniciado com o já referido Washington, D.C., o ciclo dos romances históricos (lembro Juliano e Criação), ou ainda o conjunto de obras, a que o próprio autor chama de “invenções” narrativas, que inclui, entre outros, Myra Breckinridge, Myron, Duluth e Em Directo do Calvário (à excepção de Williwaw, todos os romances citados estão editados no nosso país).
 
Numa visão de síntese sobre a obra de Gore Vidal, pode afirmar-se que o seu trabalho literário sempre procurou compreender a estrutura de dois pilares fundamentais do poder político: por um lado, a mitologia (tanto na concepção junguiana da palavra, como na sua formulação mais abrangente, de molde a integrar os arquétipos gerados pela poderosa produção audiovisual), entendida como um quadro de referência que, de forma sistemática, orienta o “gesto político”, por outro, a sexualidade, encarando a sua plena satisfação como a forma mais estruturalmente gratificante de compensação existencial e, por conseguinte, como objectivo último a atingir pela vontade de poder.
 
Bem exemplar de toda esta concepção da existência e do poder é o último romance de Gore Vidal, O Instituto Smithsonian, agora publicado no nosso país. Convém, antes do mais, referir que o Instituto Smithsonian é um importante instituição científica americana, sediada em Washington, mas com instalações em outras cidades, como New York, resultante do legado de James Smithson, um cientista escocês que, no início do século passado, resolveu doar a sua fortuna ao povo americano para que construa uma instituição cultural, e que hoje, com mais de cento e cinquenta anos, é considerada como o maior complexo museológico do mundo, já que é composto por dezasseis museus (com mais de 140 milhões de peças), um Zoo e quatro centros de investigação (e deve ser aqui feito um reparo à edição portuguesa desta obra: O Instituto Smithsonian constitui-se como um verdadeiro repertório de referências à história e à cultura americanas, algumas delas muito pouco conhecidas para um leitor não-americano, e, por conseguinte, é muito insensato, e até um pouco criminoso, que uma edição, como é o caso da portuguesa, não tenha notas explicativas que contextualizem essas referências).
 
A trama desta obra de Gore Vidal é complexa, partindo, no entanto, de uma ideia genialmente simples: um adolescente sobredotado, com capacidade de “visualizar” alguns dos efeitos práticos das equações matemáticas da teoria da relatividade, é introduzido, na Páscoa de 1939, no Instituto Smithsonian e aí, ao “ver” que se está à beira de um conflito militar muito mortífero (e onde ele próprio descobre que irá perder a vida), tentará, por meios científicos, viajar no tempo e modificar a história para que os Estados Unidos não se envolvam nessa guerra e, em consequência, não aviltem os seus valores fundamentais ao tornar-se numa potência imperial. Aproveitando uma fórmula retirada da literatura infantil clássica (em que os bonecos - aqui de cera e integrando quadros expositivos que narram ou exemplificam situações históricas - ganham vida quando o mundo em seu redor “adormece”), Gore Vidal coloca a sua personagem principal, T. (que é uma recriação literária de Jimmie Trimble, o seu jovem amante que morreu, tal como a personagem do romance, na batalha de Iwo Jima), em contacto - e até a relacionar-se em termos sexuais - com inúmeras figuras da história e da cultura americanas (desde Washington, Lincoln e os Roosevelt até Lindbergh, Einstein e Oppenheimer, passando - e talvez não seja tão assombroso como pode parecer à primeira vista - por Walt Disney) que contribuíram, pela positiva ou pela negativa, para a evolução histórica dos Estados Unidos e para aquilo que hoje é.
 
Esta fórmula permitiu a Gore Vidal realçar de novo aquilo que é uma sua peculiar obsessão: a capacidade individual de intervir no percurso histórico. Quando T., ao conseguir “queimar” diversas etapas científicas, contribui dessa forma para antecipar a construção da bomba atómica, ou quando vai falar com o Presidente Wilson, tentando pressioná-lo, pela denúncia de um escândalo sexual, para que se decida pela não intervenção dos Estados Unidos na I Guerra Mundial, sabe que está a agir sobre o futuro da humanidade, alterando o destino de milhões de pessoas, tornando-se assim bem perceptível como um simples gesto político pode ter a possibilidade de originar uma “outra” História. Por outro lado, o autor deve também ter-se deleitado como um exercício literário que lhe é muito gratificante: o de recriar diversas figuras históricas que se confrontam, no quadro das suas mentalidades específicas, com as decisões políticas mais determinantes do nosso século. Nesse aspecto, a situação romanesca mais conseguida de O Instituto Smithsonian é, sem dúvida, a da assembleia de todos os presidentes americanos, em que se discute qual deve ser a posição dos Estados Unidos perante o conflito mundial que se avizinha, com o intuito de transmitir uma posição conjunta ao Presidente Roosevelt.
 
Em O Instituto Smithsonian, Gore Vidal arquitecta uma espécie de súmula das suas diversas opções literárias, conjugando ficção científica com romance histórico e, ao mesmo tempo, com a experimentação narrativa já testada nas suas referidas “invenções” (e que muito deve ao trabalho de escritores da chamada geração pósmoderna americana, como John Barth e Donald Barthelme). Porém, o romance está repleto de volutas narrativas, de inflexões na trama para a introdução de novas figuras históricas, levando muitas vezes o seu sentido a perder-se e a esgarçar-se aquilo que parece ser o seu fio principal: o de apresentar, de uma forma romanesca, uma concepção da história que permita à humanidade - e, muito em particular, aos Estados Unidos - perceber quais são as opções fundamentais a efectuar para que a presente civilização não se encaminhe para uma catástrofe apocalíptica.
 
 Publicado no Público em 2000.                                                                  
 
Título: O Instituto Smithsonian
Autor: Gore Vidal
Tradução: Sandra Oliveira
Editor: Editorial Notícias
Ano: 2000
206 págs., € 12,90