OS PILARES
DO PODER
A mais
óbvia constatação, que se pode fazer sobre o escritor Gore Vidal, é que é hoje
considerado - mesmo pelos seus detractores - como uma respeitada e conceituada
instituição cultural americana. Esta situação deve-se à globalidade da acção
sociocultural deste homem que, na sua essência, se focaliza em três frentes: a
intervenção política (que se tem caracterizado por um razoável insucesso: o
melhor resultado que obteve foi, na década de oitenta, um segundo lugar na
eleição para senador pela Califórnia...; é necessário, no entanto, assinalar
que Gore Vidal é encarado, pelo menos, por parte dos sectores mais liberais do
Partido Democrático, como uma espécie de “consciência crítica” da sociedade americana); a
participação, sempre pautada por uma ambivalência de amor/ódio, no universo do
audiovisual (recordo que Gore Vidal foi actor, argumentista de filmes e séries
televisivas e que, principalmente, foi comentador político regular - sempre
rodeado de tremendas polémicas - de alguns canais de televisão); e, “last but
not least”, a criação literária.
Como
escritor, pode-se dizer que Gore Vidal, de certo modo, instituiu na literatura
americana um subgénero narrativo: o romance político, querendo, por esta
designação, definir um tipo de ficção que não só pretende analisar as atitudes
comportamentais das figuras que circulam na órbita do poder, mas, sobretudo,
que procura compreender os fundamentos da “vontade de poder” que motiva essas figuras. Pode-se, por
isso, também afirmar, com alguma ironia, que a obra de Gore Vidal assume o
percurso antitético da dos escritores “regionalistas” (na acepção que esta expressão tem no quadro da literatura
americana): partindo de uma temática muitas vezes universalista, ela visa
sempre ter como interlocutor principal aquelas entidades, ao mesmo tempo
contraditoriamente vagas e reais, que povoam os labirínticos corredores
burocráticos de Washington, D.C. (o título do romance até hoje mais conseguido
de Gore Vidal) e que se deleitam a construir ou a definir os contornos de
impérios e a determinar com os seus gestos e frases sibilinos o áspero
quotidiano da população mundial.
O que, de
alguma maneira, resgata a obra de Gore Vidal para a universalidade, são dois
princípios bem claros e que, de certo modo, fundamentam o seu liberalismo
radical: a primeira, é que o poder político é, na sua essência, uma luta de
interesses que se traduz numa decisão individual e, por conseguinte, idêntico
em qualquer parte do mundo, distinguindo-se, em exclusivo, por uma graduação
qualitativa e quantitativa de soberania; a segunda, é que a existência, no
contexto da sua sociabilidade, assume sempre a forma de uma relação de poder.
É evidente
que, para esta concepção do poder e da existência, contribuiu, de forma decisiva,
a sua origem e a formação que recebeu desde o berço: recorde-se que Gore Vidal,
hoje com setenta e cinco anos, pertence a uma família que, tradicionalmente, se
mantem nas proximidades do poder político americano (desde o seu avô materno,
um lendário e poderoso senador, com quem Gore Vidal viveu parte da adolescência
e para quem leu - porque ele era cego - inúmeras obras clássicas da sua
biblioteca, até Al Gore, seu primo afastado, e actual candidato democrático à
presidência americana e Vice-Presidente dos Estados Unidos, passando pela
família Kennedy, com quem a sua mantem relações de parentesco por afinidade) e,
por conseguinte, é natural que conheça intimamente a forma como se arquitecta o
poder político e aquilo que motiva as suas decisões.
Gore Vidal
iniciou muito cedo a sua carreira literária: ainda com vinte e um anos publicou
o seu primeiro romance, Williwaw, baseado na sua experiência
militar durante a II Guerra Mundial. Mas é com o seu terceiro romance, A
Cidade e o Pilar, centrado numa temática homossexual e redigido de uma
forma estilística inovadora, que obteve notoriedade, dividindo a crítica e
fazendo erguer uma auréola de escândalo em seu redor. Contudo, os seus romances
seguintes foram mal recebidos e o próprio Gore Vidal não os considerou de todo satisfatórios;
por isso, durante a década de cinquenta, abdicou da produção romanesca,
dedicando-se em exclusivo ao guionismo, cinematográfico e televisivo, e à
dramaturgia. Só nos anos sessenta, Gore Vidal voltou à ficção, começando então
o seu período mais profícuo: recorde-se o ciclo sobre a história americana,
iniciado com o já referido Washington, D.C., o ciclo dos
romances históricos (lembro Juliano e Criação), ou ainda o
conjunto de obras, a que o próprio autor chama de “invenções” narrativas, que
inclui, entre outros, Myra Breckinridge, Myron,
Duluth
e Em
Directo do Calvário (à excepção de Williwaw, todos os romances citados
estão editados no nosso país).
Numa visão
de síntese sobre a obra de Gore Vidal, pode afirmar-se que o seu trabalho
literário sempre procurou compreender a estrutura de dois pilares fundamentais
do poder político: por um lado, a mitologia (tanto na concepção junguiana da
palavra, como na sua formulação mais abrangente, de molde a integrar os
arquétipos gerados pela poderosa produção audiovisual), entendida como um
quadro de referência que, de forma sistemática, orienta o “gesto político”, por
outro, a sexualidade, encarando a sua plena satisfação como a forma mais
estruturalmente gratificante de compensação existencial e, por conseguinte,
como objectivo último a atingir pela vontade de poder.
Bem
exemplar de toda esta concepção da existência e do poder é o último romance de
Gore Vidal, O Instituto Smithsonian, agora publicado no nosso país. Convém,
antes do mais, referir que o Instituto Smithsonian é um importante instituição
científica americana, sediada em Washington, mas com instalações em outras
cidades, como New York, resultante do legado de James Smithson, um cientista
escocês que, no início do século passado, resolveu doar a sua fortuna ao povo
americano para que construa uma instituição cultural, e que hoje, com mais de
cento e cinquenta anos, é considerada como o maior complexo museológico do
mundo, já que é composto por dezasseis museus (com mais de 140 milhões de
peças), um Zoo e quatro centros de investigação (e deve ser aqui feito um
reparo à edição portuguesa desta obra: O Instituto Smithsonian constitui-se
como um verdadeiro repertório de referências à história e à cultura americanas,
algumas delas muito pouco conhecidas para um leitor não-americano, e, por
conseguinte, é muito insensato, e até um pouco criminoso, que uma edição, como
é o caso da portuguesa, não tenha notas explicativas que contextualizem essas
referências).
A trama
desta obra de Gore Vidal é complexa, partindo, no entanto, de uma ideia
genialmente simples: um adolescente sobredotado, com capacidade de “visualizar”
alguns dos efeitos práticos das equações matemáticas da teoria da relatividade,
é introduzido, na Páscoa de 1939, no Instituto Smithsonian e aí, ao “ver” que
se está à beira de um conflito militar muito mortífero (e onde ele próprio
descobre que irá perder a vida), tentará, por meios científicos, viajar no
tempo e modificar a história para que os Estados Unidos não se envolvam nessa
guerra e, em consequência, não aviltem os seus valores fundamentais ao
tornar-se numa potência imperial. Aproveitando uma fórmula retirada da
literatura infantil clássica (em que os bonecos - aqui de cera e integrando
quadros expositivos que narram ou exemplificam situações históricas - ganham
vida quando o mundo em seu redor “adormece”), Gore Vidal coloca a sua
personagem principal, T. (que é uma recriação literária de Jimmie Trimble, o
seu jovem amante que morreu, tal como a personagem do romance, na batalha de
Iwo Jima), em contacto - e até a relacionar-se em termos sexuais - com inúmeras
figuras da história e da cultura americanas (desde Washington, Lincoln e os
Roosevelt até Lindbergh, Einstein e Oppenheimer, passando - e talvez não seja
tão assombroso como pode parecer à primeira vista - por Walt Disney) que contribuíram,
pela positiva ou pela negativa, para a evolução histórica dos Estados Unidos e
para aquilo que hoje é.
Esta
fórmula permitiu a Gore Vidal realçar de novo aquilo que é uma sua peculiar
obsessão: a capacidade individual de intervir no percurso histórico. Quando T.,
ao conseguir “queimar” diversas etapas científicas, contribui dessa forma para
antecipar a construção da bomba atómica, ou quando vai falar com o Presidente
Wilson, tentando pressioná-lo, pela denúncia de um escândalo sexual, para que
se decida pela não intervenção dos Estados Unidos na I Guerra Mundial, sabe que
está a agir sobre o futuro da humanidade, alterando o destino de milhões de
pessoas, tornando-se assim bem perceptível como um simples gesto político pode
ter a possibilidade de originar uma “outra” História. Por outro lado, o autor
deve também ter-se deleitado como um exercício literário que lhe é muito
gratificante: o de recriar diversas figuras históricas que se confrontam, no
quadro das suas mentalidades específicas, com as decisões políticas mais
determinantes do nosso século. Nesse aspecto, a situação romanesca mais
conseguida de O Instituto Smithsonian é, sem dúvida, a da assembleia de todos
os presidentes americanos, em que se discute qual deve ser a posição dos
Estados Unidos perante o conflito mundial que se avizinha, com o intuito de
transmitir uma posição conjunta ao Presidente Roosevelt.
Em O
Instituto Smithsonian, Gore Vidal arquitecta uma espécie de súmula das
suas diversas opções literárias, conjugando ficção científica com romance
histórico e, ao mesmo tempo, com a experimentação narrativa já testada nas suas
referidas “invenções” (e que muito deve ao trabalho de escritores da chamada
geração pósmoderna americana, como John Barth e Donald Barthelme). Porém, o
romance está repleto de volutas narrativas, de inflexões na trama para a
introdução de novas figuras históricas, levando muitas vezes o seu sentido a
perder-se e a esgarçar-se aquilo que parece ser o seu fio principal: o de apresentar,
de uma forma romanesca, uma concepção da história que permita à humanidade - e,
muito em particular, aos Estados Unidos - perceber quais são as opções
fundamentais a efectuar para que a presente civilização não se encaminhe para
uma catástrofe apocalíptica.
Título: O Instituto Smithsonian
Autor: Gore Vidal
Tradução: Sandra Oliveira
Editor: Editorial Notícias
Ano: 2000
206 págs., €
12,90
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