A LÍNGUA
Um dos
aspectos mais interessantes da obra de J. M. Coetzee relaciona-se com a estratégia
com que se coloca perante a instável realidade sul-africana. O autor procura
formular cada conjuntura numa problemática nuclear, liberta de qualquer circunstancialismo,
ficciona-a num contexto puramente imaginário e sem qualquer relação linear com
a realidade circundante, transformando-a numa parábola com sabor mítico. Esta
estratégia, sendo útil ao autor no seu esforço de se situar com maior lucidez no
meio da tempestade que tem sido a Africa do Sul, dá-lhe, por outro lado, uma
abrangência que a toma aliciante para qualquer leitor.
A Ilha, o último
romance de J. M. Coetzee agora traduzido, retomando as figuras arquetípicas de Robinson
Crusoé (aqui nomeado Cruso) e o seu escravo Friday, pondera as hipóteses de comunicabilidade
entre universos culturais distantes e a importância existencial de possuir uma
“fala”. Por isso, a experiência de náufrago de Cruso é relativamente marginal (é
só a primeira parte do romance que a narra), já que para o autor o essencial é
compreender por que motivo Defoe se interessou por essa história. Dai que A
Ilha se centre numa personagem forjada por J. M. Coetzee, Susan Barton,
a mulher que naufragou na ilha de Cruso e que, por ter sido a única sobrevivente
em condições de testemunhar essa experiência, a “narrou” a Daniel Defoe.
Cruso
funciona nesta obra como uma espécie de pólo negativo, de alteridade radical em
relação as inquietações das restantes personagens: dominando a ilha, Cruso
esforça-se para que a História não entre nela (isto é: não crê na comunicação,
rejeita qualquer dimensão material da civilização e qualquer tipo de intervenção
produtiva), aceitando a temporalidade pura que é o acaso. Como não necessita de
moldar o tempo, não necessita de “fala”. Basta-lhe, como sinal da sua existência,
deixar um vestígio material: os terraços que constrói para se entreter e sem
nenhum fim prático.
É contra
este projecto de existência que Susan Barton, na segunda e terceira parte de A
Ilha, se insurge: ela sabe que a veracidade da sua experiência só
existe na “voz” que a comunicar. Por isso, a história de Cruso e Friday, pelo
silêncio que sobre ela caiu, tornou-se-lhe mais importante que a sua própria memória.
De certo modo, Cruso e Friday passam a ser personagens de Susan Barton, personagens
que só existem se ela conseguir convencer alguém a dar-lhes uma “fala”.
Neste
sentido, Friday, por não ter língua, torna-se, de um modo obsessivo, mais
importante para Susan Barton do que Cruso. Friday é um continente, uma
personagem “pura”, visto que todas as memórias lhe podem ser forjadas. Ou por
outras palavras: Friday é um escravo, na acepção mais radical desta condição, já
que até a sua memória lhe foi usurpada. Porém, ao mesmo tempo, é um canibal:
porque a premência que Susan Barton sente em dar existência a Friday (dando,
assim, existência à sua experiência de náufraga) através de uma “fala”, devora
a autonomia e a identidade dela.
É
neste contexto que se vai processar todo o diálogo conflituoso entre Susan
Barton e Daniel Defoe: até que ponto é legítimo outrem dar uma “língua” a
Friday? Haverá um Friday exterior à “língua” que por ele “fala”? Entre
personagem e autor, quem devora quem? De quem realmente “fala” a obra?
Susan
Barton crê que só existe veracidade de uma experiência na obra artística; porém,
se assim é, ela própria só existe na narrativa: é feita de papel e tinta, vive
da volubilidade de quem a escreve. Por isso, Daniel Defoe defende que a dominação
mantem-se em quem está em último lugar a transmitir a “fala”: Friday continuará
escravo de quem por ele “falar”. No entanto, a própria existência de Defoe contraria
isto: miserável, perseguido, doente, é as suas histórias, os fantasmas das suas
personagens, a veracidade que ele constrói com a sua arte que o vampirizam,
vivendo a sua custa.
A Ilha é um
complexo, exaustivo e admirável requisitório sobre o estatuto do escritor (não é
por acaso que o seu título original é Foe: a solução adoptada pela edição
portuguesa, tendo algum valor polissémico, não “traduz” com rigor a intenção do
autor). Porém, para lá disso, há neste romance uma ambição mais ampla de
leitura do processo civilizacional, salientando que este assenta mais num
universo de retóricas, num clamor de “vozes”, do que num quadro institucional,
material e técnico.
Publicado no Público em 1993.
Título: A Ilha
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: Marta Morgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
159 págs., € 11,61
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