A BALEIA DE JONAS DA
FICÇÃO
Lawrence
Durrell é um autor que, desde a publicação de O Quarteto de Alexandria,
tem provocado, entre os críticos e analistas literários, posições radicalmente
opostas: enquanto alguns saudaram, de imediato, esta obra como um dos futuros
clássicos da literatura contemporânea, outros apontaram-na como um produto de
exótica fancaria e consideraram que o seu esplendor estilístico funcionava apenas
como um hipnótico olhar de gato, escondendo um total vazio.
De
qualquer modo, é certo existir no autor de O Quinteto de Avinhão, do qual agora
se publicou o terceiro volume, uma ambição com laivos de “démodé”: a de redigir
uma obra que contenha uma interpretação globalizante da realidade, que consiga
estruturar com ela o próprio fio narrativo, e, assim, imprima, dentro da
contemporaneidade, uma presença única e indelével. Talvez esta seja, no fundo, a
pretensão de qualquer escritor; mas o excessivo desejo narcísico de se assumir
como o profeta duma metafisica do presente, demarcando demasiado aquela pretensão,
fragiliza imenso a imagem deste autor.
Porque,
de facto, há, em Lawrence Durrell, uma incapacidade clara de transformar a sua
reflexão num sistema de valores: como se torna notório neste Constance
ou Práticas Solitárias, as suas obras parecem, por vezes, puras vulgarizações,
neste caso do pensamento gnóstico e da psicanálise, transmitida pela palavra de
personagens tratadas como deuses ou sábios.
Simplesmente,
confinar-se a análise deste autor às suas fragilidades é, por estreiteza de visão,
bem injusto. Lawrence Durrell concebeu duas obras, O Quarteto de Alexandria
e a actual O Quinteto de Avinhão, que são, para lá de tudo o que se possa
dizer, de uma desmesurada dimensão criativa e que, em registos qualitativos
diferentes, alargaram a concepção da estrutura romanesca.
Talvez
não seja este o momento indicado para analisar a estrutura romanesca de O
Quinteto de Avinhão (visto que ainda está em curso a sua publicação),
nem para fazer o levantamento dos principais tópicos da sua obsessiva reflexão.
Contudo, parece-me importante assinalar que esta obra, como a restante produção
de Lawrence Durrell, se constitui na busca duma paisagem original, de um lugar
onde haja uma perfeita sintonia entre o corpo e a terra. É possivel que esta
busca, como pretende o autor, seja resultante do pensamento gnóstico, que entende
que o homem se encontra, de um modo irremediável, perdido num mundo desvirtuado
pelo Príncipe das Trevas e que a sua absurda tarefa metafisica é libertar-se
dele. Mas também é possível que ela seja apenas motivada pelo confronto de uma
sensibilidade formada nos padrões culturais britânicos com o espaço mediterrânico,
e que tenha provocado, em Lawrence Durrell, uma definitiva “desterritorialização”.
Constance
ou Práticas Solitárias prolonga a visão dualista da realidade
que o autor já encenou nos dois anteriores volumes de O Quinteto de Avinhão.
Através do percurso de uma discípula de Freud, a que dá título a este volume, entre
uma Avinhão ocupada pelos nazis e uma Genebra neutral, onde estabelece uma relação
amorosa com um banqueiro egípcio convertido à gnose, embate-se, mais uma vez,
duas racionalidades, duas formas de compreender esses instantes de revelação da
incompletude do ser que são o amor e a morte. Ao mesmo tempo, assiste-se ao
ininterrupto diálogo entre dois escritores, projecções um do outro, um com o
corpo lesionado, outro com a “alma ferida”, e que vão reconhecendo, por vias diferentes,
que a sua “excreção” literária é um derivativo da sua impossibilidade de restaurar
o primordial andrógino, a perfeita união amorosa.
Mas com
esta dramatização de personagens, com experiências civilizacionais distintas e
antagónicas, ressalta, mais uma vez, todo um conjunto torrencial de pistas e alusões
com que Lawrence Durrell procura desvendar aquilo a que chama “o espírito do
Lugar”. Foi este trabalho de busca de uma “matriz”, de um Paraíso perdido em
que a mulher seja a via para a harmonia, e a incessante reflexão que a motivou,
assente numa enorme erudição, mas, em especial, servida por um fulgurante
instrumento retórico, que, ao aflorar ou aprofundar tantas zonas obscuras, mas
essenciais da sensibilidade contemporânea, marcou este autor com um dos mais
fascinantes destinos literários da actualidade.
No
entanto, note-se por curiosidade, Constance ou Práticas Solitárias tem
algumas incongruências narrativas, verdadeiras falhas de “raccord” (que levam o
tradutor, em defesa dele, a apontá-las em nota de rodapé), mas que parecem tão
importantes como as “fífias” de um exímio pianista. A edição portuguesa revela
uma tradução esforçada, e muitas vezes conseguida, de um estilo que não poucas
vezes atinge o preciosismo. Há, contudo, que lamentar a proliferação de gralhas
que, de forma sistemática, perturbam a compreensão do texto.
Publicado
no Expresso em 1986.
Título: Constance ou Práticas Solitárias
Autor: Lawrence Durrell
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Difel
Ano: 1986
410 págs, € 16,11
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