ALGUÉM CHORA POR NÓS
A um
certo passo, em Agarra o Dia de Saul Bellow, um velho médico burlão, que
pretende continuar a “enrolar” a personagem principal, Tommy Wilhelm, diz, ao tentar
convencê-lo da pertinência do projecto deste de separação e divórcio: ”Porque a deixa fazê-lo sofrer assim? (...) Não
faça o jogo dela. (...) Quero dizer-lhe, não case com o sofrimento. Há quem o
faça. Casam com ele, e dormem e comem juntos, como marido e mulher. Se deixam
entrar a alegria pensam que é adultério.” E mais adiante, comentando a
realidade que o circunda: ”Sete por cento
deste país estão a suicidar-se por meio do álcool. Outros três, talvez, narcóticos.
Mais sessenta que escorregam para o pó por meio do tédio. Mais vinte que venderam
a alma ao demónio. E, então, há a pequena percentagem daqueles que querem
viver. E essa é a única coisa com significado em todo o mundo de hoje. Esses são
apenas os dois tipos de pessoas que há. Alguns querem viver, mas a grande maioria
não. (,,,) Digo-lhe mais — continuou —, o amor dos moribundos resume-se a uma
coisa: querem que morramos com eles. É porque nos amam. Não nos enganemos.”
Este
longo “discurso”, colocado ironicamente na boca de um charlatão, sintetiza o
quadro que ensombrece toda esta obra de Saul Bellow.
Tommy
Wilhelm encontra-se a meio da sua vida e sente-se totalmente falhado. Repudiado
pelo pai, abandonou mulher e filhos, não conseguiu afirmar-se como actor de
cinema, sentiu-se obrigado, em termos morais, a abandonar o emprego, investiu o
pouco dinheiro que ainda tinha na Bolsa de Mercadorias e perdeu-o. Vive num
hotel, com as contas por pagar, sem amigos, e, principalmente, de todo
descrente em relação a si próprio. Tommy Wilhelm, quer queira ou não, casou-se
com o sofrimento.
É por
isso que, ao fazer um balanço da sua própria vida, durante vinte e quatro horas,
Tommy Wilhelm, desvenda um dos mais cruéis sintomas da sociedade americana: envolvidos
em tantos estímulos de afirmação e consumo, convencidos de que o querer desliza
sem atritos nesta sociedade, os homens desfazem e refazem as suas vidas, diluindo-se
na névoa dos dias sem deixarem qualquer rasto.
Talvez
em Portugal não se tenha ainda evidenciado a importância de Saul Bellow,
provavelmente o escritor americano mais saliente do pós-guerra. A obra deste
autor (vasta, com diversas fases distintas, galardoada com o Prémio Nobel, e
donde se destaca este Agarra o Dia, para muitos críticos
considerado como a sua obra-prima) não passa de um longo monólogo de um sujeito
que ambiciona a omnisciência do lugar, mas que, perante a irrazão dos actuais
mecanismos sociais, se sente desagregado e perdido.
É este
o ponto de partida que origina uma das visões mais pessimistas da sociedade
americana que alguma vez foi escrita: quando Tommy Wilhelm, no final das suas
deambulações de um dia avassaladoramente depressivo, se encontra, por acaso, no
funeral de um desconhecido, e rebenta numa crise de choro, aquilo que ele chora
é a total inutilidade do destino do homem contemporâneo. Mas Saul Bellow sabe
(e consegue transmitir-nos essa sensação, ao encerrarmos esta novela) que o verdadeiro
horror chegará quando a crise de choro passar, quando Tommy Wilhelm abandonar aquele
funeral de um individuo que, de um modo anónimo, personifica o irremediável e
universal sem sentido da própria existência.
Publicado na revista Ler em 1987.
Título: Agarra o Dia
Autor: Saul Bellow
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Fragmentos
Ano: 1987
112 págs., esg.
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