VIAGEM NO MAR DA MORTE
Creio que a primeira vez que me chamou a atenção o
nome de Fleur Jaeggy foi por causa de um título de uma obra sua: I
Beati Anni Del Castigo. De facto, conheço poucos títulos que sejam tão
intrigantes e fascinantes. Primeiro, pelo seu sentido litúrgico e sacrificial.
Segundo, pela musicalidade das palavras.
Quase de imediato, intrigou-me o nome da autora,
Fleur Jaeggy, muito invulgar para uma italiana. Vim mais tarde a saber que não
era italiana, mas suíça. Julguei de início que fosse originária dos cantões
cuja população fala italiano, o que mais me acicatou o interesse, pois não
conhecia nenhum autor que aí tivesse nascido. Por fim, descobri que a autora
tinha nascido em Zurique, em 1940, que viera muito nova para Roma e que, desde
1968, passara a viver em Milão, assumindo a língua italiana como sua.
Numa segunda fase, fui constatando certas
“afinidades electivas” de Fleur Jaeggy. Primeiro, que, ainda muito nova, fora
uma amiga chegada de Ingeborg Bachmann (1926-1973) - essa inqualificável e
atormentada escritora que, com Thomas Bernhard, domina como figura tutelar a
literatura austríaca do pós-guerra - e que esta acompanhou os inícios
literários de Fleur Jaeggy, fascinada pela sua sensibilidade peculiar e o seu
talento estilístico. Segundo, que, em 1968, casou com uma das figuras cimeiras
da cultura italiana contemporânea, o escritor e editor Roberto Calasso (1941),
não só um admirável prosador e ensaísta (relembro As Núpcias de Cadmo e Harmonia
e Os
Quarenta e Nove Degraus, publicados pela Ed. Cotovia, e A
Literatura e os Deuses, pela Gótica) como um notabilíssimo editor,
responsável por uma chancela italiana - que é um caso quase milagroso de
coerência intelectual e estética - chamada Adelphi.
Em seguida, ao ler algumas referências à obra de
Fleur Jaeggy, percebi que esta tem sido comentada e elogiada por escritores de
enorme prestígio na literatura contemporânea, como Joseph Brodsky, Giorgio
Manganelli, Pietro Citati, Susan Sontag (que considerou, no “Times Literary
Suplement”, a tradução em inglês de uma das suas novelas como o livro mais
importante publicado nesta língua em 2003), Cathleen Schine e Tim Parks. Por
último, que as suas obras têm recebido inúmeros galardões italianos (Prémios
Bagutta, Boccaccio Europa, Moravia, Viareggio) e têm sido traduzidas para
várias línguas.
Por tudo isto, há quem considere Fleur Jaeggy uma
das mais importantes autoras de língua italiana da actualidade. Em Portugal, creio que é
quase de todo desconhecida e nunca foi traduzida nem publicada.
O conjunto da obra desta autora é muito escasso:
em quarenta anos, publicou meia dúzia de títulos e as suas obras
caracterizam-se por serem tão breves quanto densas. De facto, é habitual
referir-se, quando se fala de Fleur Jaeggy, à qualidade do seu estilo: percebe-se
que as suas novelas são amadurecidas palavra a palavra, procurando construir um
tecido discursivo incisivo, despojado, de uma transparência mais aparente do
que efectiva, pois que se pressente uma margem de obscuridade que nos deixa
intrigados quanto a essa ludibriante clareza.
Para concluir esta introdução genérica, saliento
que, tendo em consideração o crescendo de referências e comentários críticos,
os seus últimos livros são, quase por unanimidade, considerados como os mais
perfeitos: o já referido I Beati Anni del Castigo (1989), La Paura del
Cielo (1994) e o derradeiro, até hoje, Proleterka (2001).
Foi já conhecedor destas e de outras referências
sobre a autora, que comecei, de forma um pouco acidental (a pedido de um editor
amigo), por ler a sua última novela.
A uma primeira abordagem, Proleterka parece ter uma
trama mínima: centra-se na narração de uma viagem de cruzeiro pela costa grega
(num barco jugoslavo chamado Proleterka) de uma jovem e do seu pai, que a
realizam com o intuito de compensar desta forma o desconhecimento mútuo. De
facto, até aquele momento (a jovem tem perto de dezasseis anos), nunca passaram
um período tão longo de convivência (catorze dias): “a filha de Johannes” fora
afastada do pai pela família materna (em particular pela avó, Orsola,
verdadeira “mater familias”) que procurou, por esta via, esgarçar todos os
vínculos entre eles, ostracizando o pai, como reacção à sua falência (ele
pertencia a uma secular linhagem de industriais têxteis), uma vez que, em
termos sociais, passara a ser encarado como um homem derrotado e “indigno”.
Encena-se, portanto, a viagem como narrativa
mítica de iniciação (as obras de Fleur Jaeggy, em particular as três referenciadas,
são uma espécie de reflexão sobre os mitos enquanto narrativas, recriando
situações variantes). Este valor iniciático da viagem torna-se ainda mais
evidente quando se descobre que a adolescente vai aproveitá-la para se abrir à iniciação
sexual com dois elementos da equipagem do navio: a experiência servirá para
afirmar o seu corpo como entidade “sensorial” livre e autónoma, estabelecendo
um estatuto, dentro da comunidade fechada de tripulantes e passageiros, gerador
de desejo e ciúme, e, em paralelo, para tornar claro à figura paterna – mesmo
que assuma esta atitude como humilhante – que já não há espaço possível para a
sua dominação.
Por outro lado, mais do que metáfora da vida, esta
viagem revela-se como uma autêntica deambulação pelo mar da morte,
principalmente quando o leitor percebe que o pai, quando efectua o cruzeiro, já
se encontra “tocado” por uma doença terminal. De facto, Proleterka inicia-se com
a vigília da filha ao cadáver de Johannes, antes da incineração, e o tom seco e
distante, quase lúdico, em que se comenta a situação (a jovem coloca, como se
fosse uma oferenda, dentro do casaco do pai, um prego, com o intuito de que
este presencie a própria combustão do corpo e que reste, com as cinzas, como
despojo simbólico de uma relação que não chegou a ser), reforça o sentido da
surda tragédia de “gaspillage” de afectos (quem é realmente o pai? que emoções
esconde aquele rosto debaixo da máscara da convencionalidade?) que se
cristaliza na recalcada dor da narradora.
A família aparece, assim, não só como uma redoma
asfixiante da curta existência da adolescente, mas também como núcleo de um
jogo de “armadilhas”, onde os afectos se perdem em constantes equívocos,
deixando sequelas de sofrimento que se arrastam ao longo da vida (veja-se o
caso do pai “biológico” que aparece no final da obra). Por isso, a narrativa de
Proleterka
desenrola-se numa constante alternância de momentos, ziguezagueando entre
diversas épocas da existência das personagens principais e transmitindo a
sensação de que essas recordações são como focos mais ou menos intensos, vindos
do reino das sombras e dos espectros, que não só tornam inteligível a dolorosa
insensatez daquele cruzeiro como permitem perceber o seu peso no fluir
emocional do dias: são os mortos que tonalizam o tempo, asfixiando a existência
dos vivos.
A intensidade dos momentos narrados leva, concomitantemente,
a autora a introduzir na obra uma estratégia de alternância do narrador: de
facto, por vezes há um “eu” narrador, bem identificado com a adolescente, e,
noutros trechos, a narração é feita por uma terceira pessoa do singular que
aparece como uma espécie de desdobramento da personagem principal, “olhando do
exterior” para os seus actos e emoções.
Por fim, em reforço do fascínio de Proleterka,
há que salientar a forma como são descritos os universos sociais das classes
altas da “Mittle-Europe”, com as suas figuras carregadas (e condicionadas) de
civilidade formal e referências culturais, vivendo numa ambiência “fanée” de
interiores repletos de flores, rendas e tecidos adamascados, linhas melódicas
de pianos, odores adocicados de perfumes e pó-de-arroz, que dá a esta obra uma
aliciante reminiscência proustiana.
Proleterka é, pelo seu estilo, problemática e capacidade descritiva, uma obra
verdadeiramente encantatória, justificando que fosse (bem) traduzida para
português e introduzida no mercado pelos nossos editores.
Publicado na web em 2008.
Título: Proleterka
Autor: Fleur
Jaeggy
Editor: Adelphi
Ano: 2001
114 págs., € 13,00