O “DUPLO” ANIMAL
Tenho escrito e
dito que a literatura narrativa atingiu hoje uma dimensão nunca alcançada na
história literária, tendo em vista a sua expressão geográfica: os modelos da
narrativa escrita ocidental foram, nas últimas décadas, conquistando
territórios (mesmo com algumas formas “miscigenadas” com modelos locais e
regionais de narrativa escrita e oral) e agregando à história da literatura
outras culturas e sensibilidades. Isso é visível em certas regiões da Ásia, mas
em particular da África.
Se descontarmos
algumas tentativas de expressão literária nas décadas de trinta e quarenta,
pode dizer-se que a afirmação das literaturas africanas, em particular nas
regiões sub-saharianas, foi feita, através das chamadas línguas dos países
colonizadores, após a II Guerra Mundial e, na maior parte das vezes, em simultaneidade
com as guerras de independência. Goste-se ou não, inevitavelmente essa produção
literária ficou marcada por necessidades imediatas de intervenção política e
militar. Além disso, a segregação racial, a miséria, o analfabetismo e o
neocolonialismo económico continuaram a impor, mesmo após a independência dos
países africanos, a necessidade de produzir uma literatura de combate, de
frente pública e de testemunho. Por isso mesmo, todos os conflitos mais íntimos
e pessoais das personagens narrativas apareciam numa dependência, mais ou menos
mecânica, dos conflitos sociais e políticos e, de certo modo, só serviam para
ilustrar os efeitos destes.
Nos anos setenta
e oitenta, com a consolidação das independências políticas, essa necessidade de
intervenção imediata afrouxou em certos países africanos, permitindo uma gradual
diversificação dos temas tratados e das técnicas narrativas. Foi a partir dessa
altura que certos autores granjearam projecção internacional (em particular, sul-africanos,
nigerianos, senegaleses, angolanos e moçambicanos), em grande parte devido à sua
capacidade de aliciar, em termos estilísticos, leitores de outras paragens: o
sucesso de quase todos os autores africanos foi obtido na Europa e nos Estados
Unidos, sendo quase por completo ignorados (eu diria tragicamente, dado o nível
baixíssimo de escolaridade e o fraco poder de compra das populações africanas) entre
os leitores dos países de onde são originários.
Estas
considerações vêm a propósito da leitura do romance Mémoires de porc-épic de
Alain Mabanckou, um escritor originário da República do Congo (mais conhecida
por Congo-Brazzaville).
Creio que o
leitor português comum não conhece nem ouviu falar de nenhum autor deste país
e, provavelmente, até se interroga se possui uma literatura digna deste nome.
Não admira, porque, de facto, nenhum autor do Congo-Brazzaville atingiu a
mínima projecção internacional e apenas alguns nomes e obras têm reconhecimento
entre especialistas de literatura africana do universo francófono.
De qualquer
modo, registo aqui, para satisfazer uma possível curiosidade do leitor, os
nomes de alguns autores mais prestigiados do Congo-Brazzaville, como Jean
Malonga (1907-1985; considerado o “pai” da literatura congolesa), os poetas
Tchicaya U Tam’si (1931-1988) e Henri Lopes (1937) e os novelistas Emmanuel
Dongala (1941) e, em particular, Sony Labou Tansi (1947-1995); recentemente, porém,
o autor primeiro referido, Alain Mabanckou (1966), atingiu uma projecção já
significativa, com a obra que acabei de ler: em 2006, Mémoires de porc-épic obteve,
em França, o Prix Renaudot, tendo sido, de um modo genérico, bem aclamado pela
crítica deste país.
Pode dizer-se
que a ideia base de Mémoires de porc-épic é interessante, principalmente porque nos
remete para os “contos” de tradição oral africanos: todos os homens têm um
“duplo” animal nefasto, pois, por vezes, comete, pelos homens, os erros e os
“pecados” mais vis e sangrentos, satisfazendo assim os seus desejos obscuros e
imorais.
O romance é
constituído pelas “confissões” de um porco-espinho à sua “baobab” (embondeiro),
depois de Kibandi, o homem de quem era “duplo”, ter morrido, e de, portanto, perceber
que os seus dias também estavam contados…Essas confissões vão revelar que este
“duplo”, perverso e traiçoeiro, tinha “comido” muitos humanos, isto é, que
tinha originado a morte ou mesmo assassinado, de forma brutal, vários inimigos
ou indivíduos que, por ciúme, inveja ou despeito, o seu “mestre” humano sentiu
desejo de eliminar ou apenas de “afastar”.
Através destas
“confissões”, vai aparecendo um conjunto de personagens picarescas e
características das pequenas comunidades rurais, ainda de base tribal, e outros,
já ocidentalizados e “ilustrados”, que representam o modelo social que se
perfila no horizonte destas comunidades e que irá, decerto, alterar a sua trama
milenar de instituições sociais e de relações interpessoais, assim como a sua
relação com a Natureza.
De certo modo, Mémoires
de porc-épic procura efabular esta situação de transição das
comunidades rurais do Congo-Brazzaville. E é nesse contexto que deve ser
entendida a notória intenção de retomar uma certa tradição oral dos contos
populares. Por isso, um dos aspectos mais aliciantes para o leitor, ao iniciar
a leitura desta obra, é constatar como Alain Mabanckou tentar reformular essa
tradição em termos literários… A solução parece-nos, contudo, um pouco
convencional: opta-se por uma construção frásica de tipo torrencial, com
diminuta pontuação, pelo aproveitamento da gíria popular e pela repetição de
certos vocábulos, imagens e metáforas, transformando-os em “leitmotivs”
discursivos.
Porém, a maior
fragilidade deste romance está, no entanto, na inexistência de uma estrutura
narrativa consistente: o carácter “confessional”, com que o romance é alinhavado,
favorece a sucessão de histórias e anedotas numa continuidade cronológica, sem
crescendo de intensidade ou de dramatismo, como camadas que envolvem um
inexistente núcleo central. Por isso, o autor vai perdendo-se em inúmeras
divagações desequilibrantes, terminando o romance, como se não descobrisse
outra solução, de forma um pouco abrupta e inepta…
A minha opinião
final é que Mémoires de porc-épic é uma obra que se centra numa ideia
literariamente bem intencionada, mas concretizada de forma insuficiente… E este
juízo leva-nos também a questionar sobre o nível a que chegou a produção
literária da edição francesa no ano de 2006, para se conceder a esta obra um
dos prémios mais prestigiados deste país.
P.S. – Já depois
de ter redigido esta recensão, constatei que uma já velha chancela portuguesa -
que acreditava que se encontrava em fase de “limbo” editorial – iniciou uma
nova colecção de obras narrativas, chamada “Raízes”. A sua orientação –
parece-me – é de publicar obras oriundas de literaturas do Terceiro Mundo; e,
quanto tomei conhecimento dela, já tinha editado, entre muitos autores
interessantes (eu chamo a atenção para o escritor do Djibuti, Abdourahman A.
Waberi, dos Camarões, Léonora Miano, do egípcio Rachid El-Daïf, dos senegaleses
Fatou Diome e Boris Diop, e da indiana Ananda Devi), este romance de Alain
Mabanckou.
Confesso que
ainda não tive tempo para analisar a tradução portuguesa. Mas, de qualquer
modo, gostaria de perguntar uma coisa: como é possível que uma colecção com
estas características – única em Portugal – edite títulos atrás de títulos sem
ter nenhum eco na imprensa portuguesa?
Publicado na web
em 2008.
Autor: Alain Mabanckou
Título: Mémoires du porc-épic
Editor: Seuil
Ano: 2006
228 págs., €
15,68
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