quinta-feira, 11 de agosto de 2016

EDUARDO GALEANO

 
 
A POÉTICA DA MILITÂNCIA
 
Há já uns anos, uma pessoa minha conhecida – provavelmente a mais brilhante contadora de histórias do nosso país – dizia, à laia de desabafo, que adorava Lo Libro de los Abrazos de Eduardo Galeano e que iria fazer tudo para convencer um editor a traduzi-lo e a publicá-lo em Portugal. Foi este entusiasmo, expresso por uma pessoa que muito respeito e prezo, que me levou a conhecer melhor este autor e, em particular, esta obra.
 
Diga-se de passagem que, à primeira vista, parece um pouco estranho que este autor seja tão pouco conhecido e editado no nosso país, pois Eduardo Galeano é um dos intelectuais mais prestigiados e influentes na (e da) América do Sul. Num trabalho recente, publicado no suplemento Babelia do “El País”, sobre a evolução da literatura latino-americana após o “boom”, a sua trilogia narrativa Memoria del Fuego (1982-1986) era considerada como uma das obras fundamentais desta literatura nos últimos trinta anos.
 
Porque, não há dúvida nenhuma, a edição portuguesa tem dado alguma atenção à produção literária latino-americana…E, por isso, parece estranho que este autor tenha sido publicado em pequenas editoras (Dinossauro, Livros de Areia) que - mesmo tendo catálogos interessantíssimos – têm uma frágil distribuição; ou que a obra publicada na Ed. Caminho tenha tido tão pouca repercussão na comunicação social atenta à literatura. Ora, as obras publicadas de Eduardo Galeano (que foram, seguindo a referência acima feita das editoras, As Veias Abertas da América Latina, Futebol: Sol e Sombra e De Pernas Para o Ar: a Escola do Mundo às Avessas) não só são das que mais contribuíram para o prestígio e popularidade do autor como também são exemplares das características literárias de toda a sua obra.
 
Eduardo Galeano nasceu em 1940 no Uruguai, um dos países da América Latina com uma relevante literatura: recordo, a título de exemplo, autores como os contistas Horácio Quiroga (1878-1937), já editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, e Felisberto Hernández (1902-1964), o magnifico romancista Juan Carlos Onetti (1909-1994), de quem a Ed. 70 publicou há muitos anos uma novela, e ainda Mário Benedetti (1920-), Cristina Peri Rossi (1941-), com um livro editado na Teorema, Mário Delgado Aparaín (1949-), com três novelas publicadas na Asa, e Cármen Posadas (1953-), também editada na Quetzal e na Temas & Debates.
 
Como uma boa parte dos autores sul-americanos, Eduardo Galeano começou como jornalista e foi a partir desta actividade que enveredou pela literatura, evidenciando-se como ensaísta, ficcionista e poeta. Porém, ao contrário de muitos escritores que, a pouco e pouco, se foram afastando das técnicas de escrita do jornalismo, Eduardo Galeano nunca abdicou desta sua profissão e, paralelamente, procurou fundir essas técnicas jornalísticas – em particular as da crónica - com as de romancista e poeta. De certo modo – e isso já foi referenciado por alguns comentadores da sua obra – desenvolveu uma linha narrativa que tem como antepassado ilustre o escritor americano John dos Passos (estou a referir-me à trilogia Memoria del Fuego que parece ter algumas similitudes técnicas com a trilogia U.S.A. do autor americano).
 
Eduardo Galeano é bem conhecido em toda a América Latina pelas suas posições de esquerda e pela sua militância pelas causas da democracia, da justiça social e do ambiente. Não admira, por isso, que tenha sido, na década de setenta do século passado, perseguido e preso pela ditadura militar no seu país e, mais tarde, após um primeiro exílio na Argentina, pela ditadura militar de Videla, onde chegou a integrar as listas de condenados dos esquadrões da morte. Viveu então, durante cerca de dez anos, exilado em Espanha, só regressando a Montevideu em 1985.
 
Bastante profícuo (já publicou mais de quarenta títulos, entre poesia, ensaio histórico, crónica, “relatos”, pequenas novelas e, por fim, romances), Eduardo Galeano obteve o reconhecimento internacional com uma das obras traduzidas para português, As Veias Abertas da América Latina (1971), onde reflecte sobre a exploração secular que a América do Sul tem sofrido por parte de povos e nações colonizadores. Mas a obra que, em termos consensuais, é reconhecida como o seu trabalho de mais elevada qualidade literária, é, como já referi, a trilogia romanesca Memoria del Fuego, onde, através de várias técnicas narrativas e da utilização de materiais documentais (alguns deles assumidamente forjados) de diversa origem, coloca em acção inúmeras personagens históricas que interagem com outras inventadas (e que representam distintos extractos sociais), narrando assim a história da América do Sul desde a época pré-colombiana até aos dias de hoje.
 
Outra obra de Eduardo Galeano com enorme prestígio e popularidade é este Lo Libro de los Abrazos (1989) que acabei de ler. A primeira evidência para o leitor, quando abre o livro, é que ele foi pensado como um todo, procurando interligar todos os seus elementos: a paginação e as gravuras - que o preenchem da primeira à última página - foram concebidas pelo próprio autor e visam criar a ambiência necessária para os textos “respirarem”.
 
A componente escrita desta obra é constituída por pequenos textos de feição muito diversa e que variam entre o poema, a crónica, a narrativa e o panfleto. Mas, em particular, nos textos mais conseguidos, percebe-se que existe, tanto pelo ritmo frásico como pela estrutura narrativa, uma concepção poética subjacente à sua construção que procura induzir no leitor um “efeito revelador”. Assim, essa “poiesis” visa, nos textos de Lo Libro de los Abrazos, actuar como uma “semiosis” que destaca do real os “sinais” da “intensidade lírica” abafada sob a banalidade quotidiana e o “dístico”, a frase pintada e a sentença proclamada que revelam – mais do que pretendem – as contradições culturais e políticas das sociedades latino-americanas e a avidez de sangue e suor dos actuais modelos globais de exploração económica. Esse trabalho de “desocultação” utiliza diversos instrumentos e, entre estes, deve ser destacado o humor: é ele que leva à aproximação de metáforas, a associar conceitos de universos distintos (similar ao exercício de “colagem” das ilustrações do livro), num jogo de aparências (i)lógicas tendencialmente surrealizante.
 
Eduardo Galeano tenta, com Lo Libro de los Abrazos, demonstrar como a poesia e arte são, antes dos mais, manifestações da “sabedoria” que impregna o quotidiano e a vida anónima dos povos: o “olhar” do poeta tem o dever militante de as descobrir e de saber transmiti-las por palavras e imagens. A literatura, na concepção do autor, é, por conseguinte, uma cabeça de Janus, conciliando a poesia e a militância e sabendo que um dos seus “rostos”, conforme o momento e a circunstância, estará mais “exposto” e “ocultando” o outro.
 
Ora, na nossa perspectiva da literatura, é esta a maior fragilidade do projecto literário de Eduardo Galeano: poesia e militância são inconciliáveis e está na própria tentativa de conciliação a “contaminação degradante” da literatura. Não quero dizer com isto que seja impossível a existência de problemáticas sociais e políticas no universo literário; simplesmente, irrompem na obra sem necessidade de qualquer conciliação com o discurso militante (relembro, a título de exemplo, algumas obras de autores tão inconciliáveis com o discurso militante como Samuel Beckett ou J. M. Coetzee).
 
É, por isso, que o leitor fica muitas vezes perplexo perante os textos de Lo Libro de los Abrazos: um bom número deles atinge a “magia verbal” da mais genuína poesia (chamo a atenção, por exemplo, da sublime série de textos aforísticos de La Noche) e, ao lado, página contra página, descobre-se o panfleto de todo desinteressante em termos literários…   
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Eduardo Galeano
Título: Lo Libro de los Abrazos
Editor: Siglo Veintiuno
Ano: 2003
265 págs.,  € 15,20  
 

 
 



Sem comentários: