ENTRE A LIBERTAÇÃO E O
DELÍRIO
Observando
à distância o chamado “boom” latino-americano do início dos anos setenta, dois
aspectos, de ordem diversa, parecem hoje ser os mais “instrutivos”: primeiro,
que aquele foi, em grande parte, resultante da capacidade dos agentes
editoriais de Barcelona em afirmar-se nos circuitos internacionais que definem
o gosto e a apetência literária, evidenciando-se assim o percurso que iria transformar
aquela cidade no verdadeiro pólo irradiante da literatura em língua espanhola;
segundo, que foi, antes do mais, um fenómeno mediático, produto de uma hábil
utilização dos canais informativos e publicitários, o que mais uma vez realça
que este tipo de fenómenos, em vez de ser encarado como um parasita encravado
no seio da “pureza” da literatura, deverá, pelo contrário, ser assumido como um
elemento determinante para a compreensão da história literária contemporânea.
Estas
considerações vêm a propósito do lançamento em português de mais uma obra de um
autor protagonista do referido “boom”, o peruano Mario Vargas Llosa.
Pertencente a uma das mais prestigiadas literaturas hispano-americanas (lembremo-nos
de autores como César Vallejo, José Maria Argüedas e Ciro Alegria ou, mais próximo
de nós, Alfredo Bryce Echenique), este romancista integra o lote de autores que
naquela altura foi lançado, de forma espectacular, nos circuitos internacionais
da edição, aproveitando as obras da sua primeira fase, sem sombra de dúvida, as
mais significativas, pela acutilância na observação das crispações de uma
sociedade fechada e violenta e pela tentativa de, através da análise de um
microcosmos, referenciar, em termos simbólicos, toda a ambiência social peruana
(recorde-se, por exemplo, o magnífico Conversas na Catedral).
A Tia
Júlia e o Escrevedor, o romance agora traduzido, pertence, com
Pantaleão
e as Visitadoras, a uma segunda fase romanesca, bem mais interessante
do que as ambiciosíssimas últimas obras, tanto mais não seja pela constante e
acertada utilização do humor como forma de realçar algumas das incongruências
mais excessivas da sociedade peruana.
Este romance
desenvolve-se em dois registos estilísticos diferentes, alternados capítulo a
capítulo, mas com uma função estrutural na economia da obra: por um lado, narra-se,
utilizando um registo verista e objectivo, a iniciação amorosa da personagem
principal, identificada, de forma deliberada, com o autor (tem o nome de Mario
ou Varguitas), com uma parente por afinidade, a tia Júlia, e, ao mesmo tempo, a
relação de amizade daquele com um colega de emprego, Pedro Camacho, prolífero
escritor de radionovelas; por outro, expõem-se as tramas dos inúmeros folhetins
diários deste radionovelista, através de um estilo rebuscado e melodramático.
Assim,
e num constante crescendo, nós percebemos que, conforme aquela experiência
amorosa se intensifica, confrontada com interditos sociais que a encaram apenas
como uma corrupção de um menor por uma familiar, é obrigada, para se
concretizar e afirmar, a peripécias cada vez mais rocambolescas. Em paralelo,
os folhetins de Pedro Camacho, em consequência do seu esgotamento, vão-se
tornando também mais catastróficos e delirantes, entrecruzando-se os enredos
das diversas radionovelas, “matando” e ressuscitando as personagens de episódio
para episódio, alterando-lhes o nome e o comportamento de cena para cena, até
transformar a sua escrita num “magma” (para utilizar uma expressão querida a
Vargas Llosa) onde o pulsar referencial da realidade se metamorfoseia na mais
absurda fantasia.
Este
confronto estilístico de A Tia Júlia e o Escrevedor permite
assim salientar uma das suas ideias matriz: a de que existe uma
proporcionalidade directa entre a apetência do romanesco de uma sociedade e a
subjugação desta a hierarquias e estereótipos morais rígidos e a necessidades
materiais asfixiantes. E da mesma forma que a libertação dessa teia, que surdamente
mina o prazer de ser, só se consegue através de golpes de pulso e de gestos
espectaculares que transformam a existência num fabuloso folhetim, assim também
só é compensada essa realidade por um romanesco carregado de todas as tónicas
do barroco e do excesso. Isto é: a própria realidade vai empurrando o romanesco
para o delírio. É este o sentido do destino absurdo de Pedro Camacho que, por necessidades
materiais e para conseguir a independência e a permanência da sua “arte”, se vê
obrigado a escrever mais de dezasseis horas por dia, até se consumir na sua própria
escrita.
Por
outro lado, torna-se assim notório, em A Tia Júlia e o Escrevedor, que o nível
do registo narrativo não é só uma opção estilística quanto às formas de representação
do real, mas uma opção determinada pelas características do ponto de partida
que ela vai recriar: o relato pretendido como verídico atinge, no final do romance,
as ambiências romanescas dos folhetins iniciais de Pedro Camacho.
De
qualquer modo, o resultado deste contraponto estilístico que estrutura A Tia
Júlia e o Escrevedor é um empolgante fresco sobre a sociedade andina
dos anos cinquenta. A tradução parece-me, em termos globais, correcta, em
particular tendo em consideração as dificuldades dialectais que a obra
apresenta, e por conseguir demarcar com habilidade os seus diferentes registos
narrativos.
Publicado no Expresso em 1988.
Título: A Tia Júlia e o Escrevedor
Autor: Mario Vargas LlosaTradutor: Cristina Rodriguez
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
340 págs., € 18,90
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