PELAS DESOLADAS
FLORESTAS DO NORTE
Já vi várias
vezes escrito que Jim Harrison (1937) é uma espécie de lenda viva da literatura
americana contemporânea. De facto, já não é comum encontrar um autor, em plena
actividade, a escrever uma prosa tão torrencial e telúrica. O seu vigor
narrativo remete-nos para certa produção literária dos anos sessenta e setenta (há
quem fale dele como um dos últimos expoentes da “geração beat”) e pode
afirmar-se, com serenidade, que a sua estirpe literária tem, como pais tutelares,
Melville, Thoreau e Whitman e, na sua prosa, confluem as dúcteis sombras de Hemingway,
Faulkner e Wolfe. Além disso, o homem é uma figura inesquecível: há nele
qualquer coisa de pantagruélico e o seu apetite inesgotável de viver
transforma-o numa espécie de sacerdote das coisas boas da vida: a comida, a
bebida, a amizade, o sexo e a comunhão com a Natureza.
Jim Harrison,
que sempre se considerou, em primeiro lugar, um poeta, tem já uma vasta obra,
onde se destaca, no campo da ficção, Legends of the Fall (1979), Dalva
(1988), Julip (1994), True North (2004) ou The
English Major (2008). Nunca foi traduzido ou editado em Portugal.
Wolf
(1971), a última obra que li de Jim Harrison, é o seu primeiro livro em prosa (por
favor, não desistam de ler o livro por causa do filme homónimo que, de acordo
com o realizador e os guionistas – que inclui o próprio Harrison -, foi
retirado deste romance (?) e que se revelou ser um disparatado equívoco). Segundo
o autor, foi o escritor Thomas McGuane, seu amigo, que o incitou a escrever,
depois de já ter publicado alguns livros de poemas.
Este romance é,
de toda a sua ficção, onde é mais notória a presença da “geração beat” e da
narrativa californiana (o Henry Miller de Big Sur, John Fante, Jack Kerouac,
Richard Brautigan, etc.) e, naturalmente, da prosa de Thomas McGuane.
A expressão “A
False Memoir” aparece como subtítulo de Wolf e é bem reveladora das intenções
de Jim Harrison: pretende-se, antes do mais, estabelecer uma conexão ambígua
entre o narrador e o autor, onde, por um lado, se alude a um estatuto de alter-ego
e, por outro, se questiona o carácter biográfico da trama, remetendo esta obra para
a categoria de romance. De facto, o conjunto de situações narradas serve para
representar, de forma contextualizada, o quadro emocional experimentado pelo
escritor ao procurar, nas suas deambulações resultantes de uma estrutural
insatisfação, algum lastro e sentido para a sua própria existência.
O romance entrelaça
dois modelos narrativos com uma enorme tradição na literatura americana:
primeiro, aquele em que o narrador/personagem principal, por razões voluntárias
ou involuntárias, se vê “mergulhado” numa situação limite de isolamento, com
poucos meios de subsistência e em estreito contacto com o mundo selvagem,
transformando-se a experiência dessa situação numa via iniciática de
auto-conhecimento. Swanson, o narrador de Wolf, quando resolve refugiar-se nas
Huron Mountains, uma zona de floresta inóspita, totalmente deserta, do
Michigan, é com o intuito de, nesse isolamento, procurar perceber o sentido da
sua peregrina existência, salpicada de cenas de sexo, muito álcool e encontros
de intensa, mas fugaz, camaradagem. Porém, é esta mesma torrente de “flash-backs”,
onde se descrevem encontros e desencontros que se registam em diversos locais
dos Estados Unidos, que aproxima este romance da linha narrativa de obras que
se tornaram conhecidas pela classificação “on the road” (em clara referência ao
ultra famoso livro de Jack Kerouac), em que as situações se sucedem numa cadeia
que é resultante da “viagem” do narrador/personagem principal e onde vão aparecendo
figuras díspares, mas, de forma semelhante, perdidas no seu destino e na sua
geografia.
Wolf
revela ser uma lírica e, ao mesmo tempo, humorada reflexão sobre o desencanto
da vida e a busca quase desesperada de encontrar formas que o serenem e superem:
o deslumbramento com a Natureza, a solidão contemplativa e silenciosa, o
entorpecimento evasivo com o álcool, os momentos de cumplicidade envolvente com
os animais, os amigos e as mulheres, e, por último, a escrita e a poesia são entendidos
como diversos afluentes que nos encaminham para um júbilo primordial que a
passagem do tempo constantemente distancia e esbate.
No fundo, esse
desencanto com a vida deriva da impossibilidade de atingir uma radical harmonia
com a Natureza (tão desejada por toda a “geração beat” e também, por
conseguinte, por Jim Harrison): o “lobo” (que dá título ao romance e que nunca
aparece), “perseguido” pelo narrador, torna-se a referência simbólica (ou totem,
para usar a expressão de um recente autor chinês, Jiang Rong, que escreveu uma
vasta obra sobre a estreita relação entre os lobos e as tribos nómadas mongóis)
dessa “comunhão selvagem” anterior aos “códigos” com que a civilização defende
a humanidade da própria Natureza. De facto, e esta é a contradição dilacerante
de toda a obra de Jim Harrison, a civilização, ao permitir que o Homem possua
os “códigos” que o protegem da violência natural, transmitindo-lhe os
instrumentos (ilusórios) da compreensão e expressão, injecta-lhe, ao mesmo
tempo, os germes da incomunicabilidade e, por consequência, o desespero de uma
vida que será para sempre incompleta.
Publicado na web em 2012.
(Foto do Autor de Aaron Lynett).
(Foto do Autor de Aaron Lynett).
Título: Wolf
Autor: Jim Harrison
Editor: Delta
Ano: 1981
224 págs., $
15.00