ÉS UM ANIMAL,
LEITOR!
Certo dia, numa
sessão pública sobre literatura para a infância e juventude, ouvi o escritor e
poeta Manuel António Pina dizer que se irritava um pouco com esta
classificação, porque, para ele, “a boa literatura para a infância e juventude
é, antes do mais, boa literatura e ponto”. E recordava casos de obras clássicas
bem conhecidas cuja inclusão na chamada literatura para a infância e juventude
derivava mais do nível etário do leitor do que das características da própria
obra. Confesso que, enquanto o ouvia, um pouco indeciso sobre a pertinência das
suas afirmações, tentei recordar-me de casos de obras que ilustravam bem estas
considerações: deixando de lado os casos clássicos, lembrei-me, entre outras,
das obras “ditas de literatura para a infância e juventude” do próprio Manuel
António Pina e das novelas de um escritor alemão de que gosto muito, Michael
Ende (1929-1995).
Ao ler agora a
única obra publicada de um autor italiano chamado Alessando Boffa, intitulada Sei
Una Bestia, Viskovitz, recordei esta sessão e pensei que estava em presença de mais um bom exemplo para
fundamentar as considerações de Manuel António Pina.
Torna-se difícil
para mim recordar como descobri este autor de língua italiana. Creio que foi na
web, na minha constante busca de obter informações para a base de dados que
ando, há vários anos, a construir. Penso que deve ter ajudado a referenciá-lo o
facto de saber que o seu livro foi publicado, na edição americana, por uma das
editoras que mais aprecio (Alfred A. Knopf). De qualquer modo, aquilo que li na
web acicatou-me o suficiente para comprar o seu livro e lê-lo - numa voragem.
Muito pouca
informação consegui recolher sobre Alessandro Boffa. Sei que nasceu em 1955, em
Moscovo, que é biólogo de formação e profissão, que tem vivido um pouco por
todo o mundo e que, presentemente, vive entre a Tailândia e Roma…E que, em
1998, publicou Sei Una Bestia, Viskovitz, que obteve um significativo sucesso
crítico (ganhou o Prémio Elio Vittorini) e comercial, tendo sido de imediato
traduzido para diversas línguas e editado num número significativo de países.
Antes do mais,
gostaria de tornar bem clara a minha posição em relação a esta obra, fazendo
uma afirmação categórica: há já alguns anos que não lia nenhum conjunto de narrativas
que considerasse tão deliciosamente divertido, fruto de um humor inteligente, e
conseguindo, com argúcia (e uma boa dose de afecto), desvendar muitas das mais
comuns fragilidades da condição humana… e animal. Algumas destas narrativas
demonstram uma notável perícia ficcional e são tão habilmente construídas que
se tornam de todo inesquecíveis. Estamos em presença – e não tenho nenhum
receio em o afirmar – de uma “pequena obra-prima”.
A ambição de
Alessandro Boffa, ao redigir Sei Una Bestia, Viskovitz,
é inequívoca: construir um novo fabulário na tradição de Esopo e de La
Fontaine. E – é outra aposta decisiva – com um programa narrativo na aparência
simples e constante nas vinte “histórias” que constituem a obra: há um
protagonista, Viskovitz, que deseja incessantemente “copular” com a bela Ljuba,
aparecendo, em seu redor, um conjunto de figuras secundárias, os “companheiros”
(?) Jana, Zucotic, Petrovic e Lopez que, com os seu conselhos e a sua acção,
perturbam ou estimulam o problemático protagonista a “consumar” os seus
desejos. Por conseguinte, o que na essência muda de história para história é o
animal e, por consequência, as suas referências biológicas e etológicas.
De facto, sem
ser uma obra de divulgação científica (é importante que o leitor não se iluda e
tenha presente que o livro de Alessandro Boffa não pretende, de forma alguma,
perseguir este objectivo), toda a trama narrativa de cada fábula procura
respeitar, com alguma “recriação”, as características biológicas e
comportamentais do animal que o protagonista e os restantes personagens
encarnam. Saliente-se que, no essencial, não existe, também neste aspecto,
nenhuma substancial diferença entre Sei Una Bestia, Viskovitz e a
tradição fabularia já referida. Simplesmente, os conhecimentos científicos
sobre o mundo animal aumentaram de forma expressiva nas últimas décadas e hoje
é possível, como exemplifica bem esta obra, construir narrativas cujas
personagens são caracóis, esponjas, louva-a-deus, escaravelhos, camaleões ou
tubarões, e, com essa opção, arquitectar situações que, em termos analógicos,
podem esclarecer inúmeras ambiguidades, obscuras fantasias, terrores, etc., que
assaltam e inquietam os leitores humanos nas suas deambulações amorosas e nas
suas tentativas para conseguir alguma felicidade e harmonia nesta vida.
Esta obra de
Alessandro Boffa parte de uma constatação simples e facilmente admissível para
o leitor: a de que os impulsos que estruturam a vida (a sexualidade e o desejo
de reprodução, o instinto de sobrevivência e o repúdio da morte) são universais
(isto é, comuns a todos os seres vivos) e, portanto, que existe este mínimo
denominador entre os homens e os outros animais. Por isso, pode afirmar-se que
está na matriz desta obra a convicção de que o leitor irá efectuar de forma
constante, no acto de leitura, um exercício analógico entre as situações
descritas no contexto animal e a sua própria experiência humana. E que esse
exercício analógico se torna quase instintivo e, por conseguinte, subliminar a
qualquer atitude consciente…
Contudo, não há
nenhuma intenção “moralizadora” em Sei Una Bestia, Viskovitz, como
existia na linha fabularia de Esopo e La Fontaine: é evidente que Alessandro
Boffa sabe que hoje não é admissível associar a Natureza a qualquer tipo de
ética – até mesmo no reino da fábula. Porém, pode-se, in extremis, deduzir
destas histórias que os factores biológicos têm no comportamento e nas acções
humanas uma capacidade condicionante superior ao que racionalmente se pode
aceitar, considerando esta dedução como um princípio geral de uma ética.
Sem contar a
trama de nenhuma destas fábulas, não resisto à tentação – com o fim de acicatar
o apetite do leitor – de contextualizar algumas destas personagens. Imagine-se
um caracol (recorde-se que é hermafrodita) que se apaixona por uma amada(o) que
está à distância de uma vida; ou um louva-a-deus que só sobrevive em
consequência de sofrer de ejaculação precoce; ou um camaleão, cujos problemas
de identidade levam também a não conhecer de facto quem é a sua amada; ou as
dificuldades de comunicação do esgana-gata (?), mergulhado no seu aquoso
silêncio; ou a absurda história de amor de um leão que sobrevive à conta de
documentários “wildlife”, etc., etc.
Percebe-se, por
esta meia dúzia de exemplos, que a maior evidencia literária desta obra é o seu
humor, presente não só na sintaxe, nas opções lexicais e na construção dos
diálogos, mas principalmente na própria concepção das tramas narrativas. Além
disso, dado o jogo de similitudes que as diversas situações descritas provocam,
pode considerar-se que, numa perspectiva do público infantil, estas fábulas são
excelentes instrumentos para o desenvolvimento da capacidade lógica.
Por tudo isto, deve
compreender-se o nosso entusiástico conselho para que exista uma tradução
portuguesa de Sei Una Bestia, Viskovitz no mercado editorial português: tenho
quase a certeza que esta obra irá afirmar-se como uma boa via para estimular os
hábitos de leitura entre a população juvenil e (porque não dizê-lo?) uma aposta
interessante em termos comerciais.
Publicado na web
em 2009.
Título: Sei una bestia, Viskovitz
Autor: Alessandro Boffa
Editor: Garzanti
Ano: 1998
141 págs., €
8,00
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