A SOMBRA DO DESEJO
Chamou-me a atenção, nos últimos tempos, a leitura
de algumas referências críticas sobre um autor espanhol que desconhecia: Julián
Ayesta. De facto, em diversos “sites” e jornais afirmava-se, de forma mais ou
menos categórica, que a sua novela Helena O El Mar Del Verano era uma das “obras mais importantes da
narrativa espanhola do pós-guerra”. Ora, eu considero que tenho um razoável
conhecimento da literatura contemporânea espanhola, que li algumas das mais
importantes histórias da literatura deste período, e não me recordo de alguma
vez ter registado alguma referência sobre o autor. Naturalmente, esta situação acicatou-me
o interesse em obter mais informações sobre Julián Ayesta e em ler a citada
novela.
É evidente que estas classificações valem o que
valem (a propósito: convém deixar claro que, no quadro dos parâmetros
cronológicos da literatura espanhola, a referência “pós-guerra” delimita as
décadas imediatas à Guerra Civil) … De qualquer forma, se tivermos em
consideração os inúmeros romancistas e novelistas que são reconhecidos, tanto
em Espanha como em termos internacionais, como grandes criadores que iniciaram
a sua produção ou publicaram algumas das suas obras mais importantes neste
período (recordo, a título de exemplo, os nomes de Camilo José Cela, Gonzalo
Torrente Ballester, Miguel Delibes, Cármen Laforet, Luís Martin-Santos, Juan
Goytisolo, Juan Benet, Rafael Sanchez Ferlosio, Juan Garcia Hortelano e Ignacio
Aldecoa), parece-nos estas declarações - em louvor de um autor desconhecido - bem
arrojadas…
Os dados biográficos mais relevantes do autor
permitem-nos, em parte, compreender as razões por que a sua obra caiu num
relativo esquecimento ou sofreu uma posterior desvalorização. Julián Ayesta
(1919-1996) nasceu em Gijón, no seio de uma família prestigiada localmente, alistou-se
muito novo na Falange (ainda antes da Guerra Civil), formou-se em Direito e em
Filosofia, e, a nível profissional, ingressou na carreira diplomática, onde
permaneceu toda a sua vida. Ao mesmo tempo, nos meios literários, participou em
tertúlias e colaborou em algumas revistas, e, por fim, publicou algumas peças
de teatro… e a referida novela breve Helena O El Mar Del Verano. Já postumamente, e devido ao trabalho
dedicado de um especialista, António Pau, foram publicados mais alguns contos e
poemas. Por último, e um pouco para perceber o seu perfil literário,
saliente-se que o próprio Julián Ayesta reconheceu a importância estética que
dava à obra poética de Vicente Aleixandre (1898-1984), Prémio Nobel da
Literatura de 1977 e figura proeminente da chamada “Geração de 27” .
Se virmos bem, nesta resenha biográfica estão
todos os ingredientes típicos de uma vida exemplar de caballero, bem integrado – ou, pelo menos, acomodado - na sociedade
franquista. Ora, é sabido que os historiadores da literatura espanhola do séc.
XX sempre desvalorizaram as personalidades e os movimentos literários que não
se demarcaram com nitidez, em termos éticos e políticos, do regime de Franco…
Talvez esteja aqui um dos motivos por que estes historiadores, durante algumas
décadas, passaram ao largo da criação literária de Julián Ayesta.
Helena O El Mar Del Verano foi publicada em 1952, tem sido reeditada com
regularidade, em particular na última década, e já foi traduzida para várias
línguas europeias. A que se deve a “boa fortuna” desta novela que, pelos vistos
e achados, foi uma produção solitária de Julián Ayesta?
Creio, sem sofisma, que o forte poder de sedução desta
narrativa resulta, em primeiro lugar, do seu programa narrativo, todo ele
enunciado no título: a praia, o Verão e a descoberta das primeiras emoções
eróticas e afectivas. Neste sentido, Helena O El Mar Del Verano traz-nos
à lembrança algumas obras com uma ambiência similar, principalmente das
literaturas do mundo mediterrânico e… escandinavo, e, muito em particular,
certos autores italianos – recordo-me de algumas obras de Cesare Pavese
(1908-1950) ou de um autor um pouco esquecido, mas cuja leitura muito me empolgou
quando o li há já alguns anos, Pier Antonio Quarantotti Gambini (1910-1965).
Esta curta novela é estruturada num tríptico (“En
Verano”, “En Inverno”, “En Verano Outra Vez”), sendo a primeira e última parte
subdivididas, por sua vez, em três. Saliento este aspecto, porque se percebe
que esta estrutura revela que existem dois painéis estivais, luminosos,
associados ao prazer e à descoberta, enquadrando um central, sombrio e
auto-punitivo, relacionado com o lado fantasmagórico e o fortíssimo “sentimento
de pecado” do narrador.
Convém agora referir que Helena O El Mar Del Verano tem, como narrador, um jovem no
início da sua adolescência e que, portanto, toda a obra se estrutura nesta
perspectiva, incluindo, obviamente, as técnicas narrativas utilizadas.
De facto, uma das principais características
estilísticas desta obra é a sua dimensão sensorial, em particular na sua
componente visual (os adjectivos ligados à luz e à cor são uma constante levada
à exaustão), associada a uma enorme coloquialidade e a um uso mais que
sistemático das copulativas. Há, por isso, em toda a obra, uma espécie de
facilitismo sintáxico, claramente intencional, que nos faz recordar a escrita
dos jovens na primeira adolescência. Mas, e é também importante salientar este
aspecto, é nesta aparente singeleza estilística que está um outro dos
principais elementos sedutores de Helena O El Mar Del Verano.
Como vimos, a própria estrutura da obra parece realçar
que o tema central da narrativa não é tanto aquilo que está programado no
título, mas o tal “sentimento de pecado” que, de forma quase obsessiva, é
analisado no painel central. Ao enquadrar esta temática com as descrições dos
momentos de júbilo e descoberta da felicidade dos painéis laterais, o autor parece
dar a entender que estes momentos têm sempre um substrato sombrio, como se o
desejo – que impele para esses momentos de júbilo – obrigatoriamente levasse a uma
consumação carnal que, ao acicatar a luxúria, conspurca, degrada e humilha. De
facto, é como se esse impulso “desaguasse” num rito vexatório (numa nova
crucificação) de Jesus, gerador de uma culpabilização que só volta a diluir-se
com o renascer do desejo. No fundo, este painel central, ao mostrar a profunda
imbricação (que, na sensibilidade do narrador, atinge por vezes o registo da
alucinação) entre sentimento de culpa e de pecado com o sentido da fé e da
punição cristã, evidencia como ela tem um papel nevrálgico para a estrutura
emocional e sentimental do homem espanhol no período franquista.
Por conseguinte, o que o narrador descobre na
praia e nos campos que rodeiam a casa estival de família – nos momentos em que
vai “reconhecendo” o corpo, por vezes arredio, de Helena – é que a felicidade
está sempre conectada com o sentimento de culpa e que esta conexão é – e será
sempre – uma manifestação do “pecado original”: é essa a razão profunda porque
os momentos amorosos lhe aparecem sempre cobertos de um manto de fluorescente
tristeza. Na mente do narrador, esta descoberta torna-se a “chave” iniciática que
permite entrar na câmara da idade adulta, levando-o a sentir uma cumplicidade surda,
implícita, com a comunidade varonil da família (bem representada no trecho em
que o narrador procura, com um enorme entusiasmo, entrosar-se no ritual dos
serões de conversa, café e cigarros, após os jantares).
Em conclusão, creio que é mais correcto considerar,
mesmo reconhecendo a existência de diversos elementos sedutores e envolventes
em Helena
O El Mar Del Verano (por exemplo, o ritmo frásico encantatório,
resultante da sua estrutura repetitiva), que esta novela é apenas uma interessante
“preciosidade literária”, bem invulgar, pela sua “leveza” narrativa, numa época
que se distinguiu por obras romanescas tensas e crispadas tanto em termos
literários como políticos.
Publicado na web em 2009.
Título: Helena
O El Mar Del Verano
Autor: Julián
Ayesta
Editor: Acantilado
Ano: 2002
87 págs., € 10,00
Sem comentários:
Enviar um comentário