UMA “CRIATURA” DO FRANKENSTEIN
SOCIAL
Uma
constante incómoda na ficção de Robert Coover relaciona-se com o sentido que
motiva a sua própria produção. E tal acontece, não tanto porque ele seja complexo
ou de difícil legibilidade, mas porque é de uma linearidade tão óbvia que o
leitor fica com a sensação de que o fizeram cair num logro bem urdido. E esta
sensação é ainda mais reforçada quando se toma conhecimento que o autor é
considerado (com John Barth, Donald Barhelme, Thomas Pynchon e alguns mais) como
um dos escritores norte-americanos mais influentes das décadas de sessenta e
setenta e um dos rostos do chamado “pós-modernismo” americano.
Como
sempre sucede, a leitura da novela O Que Aconteceu a Gloomy Gus? provoca
também esta sensação de logro; mas é a própria obra que alerta o leitor (e de
uma forma muito mais conseguida do que na “short-story” A Criada e o Amo há
alguns meses traduzida e editada) para outros sentidos e objectivos.
Desde
o início que se entende existir um objectivo explícito: tentar caracterizar,
através da análise da uma personagem – o futebolista Glommy Gus, morto pela polícia
numa manifestação de operários grevistas -, os valores e os mitos que “fazem
correr” o homem americano na sua busca de afirmação social.
Para
isso, Robert Coover resolve elaborar, nesta novela, uma ficção “histórica” e
(eventualmente) uma “parábola”. A acção situa-se, no final dos anos trinta, nos
meios comunistas e esquerdistas americanos, quando estes optavam entre
juntar-se às forças republicanas espanholas na sua luta contra Franco ou,
aproveitando-se da situação social provocada pela Grande Depressão, contribuir
para agudizar os conflitos de classe contra o poder capitalista americano (e
saliente-se que a admirável perícia revelada por Robert Coover na construção
deste cenário traz-nos à lembrança o cronista por excelência destes meios e
desta época: John dos Passos).
E a
primeira questão, que a novela levanta, é perceber qual a motivação que levou
Robert Coover a preferir este contexto histórico. Talvez que a explicação se encontre
no facto de este ser o último período, antes da integração daqueles meios
contestatários na administração New Deal e a sua posterior perseguição pelo
maccarthysmo, em que a rebelião (parafraseando o filme de Nicholas Ray) tinha
uma causa unívoca.
Mas, decerto,
a razão principal está na facilidade com que assim se definem os contornos do
narrador. Este é um escultor judeu, obcecado por Máximo Gorki (cuja obra segue
como um breviário e que, curiosamente, aparece aqui irreconhecível), e de quem
vai esculpindo, entre estatuetas de futebolistas, um imenso busto, utilizando,
como material, desperdícios de metal encontrados em fábricas.
É
segundo a perpectiva deste narrador que a personagem de Gloomy Gus nos vai ser
apresentada. Ansiando por sistema ultrapassar-se e, dessa forma, conseguir o
reconhecimento dos outros, Gloomy Gus resolveu abandonar todas as capacidades multifacetadas
em que se revelara particularmente apto para se dedicar, através de uma
disciplina exaustiva, a superar as inépcias que ocasionaram a sua rejeição social:
o futebol e o sexo. A sua formação vai ser assim uma espécie de desconstrução
para, através de uma interiorização metódica de um complexo jogo de comportamentos
reflexos, aparecer reconstruído como uma marionete programada: é desta forma
que Gloomy Gus se torna num futebolista adulado por toda a América e num campeão
sexual inultrapassável. O mal vem quando, depois de atingir os píncaros do
sucesso e da fama, lhe percebem os mecanismos que desencadeiam a sua acção, levando-o
a comportar-se no campo de futebol como se estivesse na alcova, e vice-versa…
É então
só aqui que se percebe qual o “objectivo implícito” de O Que Aconteceu a Gloomy Gus?
e como este tem, no essencial, uma dimensão de “exercício de coerência formal”,
em que a soldagem se torna o elemento de construção narrativa determinante. De
facto, assim como o narrador esculpe, soldando, de forma minuciosa, desperdícios
da produção industrial, também a sua narração é a expressão de uma amálgama de
citações (o desperdício da literatura?) de Máximo Gorki, e a sua pespectiva de
Gloomy Gus é a de uma soldagem de valores e comportamentos estereotipados que são
impostos, em termos sociais, nos Estados Unidos, como paradigmas.
É
óbvio que Robert Coover deixa em aberto a intenção última desta sua novela: será
elaborar uma parábola que evidencie a estrutura caracterial do homem contemporâneo
como a de um simples “puzzle” descaraterizado ou deleitar-nos com um soberbo exercício
narrativo? O leitor que decida.
Publicado no Expresso em 1989.
(Foto do Autor de Stew Milne).
(Foto do Autor de Stew Milne).
Título: O Que Aconteceu A Gloomy Gus?
Autor: Robert Coover
Tradução: Rui Wahnon
Editor: Presença
Ano: 1989
150 págs., esg.
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