terça-feira, 11 de outubro de 2016

LILLIAN HELLMAN

 
 
UM RASTRO DE NÉVOA
 
Há livros que parecem ser escritos de coisa nenhuma. Como se registassem uma mera busca, a procura do fio que a meada das palavras e do tempo pretende esconder. É o caso de Talvez de Lillian Hellman
 
Esta “novela” é autobiográfica. Ou “talvez” seja. Porque, antes do mais, é resultante de um tremendo esforço de memória, numa luta dolorosa contra o envelhecimento, tentando descobrir a efectiva importância de pessoas, do que elas disseram, ou fizeram, e que “talvez” tenha ferido mais do que elas pretendiam ou eram capazes.
 
Mas os amigos morreram, os lugares transformaram-se. E o corpo começa, como um estranho, a viver, incapaz, por doença, de satisfazer o querer e o desejo, perdendo a certeza sobre um passado que só parece um contínuo desperdício de emoções e afectos.
 
Lillian Hellman sempre procurou, na sua produção literária, uma brutal sinceridade consigo própria, num irresolúvel ajuste de contas. E, por isso, Talvez (que título tão eficazmente adequado!) é o registo das próprias dificuldades resultantes do confronto entre a exigência dessa sinceridade e uma memória que já não consegue corresponder-lhe, e que torna difusa a existência de pessoas e de lugares que se sabe, no entanto, muitas vezes com que mágoa, que existiram.
 
Talvez é um livro comovente. Comovente pelo que tem de “exposto”; mas também porque é feito de contenção, de controle emocional. A aplicação de técnicas de concisão verbal e narrativa, oriundas de práticas jornalísticas, à área das estruturas novelescas é, sem sombra de dúvida, um dos maiores contributos estilísticos devidos a ficção americana, principalmente à chamada “geração perdida”. Lillian Hellman revelou sempre um particular domínio destas técnicas, o que faz com que o seu estilo tenha uma dimensão ética que acentua a expressividade dos elementos dramáticos.
 
Mas este livro é também bastante revelador da ambiência vivida no período entre as duas guerras mundiais. Período de descoberta, de afirmação crescente de valores e códigos comportamentais que caracterizaram os anos seguintes deste século. E, assim, vivido com o excesso lúdico que define os períodos de intensa inovação. As personagens que Talvez faz aparecer, numa névoa de álcool e outros estimulantes, vivem numa aparente, mas sedutora, gratuitidade.
 
Lillian Hellman é um daqueles casos, tão característicos da literatura americana, em que percurso pessoal e produção literária estão imbrincados em profundidade, dificultando uma avaliação objectiva da sua obra. Mas sobre o percurso de Lillian Hellman, que viveu uma relação tão dramaticamente exemplar com Dashiell Hammett, remeto os leitores para o apaixonado artigo assinado por Batista-Bastos, e publicado por alturas da morte da escritora, neste mesmo jornal.
 
De facto, Lillian Hellman sempre procurou, tanto na sua escrita, em particular dramática, como na sua vida, afirmar a intensidade e a paixão. Por isso, fez sempre uma defesa obstinada da liberdade de sentir e agir, até ao limite da contradicção e do erro, confrontando os poderes estabelecidos, mas também possíveis aliados e amigos, numa obsessiva necessidade de manifestar a sua independência. Ora, é isto que, na sinuosidade da memória e da escrita, Talvez procura registar.
 
Quero salientar, por fim, que esta edição, pela tradução muito conseguida de Carlos Leite, mas, em particular, pela capa de João Botelho, um notabilíssimo trabalho visual, transmite, a qualquer pessoa apaixonada por livros, um grande prazer pela sua posse. Pena é que, a ensombrá-la, tenha havido uma revisão gráfica tão pouco cuidada…
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
 
Título: Talvez
 Autor: Lillian Hellman
 Tradutor: Carlos Leite
 Editor: Relógio d’Água
Ano: 1984
71 págs., € 4,54
 
 



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