UM RASTRO DE NÉVOA
Há
livros que parecem ser escritos de coisa nenhuma. Como se registassem uma mera
busca, a procura do fio que a meada das palavras e do tempo pretende esconder.
É o caso de Talvez de Lillian Hellman
Esta
“novela” é autobiográfica. Ou “talvez” seja. Porque, antes do mais, é
resultante de um tremendo esforço de memória, numa luta dolorosa contra o envelhecimento,
tentando descobrir a efectiva importância de pessoas, do que elas disseram, ou
fizeram, e que “talvez” tenha ferido mais do que elas pretendiam ou eram
capazes.
Mas os
amigos morreram, os lugares transformaram-se. E o corpo começa, como um
estranho, a viver, incapaz, por doença, de satisfazer o querer e o desejo,
perdendo a certeza sobre um passado que só parece um contínuo desperdício de
emoções e afectos.
Lillian
Hellman sempre procurou, na sua produção literária, uma brutal sinceridade
consigo própria, num irresolúvel ajuste de contas. E, por isso, Talvez
(que título tão eficazmente adequado!) é o registo das próprias dificuldades
resultantes do confronto entre a exigência dessa sinceridade e uma memória que já
não consegue corresponder-lhe, e que torna difusa a existência de pessoas e de
lugares que se sabe, no entanto, muitas vezes com que mágoa, que existiram.
Talvez é um
livro comovente. Comovente pelo que tem de “exposto”; mas também porque é feito
de contenção, de controle emocional. A aplicação de técnicas de concisão verbal
e narrativa, oriundas de práticas jornalísticas, à área das estruturas novelescas
é, sem sombra de dúvida, um dos maiores contributos estilísticos devidos a ficção
americana, principalmente à chamada “geração perdida”. Lillian Hellman revelou
sempre um particular domínio destas técnicas, o que faz com que o seu estilo
tenha uma dimensão ética que acentua a expressividade dos elementos dramáticos.
Mas
este livro é também bastante revelador da ambiência vivida no período entre as
duas guerras mundiais. Período de descoberta, de afirmação crescente de valores
e códigos comportamentais que caracterizaram os anos seguintes deste século. E,
assim, vivido com o excesso lúdico que define os períodos de intensa inovação.
As personagens que Talvez faz aparecer, numa névoa de álcool e outros
estimulantes, vivem numa aparente, mas sedutora, gratuitidade.
Lillian
Hellman é um daqueles casos, tão característicos da literatura americana, em
que percurso pessoal e produção literária estão imbrincados em profundidade,
dificultando uma avaliação objectiva da sua obra. Mas sobre o percurso de
Lillian Hellman, que viveu uma relação tão dramaticamente exemplar com Dashiell
Hammett, remeto os leitores para o apaixonado artigo assinado por Batista-Bastos,
e publicado por alturas da morte da escritora, neste mesmo jornal.
De
facto, Lillian Hellman sempre procurou, tanto na sua escrita, em particular
dramática, como na sua vida, afirmar a intensidade e a paixão. Por isso, fez
sempre uma defesa obstinada da liberdade de sentir e agir, até ao limite da
contradicção e do erro, confrontando os poderes estabelecidos, mas também
possíveis aliados e amigos, numa obsessiva necessidade de manifestar a sua
independência. Ora, é isto que, na sinuosidade da memória e da escrita, Talvez
procura registar.
Quero
salientar, por fim, que esta edição, pela tradução muito conseguida de Carlos
Leite, mas, em particular, pela capa de João Botelho, um notabilíssimo trabalho
visual, transmite, a qualquer pessoa apaixonada por livros, um grande prazer
pela sua posse. Pena é que, a ensombrá-la, tenha havido uma revisão gráfica tão
pouco cuidada…
Publicado no Expresso em 1984.
Título: Talvez
Autor: Lillian
Hellman
Tradutor: Carlos
Leite
Editor: Relógio
d’Água
Ano: 1984
71 págs., € 4,54
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