A BÁRBARA REJEIÇÃO
Quando,
como nos dias de hoje, se observa uma valorização, quase indiscriminada, de
toda a produção literária que, em exclusivo, se centra na tónica do romanesco,
sem se considerar que esta sempre dominou a literatura do consumismo e do mero
entretenimento, tem um prazer redobrado na leitura, a contra-corrente, deste último
romance traduzido de J. M. Coetzee.
Não
porque a parábola de À Espera dos Bárbaros não tenha uma
elevada dimensão de romanesco; mas porque, associando uma notável capacidade de
aludir e impressionar o leitor pelas ambiências criadas a uma sobriedade estilística
bem próxima de um certo Faulkner (o de O Santuário, por exemplo), consegue
compreender de um modo radical, e através de uma espécie de retorno aos “universais”,
certas relações, bem identificáveis e socialmente preocupantes, como a violência,
a ordem social assente na prepotência, os estatutos e a estreita ligação do carrasco
e da vítima, etc. Tudo isto, esquivando-se a um registo simplista e a um
realismo maniqueísta que, por todas as razões, a vivência social deste autor
sul-africano poderia solicitar, e atingindo, por uma inovadora recriação do
real, uma mais exigente denúncia dos regimes baseados numa brutal descriminação.
O
quadro narrativo de À Espera dos Bárbaros permite ao autor debruçar-se sobre o
comportamento de solidariedade (que é habitual considerar como inerente às “sensibilidades”
de esquerda) de um vulgar e pouco ambicioso magistrado de uma pequena cidade de
fronteira que, perto do final da sua vida, se sente impelido a “proteger” os “bárbaros”,
povo indígena e nómada, das torturas e brutalidades que, os seus “naturais”
aliados, os defensores do Império, vão realizando com o intuito de descobrir uma
fantasmática invasão. É desse modo, cegamente, tal como acontece na África do
Sul com o regime de “apartheid”, que os defensores do Império vão transformando
uma ficção justificativa da sua existência numa realidade auto-destrutiva.
No
entanto, esse comportamento do magistrado é entendido, por parte das vítimas,
com perplexidade ou como uma forma perversa de prolongar as torturas do coronel
Joll, o chefe dos defensores do Império, e, por conseguinte, encarando-o como
sendo a outra face de uma moeda de opróbrio. Além disso, todas as suas
tentativas de deserção para o “campo” dos “bárbaros” vão revelar-se sem
sentido: ninguém esperará o magistrado nas suas tentativas de fuga, nem ele próprio
entende o sentido histórico daquele povo. Nunca as deserções poderão ser
existenciais, mas apenas éticas, e, portanto, o que o espera, é um aglomerado
indecifrável de sinais produzidos pelo outro povo, um inexplicável amontoado de
vestígios arqueológicos no meio do deserto.
Essa
aproximação à vítima, por parte do magistrado, revela-se também como uma forma
desviada de um outro querer, resultante da curiosidade intelectual ou até mesmo
do desejo, mas que, ao assumir uma rota “humanitária”, o torna impotente
(algumas das páginas mais brilhantes deste romance são as que escrevem as emoções
e os sentimentos do magistrado por uma jovem vítima de tortura, com quem
estabelece uma relação muito ambígua, feita de uma vontade mórbida de perceber
e interiorizar o sofrimento do outro, de purificá-lo pela ternura e por um desejo
inconclusivo).
Por
fim, toda a sua “humanitária” solidariedade lhe aparece na sua asserção
radical: esse comportamento é uma opção entre formas diversas de morte. De
facto, o magistrado não entende como não se morre de náusea por excesso de cumplicidade
com a tortura (é essa a pergunta obsessiva que ele faz aos torturadores, não
por mera ofensa, mas porque realmente não percebe): é por ignorância que ele é
impelido a morrer na indignidade, a que o reduz a tortura e a repressão, quando
obriga a sua energia orgânica a transformar-se na animalidade da busca da pura sobrevivência.
Torna-se,
então, clara a acusação final de À Espera dos Bárbaros: todas as formas
sociais, que subsistem sobre a mais opaca incompreensão do outro, provocam um
pestífero alastrar da violência e da tortura a que ninguém consegue escapar.
Publicado
no Expresso em 1986.
Título:
À Espera dos Bárbaros
Autor:
J. M. Coetzee
Tradutor:
José Agostinho Baptista
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano: 1986
136 págs., € 11,61
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