A VIDA É UM SONHO
Quando o Dicionário
Khazar começou a destacar-se nas feiras internacionais de edição e nos
“tops” de vendas (note-se que o sucesso deste livro no Ocidente foi, em grande
parte, resultado de uma acertada aposta promocional da editora francesa Belfond
que comprou os seus direitos mundiais), tornou-se evidente que existia no
grande público, pelo menos desde o assombroso êxito de O Nome da Rosa, um novo e
distinto conjunto de motivações na leitura e aquisição de romances: as editoras
confirmavam que o leitor se fascinava por contextos históricos distantes (daí o
grande empenho, notório fora do nosso país, em publicar “romances históricos”)
e, por isso mesmo, exóticos (cada vez mais é pela dimensão temporal - e não
espacial - que o leitor-viajante encontra os cenários exóticos), se deleitava com
o eruditismo que legitima e torna verosímeis aqueles contextos e se apaixonava
pelas questões obscuras da Historia e da Cultura.
Mas à
partida, mesmo assim, parecia pouco previsível que o Dicionário Khazar pudesse
percorrer um destino muito rentável: o seu autor pertencia a uma literatura
periférica, que, até em círculos especializados, era pouco conhecido (Milorad
Pavic é um escritor servo-croata, apenas referenciado na Jugoslávia como
especialista em Barroco e por ter publicado alguma ficção), e a forma de romance-enciclopédia
parecia não se adequar aos enraizados hábitos de leitura linear. Talvez por
isso se tenha tentado promover este livro a sombra do percurso de O Nome
da Rosa - o que provocou em certos meios, como é natural, uma razoável
irritação.
No entanto
- e este é já um expressivo elogio aos méritos desta obra -, não há dúvida que
o Dicionário
Khazar tem suficientes qualidades para desarmar preconceituadas
irritabilidades de quem se disponha a lê-lo: encontra-se nele uma formulação inovadora
dos confrontos culturais que atravessaram o Centro e o Leste europeu, um
lirismo que atinge inúmeras vezes dimensões encantatórias, uma proliferação de
referências literárias e estilísticas bem demarcadas e estimulantemente
encadeadas e, por fim, uma coerência e lógica internas que não só atravessam com
rigor todo o tecido narrativo como fazem deste romance um objecto de facto singular.
Sobre este
último aspecto, parece-nos de uma evidência fundamental que o centro e alibi
narrativo deste romance-enciclopédia é um “vazio”. O que hoje se conhece do povo
khazar - povo de origem turca que constituiu um império entre os séculos VII e
X nas proximidades do Mar Cáspio - são as suas estratégias de resistência aos
imperialismos culturais e políticos dos povos vizinhos, onde é costume realçar
a sua famigerada conversão ao judaísmo. Quanto a sua especificidade cultural ou
civilizacional, pouco ou nada se sabe, tanto mais que a informação existente
sobre este povo veio de fontes documentais de origem judaica, islâmica,
bizantina e chinesa.
É natural,
por isso, que aquilo que se evidencia da ‘leitura” deste “vazio” seja a própria
“leitura”. E a “imagem” que ela produz, em consequência de ter os referentes
reais atenuados, assume a dimensão de um “sonho”. O povo khazar é, assim, uma
entidade a haver, figura compósita de todas as “leituras” existentes e a
existir, um “sonho” entrecruzado de todos os homens que procuram, ao longo da História,
entender(-se).
Percebe-se,
por conseguinte, por que é que, no quadro leitura/escrita, se sobrevaloriza expressamente
no Dicionário
Khazar o elemento leitura. Este facto é ainda mais saliente quando se
tem em consideração que a palavra é entendida neste romance como uma forma de
linguagem “impura”: a palavra tem componentes (fonéticos, morfológicos) de
origem divina e de origem humana (e até mesmo satânica), devendo a leitura
reter os primeiros e dispersar os outros num vento sem memória nem tempo. A
leitura deverá ser a afirmação liberta do pensamento do leitor em relação ao
pensamento escrito: Milorad Pavic, ao elaborar um dicionário, ao dividi-lo em
três cadernos (a perspectiva cristã, islâmica e judaica da conversão do povo
khazar e dos “rastos” que este, ao longo dos tempos, foi deixando), ao dar-lhe
uma versão feminina e outra masculina (que, diga-se de passagem, só tem uma
variante de pouco mais do que uma dezena de linhas numa das entradas), pretende
apenas dispor a matéria narrativa de maneira a que os impulsos e a curiosidade
do leitor possam ordená-la, de um modo livre, construindo assim uma “leitura” pessoal.
Por outro
lado, o Dicionário Khazar, edição de Milorad Pavic, é a recriação de outra
obra, o Lexicon Cosri, a enciclopédia mortífera e desaparecida do séc.
XVII, que, por sua vez, é a tentativa de reinvenção do inexistente livro sagrado
da seita dos “caçadores de sonhos” do povo khazar. Mais uma vez, escrever não
passa do registo da “leitura” de um “vazio”. Ou, por outras palavras, do
registo de um “sonho”. Porque “sonhar” é o elemento mais comum e atemporal
entre todos os homens: não é por acaso que, no Dicionário Khazar, a vida
de cada homem é o sonho de um outro (por isso é que, ao lado de entradas de personagens
e factos históricos, descritos de forma mais ou menos documentai, aparecem
figuras e situações “sonhadas” e, por conseguinte, tratadas, em termos estilísticos,
de forma marcadamente onírica). Além disso, em cada sonho há uma parcela ínfima
que a leitura deve reter, podendo, desde que combinada com outras de sonhos de
outros homens, contribuir para a construção de um novo Adão, aquele que está
deitado na continuidade dos tempos.
Está assim
explicitado, de forma simbólica, o objectivo do Dicionário Khazar: partir
de um “vazio” que só existe na leitura que dele se faz (o desaparecido povo
khazar) para construir uma “ausência” que só poderá existir no acto de leitura
(o futuro Adão). Entre um e o outro, o Dicionário Khazar aparece-nos como
um corpo verbal: é através dele que o leitor se vê obrigado a navegar em águas
transfiguradas (de repente, dar-se-á consigo num mar vertical), a encontrar-se
com seres satânicos sem septo nasal e com princesas que vão reencarnando no
ciclo dos tempos, a arriscar-se por faunas e floras tão estranhas como a dos
sonhos mais delirantes que o leitor já esqueceu.
Contudo, recorde-se
que deve seguir os conselhos de Milorad Pavic, quando acabar de ler este romance-enciclopédia:
na primeira quarta-feira do mês seguinte ao de finalizar a sua leitura, sente-se
com o seu exemplar num café do Rossio (ou da praça principal da sua povoação),
espere que venha outro leitor ou leitora, compare as respectivas versões,
repreendam o lexicógrafo pelo tempo que os obrigou a perder, e apressem-se a
fazer o que deve ser feito e que só aos leitores diz respeito.
Publicado no Público em 1990.
Título: Dicionário Khazar
Autor: Milorad Pavic
Tradução (do francês): Herbert Daniel
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
262 págs., esg.
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