sábado, 19 de agosto de 2017

VINCENZO CONSOLO

 
 
 
SICÍLIA, A AMADA MISERÁVEL
 
Nomes como os de Verga, Pirandello, Borgese, Lampedusa, Brancati, Vittorini, Sciascia e Bufalino deram à Sicília (e, a estes, podia juntar-se uma lista de idêntica importância de autores que, não sendo sicilianos, escreveram sobre esta região) um estatuto literário não só incomparável dentro da Itália, como difícil de encontrar em qualquer outra zona europeia. A invulgar encruzilhada histórico-cultural que distingue o destino desta ilha mediterrânica, sofrendo invasões sobre invasões, ocupação sobre ocupação, e as peculiaridades do seu meio social motivaram os escritores sicilianos para uma melancólica, mas original, reflexão sobre os meandros históricos e o modo como a estrutura mítica enforma a mentalidade popular. Lampedusa, nesse inesquecível romance que é O Leopardo, caracterizou lapidarmente, pela boca do Príncipe de Salina, o percurso deste povo que, marcado pela resignação e pela miséria, nunca obteve outra condição que não fosse a de ser o “sal da terra”: “Muda-se sempre tudo para que nada mude”.
 
Vincenzo Consolo, de quem foi agora editado o romance Retábulo, é um prestigiado escritor siciliano que, desde a década de sessenta, tem publicado uma obra de ficção (onde se salienta La ferita dell’aprile e Il sorriso dell’ignoto marinaio) que pretende metaforizar a idiossincrasia siciliana numa Itália que conseguiu impor os seus interesses económicos e tenta dominar, através dos centros setentrionais de difusão cultural, esta região periférica.
 
Retábulo, situado no séc. XVIII e composto por três textos com narradores distintos, é uma história de amores funestos e contrariados: a paixão de um frade siciliano, Isidoro, por Rosália, uma bela jovem de origem humilde, e a de um aristocrata milanês, pintor e amante de obras de arte clássicas, por uma nobre descendente de pai espanhol e mãe siciliana. É o caracter “funesto e contrariado” destes amores que origina aquilo que vai constituir o centro e a parte mais substancial do romance: a descrição de uma viagem, espácio-temporal, pela Sicília, feita pelo aristocrata e pelo frade que, depois de fugir do convento por furto, aquele contrata como carregador.
 
Esta viagem realiza-se por motivações opostas, mas que, no essencial, se revelam como as duas faces da mesma moeda: enquanto o nobre milanês a efectua para apaziguar a sua paixão frustrada, o ex-frade viaja com o fim de obter meios materiais que lhe permitam perenizar o seu amor. De qualquer modo, a viagem é, para as duas personagens, uma via iniciática (sublimatória para um, prenunciatória para outro) de abordar o fugidio objecto amado.
 
Percebe-se, assim, que o “diário” do aristocrata, a parte central do “retábulo”, ao descrever em minucia as terras, monumentos e gentes da Sicília está, por motivos pulsionais, a descrever o corpo da(s) amada(s) dos viajantes — identificação tanto mais notória quanto o nome da amada de Isidoro, Rosália, é o da santa padroeira que as duas personagens encontram por todos os cantos da Sicília.
 
É esta identificação entre o objecto amado e a Sicília que, de imediato, confere às duas personagens e aos seus amores impossíveis um valor simbólico complementar. No fundo, o carácter “fugidio e inalcançável” ou “funesto” desses amores representa a impossibilidade de qualquer relacionamento “amoroso” com a própria Sicília: terá de ser necessariamente “fugidia” para a Itália, aqui personalizada pelo milanês, dado que, como ele, esta pretenderá sempre uma “posse” espoliante (e que o episódio da estátua clássica, que o aristocrata procura trazer da Sicília para o continente, mas que a tempestade derruba do barco e afunda no mar, sintetiza em termos metafóricos) e “funesta” para os próprios sicilianos, porque a sua “verdade” é a da miséria que obriga os seus amantes a roubar, como sucedeu a Isidoro, e, a ela, a aceitar uma casta “mancebia” (não é por acaso que a “fala” onde Rosália explica os motivos por que fugiu ao frade se intitula “Veritas”, assim como é este o nome da escultura alegórica para que serviu de modelo). Em substância, da castração dessas paixões, fica apenas o encantamento dos “resíduos artísticos”: a escrita e a pintura para o milanês, o canto para Rosália.
 
Não se pode, porém, dizer que as ideias-base deste romance de Vincenzo Consolo ultrapassem uma já convencionada norma literária. É certo que o autor recriou com rigor a sintaxe e a semântica peculiares da época e sintonizou habilmente os registos de escrita com os níveis distintos de formação cultural de cada narrador (e saliente-se que tanto uns comos os outros foram admiravelmente transcritos para português, numa tradução que deve ter sido bem difícil e trabalhosa). Mas a falta daquele fulgor, que deveria irradiar destas tão propaladas paixões pela Sicília, faz com que este texto se revele como um exercício artificioso que não consegue empolgar o leitor.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
 
Título: Retábulo
Autor: Vincenzo Consolo
Tradução: José Colaço Barreiros
Editor: Difel
Ano: 1990
146 págs., € 8,72
 
 
 
 
 
 



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