SICÍLIA, A AMADA MISERÁVEL
Nomes como
os de Verga, Pirandello, Borgese, Lampedusa, Brancati, Vittorini, Sciascia e
Bufalino deram à Sicília (e, a estes, podia juntar-se uma lista de idêntica
importância de autores que, não sendo sicilianos, escreveram sobre esta região)
um estatuto literário não só incomparável dentro da Itália, como difícil de
encontrar em qualquer outra zona europeia. A invulgar encruzilhada histórico-cultural
que distingue o destino desta ilha mediterrânica, sofrendo invasões sobre invasões,
ocupação sobre ocupação, e as peculiaridades do seu meio social motivaram os
escritores sicilianos para uma melancólica, mas original, reflexão sobre os
meandros históricos e o modo como a estrutura mítica enforma a mentalidade popular.
Lampedusa, nesse inesquecível romance que é O Leopardo, caracterizou
lapidarmente, pela boca do Príncipe de Salina, o percurso deste povo que, marcado
pela resignação e pela miséria, nunca obteve outra condição que não fosse a de
ser o “sal da terra”: “Muda-se sempre
tudo para que nada mude”.
Vincenzo
Consolo, de quem foi agora editado o romance Retábulo, é um
prestigiado escritor siciliano que, desde a década de sessenta, tem publicado uma
obra de ficção (onde se salienta La ferita dell’aprile e Il sorriso
dell’ignoto marinaio) que pretende metaforizar a idiossincrasia
siciliana numa Itália que conseguiu impor os seus interesses económicos e tenta
dominar, através dos centros setentrionais de difusão cultural, esta região
periférica.
Retábulo, situado
no séc. XVIII e composto por três textos com narradores distintos, é uma história
de amores funestos e contrariados: a paixão de um frade siciliano, Isidoro, por
Rosália, uma bela jovem de origem humilde, e a de um aristocrata milanês, pintor
e amante de obras de arte clássicas, por uma nobre descendente de pai espanhol
e mãe siciliana. É o caracter “funesto e contrariado” destes amores que origina
aquilo que vai constituir o centro e a parte mais substancial do romance: a
descrição de uma viagem, espácio-temporal, pela Sicília, feita pelo aristocrata
e pelo frade que, depois de fugir do convento por furto, aquele contrata como
carregador.
Esta
viagem realiza-se por motivações opostas, mas que, no essencial, se revelam como
as duas faces da mesma moeda: enquanto o nobre milanês a efectua para apaziguar
a sua paixão frustrada, o ex-frade viaja com o fim de obter meios materiais que
lhe permitam perenizar o seu amor. De qualquer modo, a viagem é, para as duas personagens,
uma via iniciática (sublimatória para um, prenunciatória para outro) de abordar
o fugidio objecto amado.
Percebe-se,
assim, que o “diário” do aristocrata, a parte central do “retábulo”, ao
descrever em minucia as terras, monumentos e gentes da Sicília está, por
motivos pulsionais, a descrever o corpo da(s) amada(s) dos viajantes —
identificação tanto mais notória quanto o nome da amada de Isidoro, Rosália, é
o da santa padroeira que as duas personagens encontram por todos os cantos da
Sicília.
É esta
identificação entre o objecto amado e a Sicília que, de imediato, confere às
duas personagens e aos seus amores impossíveis um valor simbólico complementar.
No fundo, o carácter “fugidio e inalcançável” ou “funesto” desses amores
representa a impossibilidade de qualquer relacionamento “amoroso” com a própria
Sicília: terá de ser necessariamente “fugidia” para a Itália, aqui
personalizada pelo milanês, dado que, como ele, esta pretenderá sempre uma “posse”
espoliante (e que o episódio da estátua clássica, que o aristocrata procura
trazer da Sicília para o continente, mas que a tempestade derruba do barco e
afunda no mar, sintetiza em termos metafóricos) e “funesta” para os próprios
sicilianos, porque a sua “verdade” é a da miséria que obriga os seus amantes a roubar,
como sucedeu a Isidoro, e, a ela, a aceitar uma casta “mancebia” (não é por
acaso que a “fala” onde Rosália explica os motivos por que fugiu ao frade se
intitula “Veritas”, assim como é este o nome da escultura alegórica para que serviu
de modelo). Em substância, da castração dessas paixões, fica apenas o
encantamento dos “resíduos artísticos”: a escrita e a pintura para o milanês, o
canto para Rosália.
Não se
pode, porém, dizer que as ideias-base deste romance de Vincenzo Consolo
ultrapassem uma já convencionada norma literária. É certo que o autor recriou
com rigor a sintaxe e a semântica peculiares da época e sintonizou habilmente os
registos de escrita com os níveis distintos de formação cultural de cada
narrador (e saliente-se que tanto uns comos os outros foram admiravelmente
transcritos para português, numa tradução que deve ter sido bem difícil e trabalhosa).
Mas a falta daquele fulgor, que deveria irradiar destas tão propaladas paixões
pela Sicília, faz com que este texto se revele como um exercício artificioso
que não consegue empolgar o leitor.
Publicado no Público em 1990.
Título: Retábulo
Autor: Vincenzo Consolo
Tradução: José Colaço Barreiros
Editor: Difel
Ano: 1990
146 págs., € 8,72
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