VÍTIMA DA REALIDADE
Entre
os anos trinta e cinquenta, a Argentina passou por um conjunto de transformações
económicas e sociais que lhe configurou uma realidade a que só a distância
poderá dar a ilusão de ser similar à do restante continente sul-americano: uma
enorme concentração urbana, resultante de uma acelerada industrialização,
colocou, em efervescente confronto, uma classe media próspera (“filha” da intensa
imigração, de origem espanhola e italiana, que acorreu, no início do século, a
este pais, como se fosse a Terra Prometida) e uma massa operária de origem mestiça,
desenraizada culturalmente, sem grande consciência política, mas galvanizada
por partilhar o bem-estar social que aquela classe média adquirira. O peronismo
e o pós-peronismo, as ditaduras militares e as democracias restritas são não só
sequelas desse confronto, como vão contribuir, pela arbitrariedade política com
que o pretendem “camuflar”, para agravar esta situação social.
Porém,
esta complexa realidade socio-política tem-se revelado “imperativa” para uma
excepcional produção artística e literária - a que não deve ser estranho também
o elevado índice, no contexto hispano-americano, de alfabetização da população
- e que transformou Buenos Aires na verdadeira capital cultural da América do
Sul. Se considerarmos a obra de autores como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy
Casares, Ernesto Sábato ou Júlio Cortazar, pode-se mesmo afirmar que essa
realidade, mais do que “imperativa”, se tornou “alucinante”, tal a importância
que tem, na complexidade e diversidade destas obras, o elemento fantástico.
Em boa
justiça, deve ter-se presente este quadro social para se melhor compreender a
novela, agora traduzida, Quartéis de Inverno, de Osvaldo Soriano.
Este autor, pertencente à geração posterior à do “boom”, tem produzido uma obra
que se tem situado em registos que, a seu modo, estão nos antípodas das dos
autores consagrados já referidos. De facto, desde as suas características estilísticas
à recorrência de uma certa “mitologia’, a etiqueta mais adequada a esta produção
narrativa é a de “cinematográfica”. A secura frásica, o ritmo da acção e a
linearidade narrativa fazem não só lembrar a escrita de “guião” fílmico, como
tornam evidente que não andam muito longe dela dois grandes “patronos”: Ernest
Hemingway e Raymond Chandler.
Quartéis
de Inverno narra a deslocação a uma pequena povoação de
província, sede de um aquartelamento, de um cantor de tangos e de um “boxeur”
que, por razões “alimentares”, vão ‘abrilhantar” as festas anuais lá do sítio.
Mas, desde o início, o que se evidencia é a sangrenta presença das forças
militares que tudo controlam, remetendo a população para uma clandestinidade de
fantasmas que, pela sombra, vão dando, aqui e ali, sinais do seu mal-estar face
à indiscriminada brutalidade das armas. Contudo, esse surdo mal-estar basta
para empurrar as “vedetas” para o estatuto de “malditos”, ao ponto de se tornar
nítido que elas servem de simples pretexto para fazer distinguir a opressiva
superioridade do exército.
É
evidente que este cenário concentracionário pretende representar, através de uma
situação concreta, o contexto político da Argentina durante a década de setenta
e assinalar como a instituição militar, desde que não seja contida no quadro legítimo
da defesa social, se pode tomar instrumento arbitrário de obscuros interesses
particulares, chegando à situação gratuita de brutalizar a sociedade pelo gosto
mórbido de ver estampar-se o medo no rosto daqueles que podem dominar pela
tortura e pela violência.
O
interesse maior de Quartéis de Inverno está efectivamente na forma como utiliza a
ambiência do chamado “romance negro” para fins de denúncia politica. É certo
que a novela prende o leitor por uma bem “oleada” técnica narrativa, ainda por
cima servida por uma cuidada tradução: mas o excesso de maniqueísmo de que
Osvaldo Soriano não quer nem pretende fugir, transformam-na numa obra que nada
acrescenta para a compreensão de uma realidade que, no fundo, faz também dela
sua “vítima”.
Publicado no Público em 1994.
Título: Quartéis de Inverno
Autor: Osvaldo Soriano
Tradução: António José Massano
Editor: Asa
Ano: 1994
159 págs.., esg.