domingo, 14 de janeiro de 2018

LOUISE ERDRICH

 
 
 

 
SEM RESERVAS
 
Quando Filtro de Amor apareceu em 1984, certos críticos perceberam que, com este romance, qualquer coisa se “deslocava” nas letras americanas. E, no entanto, quase todos concordavam que nada havia nele de radicalmente inovador.
 
Pelo contrário, Filtro de Amor, de uma jovem escritora de trinta anos, retomava a seu modo uma das mais genuínas tradições literárias americanas. Nas suas páginas, renascia aquele realismo existencial, de forte carga simbólica, que, vindo de Herman Melville e Sherwood Anderson, tinha sido de forma exaustiva cultivado pela literatura sulista: Eudora Welty, Flannery O’Connor, Carson MacCullers e, obviamente, por essa ave de rapina que continua a pairar e ensombrecer o acidentado chão da literatura contemporânea — William Faulkner... só que vinha de uma escritora do Dakota do Norte e, ainda por cima, meio-índia Chippewa: Louise Erdrich.
 
Mas se o aparecimento de Filtro de Amor parecia vir dissolver as unidades que compõem o universo literário norte-americano (era de facto sintomático que uma escritora do Norte - e índia - produzisse uma obra que dava uma importância crucial à territorialidade e ao clã, a um exaustivo tratamento psicológico das personagens e reforçasse a dimensão simbólica das situações dramáticas), por outro lado, este romance instituía, pela sua qualidade artística, uma literatura índia moderna, peça que faltava no complexo “puzzle” que é a produção literária dos Estados Unidos.
 
A crítica americana, além disso, expressava a opinião de que os melhores termos para caracterizar Filtro de Amor eram palavras inteiramente fora de moda como militância, identificação, exemplaridade.
 
De facto, é notório que Filtro de Amor está empenhado, sem ambiguidades, em explicitar o mal-estar sociocultural de um povo que, tendo dominado todo um continente, hoje se encontra confinado a reservas, reduzido a duas centenas e meia de milhar e é utilizado ridiculamente para propaganda turística e humilhantes “westerns”. Na verdade, não há aqui nenhum folclore de pacotilha: as personagens, que por estas páginas aparecem, vivem uma fruste marginalidade, lutando pelas mais elementares condições de subsistência, desenraízados dos seus hábitos económicos e culturais. Aqueles que tentam manter as ancestrais tradições de caça e de pesca (como o velho Eli), são encarados, pelos da sua raça, como figuras selvagens e estranhas; porém, ao mesmo tempo, todas estas personagens se sentem como descendentes dos antigos senhores das grandes planícies, e, por isso, regaem contra este contexto, através de uma deslocação “pervertida” (a fuga, o trabalho itinerante, o álcool e até, de certa forma, a clausura monástica).
 
A autora, para revelar toda a densidade desse mal-estar e o perspectivar de uma forma globalizante, resolveu optar por narrar, de forma descontínua, a crónica de duas famílias durante os últimos cinquenta anos, utilizando uma técnica simples, mas muito eficaz: diversas situações, determinantes no destino dessas famílias, são descritas por oito narradores distintos, o que não só lhes intensifica o carácter fulcral para cada personagem, como lhes transmite uma significação colectiva, dado que assumem um sentido simbólico que identifica bem a complexa instabilidade que vive todo o povo índio.
 
No entanto, não se julgue que as preocupações literárias de Louise Erdrich são apenas colectivistas. Pelo contrário, a construção elíptica dos diálogos, a descrição sintética dos comportamentos, a densa caracterização das personagens são feitas com tal poder empático, que o leitor fica em dúvida que estas sejam na realidade ficcionais. As catorze narrativas interrelacionadas, que constituem Filtro de Amor, encenam situações-limite, exemplares no seu dramatismo, para a compreensão ética e psicológica de cada personalidade central. Histórias, como as de “Gansos Selvagens”, “O Descapotável Vermelho” e “Coroa de Espinhos”, para apenas citar algumas, são não só tramas fulgurantemente originais, como, pelo seu desenvolvimento narrativo, conseguem expressar, de forma inesquecível, a intensidade da paixão, o vibrar dos afectos daquelas figuras que, vivendo e morrendo nas suas casas rurais, deambulando pelas estradas e móteis do interior, alcoolizando-se e adormecendo ao balcão de bares das cidades de província, são arrumadas, de forma anónima e retórica, sob o epíteto de “América profunda”.
 
Quando fechamos este livro, encontramos na contracapa o rosto de uma mulher bonita e serena. E jovem, também. E espantamo-nos: quantas vezes, de onde menos se espera, aparece a navalha que rasga o filtro da contenção e nos reconcilia com vida e a literatura. Não há dúvida: Filtro de Amor é a comprovação que o realismo americano se encontra bem de saúde. E recomenda-se.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Titulo: Filtro de Amor
Autor: Louise Erdrich
Tradução: Fernanda Barão
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
251 págs., 12,59 €
 
 


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