SEM RESERVAS
Quando
Filtro
de Amor apareceu em 1984, certos críticos perceberam que, com este
romance, qualquer coisa se “deslocava” nas letras americanas. E, no entanto,
quase todos concordavam que nada havia nele de radicalmente inovador.
Pelo
contrário, Filtro de Amor, de uma jovem escritora de trinta anos, retomava
a seu modo uma das mais genuínas tradições literárias americanas. Nas suas páginas,
renascia aquele realismo existencial, de forte carga simbólica, que, vindo de
Herman Melville e Sherwood Anderson, tinha sido de forma exaustiva cultivado
pela literatura sulista: Eudora Welty, Flannery O’Connor, Carson MacCullers e,
obviamente, por essa ave de rapina que continua a pairar e ensombrecer o
acidentado chão da literatura contemporânea — William Faulkner... só que vinha
de uma escritora do Dakota do Norte e, ainda por cima, meio-índia Chippewa: Louise
Erdrich.
Mas se
o aparecimento de Filtro de Amor parecia vir dissolver as unidades que compõem o
universo literário norte-americano (era de facto sintomático que uma escritora
do Norte - e índia - produzisse uma obra que dava uma importância crucial à
territorialidade e ao clã, a um exaustivo tratamento psicológico das
personagens e reforçasse a dimensão simbólica das situações dramáticas), por
outro lado, este romance instituía, pela sua qualidade artística, uma
literatura índia moderna, peça que faltava no complexo “puzzle” que é a produção
literária dos Estados Unidos.
A crítica
americana, além disso, expressava a opinião de que os melhores termos para
caracterizar Filtro de Amor eram palavras inteiramente fora de moda como militância,
identificação, exemplaridade.
De
facto, é notório que Filtro de Amor está empenhado, sem
ambiguidades, em explicitar o mal-estar sociocultural de um povo que, tendo
dominado todo um continente, hoje se encontra confinado a reservas, reduzido a
duas centenas e meia de milhar e é utilizado ridiculamente para propaganda turística
e humilhantes “westerns”. Na verdade, não há aqui nenhum folclore de pacotilha:
as personagens, que por estas páginas aparecem, vivem uma fruste marginalidade,
lutando pelas mais elementares condições de subsistência, desenraízados dos
seus hábitos económicos e culturais. Aqueles que tentam manter as ancestrais
tradições de caça e de pesca (como o velho Eli), são encarados, pelos da sua raça,
como figuras selvagens e estranhas; porém, ao mesmo tempo, todas estas
personagens se sentem como descendentes dos antigos senhores das grandes planícies,
e, por isso, regaem contra este contexto, através de uma deslocação
“pervertida” (a fuga, o trabalho itinerante, o álcool e até, de certa forma, a
clausura monástica).
A
autora, para revelar toda a densidade desse mal-estar e o perspectivar de uma
forma globalizante, resolveu optar por narrar, de forma descontínua, a crónica
de duas famílias durante os últimos cinquenta anos, utilizando uma técnica simples,
mas muito eficaz: diversas situações, determinantes no destino dessas famílias,
são descritas por oito narradores distintos, o que não só lhes intensifica o
carácter fulcral para cada personagem, como lhes transmite uma significação
colectiva, dado que assumem um sentido simbólico que identifica bem a complexa
instabilidade que vive todo o povo índio.
No
entanto, não se julgue que as preocupações literárias de Louise Erdrich são apenas
colectivistas. Pelo contrário, a construção elíptica dos diálogos, a descrição
sintética dos comportamentos, a densa caracterização das personagens são feitas
com tal poder empático, que o leitor fica em dúvida que estas sejam na
realidade ficcionais. As catorze narrativas interrelacionadas, que constituem Filtro
de Amor, encenam situações-limite, exemplares no seu dramatismo, para a
compreensão ética e psicológica de cada personalidade central. Histórias, como as
de “Gansos Selvagens”, “O Descapotável Vermelho” e “Coroa de Espinhos”, para apenas
citar algumas, são não só tramas fulgurantemente originais, como, pelo seu
desenvolvimento narrativo, conseguem expressar, de forma inesquecível, a
intensidade da paixão, o vibrar dos afectos daquelas figuras que, vivendo e morrendo
nas suas casas rurais, deambulando pelas estradas e móteis do interior,
alcoolizando-se e adormecendo ao balcão de bares das cidades de província, são
arrumadas, de forma anónima e retórica, sob o epíteto de “América profunda”.
Quando
fechamos este livro, encontramos na contracapa o rosto de uma mulher bonita e
serena. E jovem, também. E espantamo-nos: quantas vezes, de onde menos se
espera, aparece a navalha que rasga o filtro da contenção e nos reconcilia com
vida e a literatura. Não há dúvida: Filtro de Amor é a comprovação que o
realismo americano se encontra bem de saúde. E recomenda-se.
Publicado no Público em 1990.
Titulo: Filtro de Amor
Autor: Louise Erdrich
Tradução: Fernanda Barão
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
251 págs., 12,59 €
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