CONSPIRAÇÃO FRACASSADA
Quando,
há quatro anos, a Editorial Caminho publicou o romance As Mortas de Jorge Ibargüengoitia,
muito boa gente ficou impressionada com aquela centena e meia de páginas: descobria-se
um autor pertencente a uma literatura (a mexicana), da qual só se conhecia uma bendita
trindade (Rulfo, Fuentes e Paz), e logo com uma pequena obra-prima de crueza e
humor, de realismo alucinado. As Mortas, com a sua ironia ao mesmo
tempo trágica e gélida, conseguia realmente revelar por que motivo as componentes
de mestiçagem cultural, de telurismo miserável, de suburbanismo concentracionário
dão aquela configuração de carnalidade e morte, de realidade à beira do abismo,
que caracteriza o universo social mexicano.
Por
tudo isto, era com uma séria expectativa que se encarava a tradução de uma nova
obra de Jorge Ibargüengoitia. E talvez também, por tudo isto, é que Os
Conspiradores desiludiu tanto.
Os
Conspiradores é uma tentativa de ficcionar uma das primeiras
insurreições independentistas do México, a rebelião do padre Morelos, no início
do séc. XIX, uma das manifestações que prenunciava a maturação social existente
nesta colónia espanhola para a independência (que decorreu cerca de dez anos
depois). Note-se, contudo, que Jorge Ibargüengoitia não pretendeu fazer obra de
rigor historiográfico, e, por isso, deu outros nomes aos líderes do movimento e
acrescentou situações que só se justificam pela liberdade criadora; mas os
principais acontecimentos narrados e o seu contexto cronológico não deixam dúvidas
quanto à insurreição descrita em termos romanescos.
Esta
rebelião, como sucedeu noutras regiões, foi, em grande parte, resultante do
descontentamento da população crioula (descendente dos espanhóis nascidos na
colónia) por ser, de forma sistemática, preterida nas funções de gestão da sociedade
colonial em relação à oriunda de Espanha. Mas se o estatuto da população
crioula lhe dava condições para liderar o movimento independentista, o mal-estar
era muito mais generalizado, tocando a população mestiça e índia, miseravelmente
explorada nas grandes propriedades fundiárias e na produção mineira. Natural, por
isso, que os acontecimentos provocados pala rebelião ultrapassassem os seus
principais promotores, transformando-se num movimento contra qualquer ordem social
e económica, de profunda inspiração religiosa.
Ao
descrever toda esta situação, Os Conspiradores pretende também
realçar certas contradições que estão na base de alguns dos acontecimentos mais
dramáticos da história contemporânea do México: os brutais desníveis económicos
que propiciam cíclicas explosões de fúria popular e repressões sanguinolentas;
o carácter espontâneo e massivo do sentimento de rebelião, sempre asfixiado por
uma radical escassez de meios para se impor, que irrompe de uma crónica resignação
à miséria e às distinções sociais; a dinâmica insurrecional da religiosidade
popular e o estatuto apaziguador e conservador da Igreja, etc. Por outro lado,
como é notório na caracterização dos protagonistas desta rebelião, visa-se
também demonstrar que são essas contradicções o que, no essencial, referencia o
comportamento dos agentes individuais: entre o legalismo, a corrupção e o populismo,
entre a megalomania militar e a impreparação política, os líderes dos movimentos
revolucionários nunca conseguiram de facto, naquele país, dar um sentido abrangente
à vontade popular, soçobrando sempre perante situações indomáveis e
destruidoras.
Mas o
carácter trágico deste tipo de acontecimentos assume sempre, neste romance, uma
dimensão banal e vulgar. E isto deve-se, na nossa opinião, a dois factores. Em
primeiro lugar, se, em termos históricos, pode parecer correcta a opção de dar
uma configuração de “memórias” de um protagonista secundário ao material
narrativo (tendo em conta a importância do memorialismo no séc. XIX), esta revela-se
desadequada em termos literários, porque introduz um elemento de distanciamento
emocional que esbate a dimensão “viva” dos acontecimentos narrados, e, ao mesmo
tempo, desactiva a introdução do humor - instrumento estilístico fundamental em
Jorge Ibargüengoitia -, na medida em que este aparece identificado com a posição
parcelar do protagonista-narrador. Em segundo lugar, o estilo seco, pretensamente
objectivo, e o linearismo narrativo (só entrecruzado de recorrências do
narrador) retiram qualquer textura épica às situações descritas e transformam
os seus protagonistas em títeres medíocres.
Por
fim, gostaria de expressar aqui a convicção, dada a importância cultural de uma
editora como a Caminho, de que se deve decerto a um mero lapso a inexistência
na obra de qualquer referência ao tradutor.
Publicado no Público em 1990.
Título: Os Conspiradores
Autor: Jorge Ibargüengoitia
Editor: Editorial Caminho
Ano: 1990
195 págs., esg.
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