AS TREVAS E A LUZ
O problema
de uma certa ideologia e de alguma literatura (e aqui pontifica, e de que
maneira, a literatura francesa deste século) foi o de crer que o homem é Deus:
foi essa a imagem a que algum humanismo não conseguiu (ou não quis) fugir. Mas,
nos últimos anos, talvez décadas, a História tem provado como isto foi um enorme
logro. E que matou tanta ou mais gente que as catástrofes naturais, por
exemplo.
Hoje
devia ser mais do que sabido (mas é, de facto, esquecido com facilidade) que o homem
é erro. E que é na luta contra o erro que se tem afirmado como homem. Nunca foi
posto em dúvida, que se saiba, o sentido da luta da razão contra o caos. Desde
que se tenha a ressalva, naturalmente, de entender como caos muito do que foi
assumido como razão e de que esta assuma a paixão como elemento ordenante,
redutor do caos.
É de tudo
isto que trata Merlim de Michel Rio. E é assombroso (mas sintomático) que um
escritor, no final deste século, sinta necessidade de escrever um romance sobre
este tema. E faça um livro optimista, ferverosamente apologista do sentido histórico
da razão.
Michel
Rio resolveu ir buscar um mito das primeiras ficções. Quer isto dizer, ao tempo
em que estas introduziram, de forma sub-reptícia, alguns grãos de loucura nos
fundamentos da Verdade. E desse mito fazer um profeta laico, um defensor da força
espiritual contra a força física. O que este romance narra é o tempo das névoas,
em que os homens viviam asfixiados por todas as naturezas, em que as instituições
não tinham tido força para as afastar, impondo-se como Lei. E o contributo de
um mito, disfarçado aqui de homem, para a impor.
“Tudo o que há é guerra”, diz uma personagem
crucial deste romance. E Merlim vai lembrando-se desta frase para a combater. Artur
e a Távola Redonda são criações de Merlim para fazer crer aos homens e ao (seu)
espírito que aquela afirmação não é um destino irreparável.
A
paixão, quando irrompe, corta, nestes tempos, a direito como uma navalha e todo
o tipo de incestos são aqui cometidos, todo o tipo de adultérios são sem mácula.
A paixão é, em Merlim, o sedutor, o indominável, o irremediável hemisfério sul
do espírito. Mas ele é também entendido como o principal fornecedor de matéria-prima
do prazer e da paixão. E esta como corpo, como quotidiano necessário para o
trabalho da razão. E, contudo, como sua principal inimiga também: Merlim
apaixona-se; mas salienta sempre que o papel do soberano, por dever de
eternidade, está em afirmar a Lei contra a paixão.
Espero
que esteja de férias, leitor. Se estiver, leia este livro. Michel Rio é um
autor francês com um certo traquejo profissional (este é o seu sétimo romance).
Não se pode dizer que seja na verdade um criador, mas é brilhante. E tem inegáveis
méritos de estilista, que a tradução, felizmente, deixa revelar. Talvez o
leitor, no fim, não se sinta muito mais culto, mas fica, de certeza, empolgado
e reflexivo sobre aquilo que há muito já reflectiu.
Segundo
Merlim,
a razão deixou ruir várias vezes o mundo enquanto Merlim foi vivo. Quantas
vezes irá ruir mais? Que cada um tropece nas ruínas da sua vida... Aprenda,
leitor, aquilo que já sabe: a razão é sempre curta. É mesmo a sua qualidade
mais essencial. Aprenda que a Fata Morgana, a exilada, canta e encanta, como uma
sereia, sempre, sempre, a sua razão e a sua verdade, leitor. Merlim, antes de
desaparecer da história e se tornar de novo mito, enterrou o cadáver de Artur,
o campeão da Justiça, junto de Morgana, a irmã, amante e inimiga. E o “recado”
torna-se óbvio: nem estamos em Camelot, nem estamos em Avalon, mas a meio
caminho, num canal (o Canal da Marcha) por onde a vida passa.
Confundi-o,
leitor? Não queria, confesso. Por isso, utilizo, como um comentarista medieval,
um argumento de autoridade: a crítica francesa, ao analisar este romance,
lembrou Shakespeare. Aquele (com Cervantes) que tinha um pé nas trevas e outro
na luz. Será esse o caminho de um iluminismo deste fim de século? Será, pelo menos,
uma suave ponderação para se ter ao sol de Setembro.
Publicado no Público em 1990.
Título: Merlim
Autor: Michel Rio
Tradução: Telma Costa
Editor: Teorema
Ano: 1990
139 págs., € 8,98
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