OS BASTIDORES DO ESPECTÁCULO DO PODER
Uma
tremenda trovoada cai, de noite, sobre um amplo relvado salpicado por árvores
de grande porte. Num dos extremos do relvado, uma mansão georgiana toda
iluminada, onde decorre uma luxuosa recepção. Recolhido debaixo de uma destas árvores,
um adolescente, vestido a rigor com um fato branco, confronta-se com a
trovoada, convence-se de que é capaz de a dominar. A chuva bate-lhe na cara,
ensopa-lhe o fato e obriga-o a fugir, ensurdecido pelos trovões, para o pavilhão
da piscina. Pára à porta, porque ouve um rádio a tocar, e, através da luz intermitente
dos relâmpagos, vê, sem conseguir identificá-lo, um casal a fazer amor. A sofrer
com a sua própria carência de adolescente, resolve fugir de novo, atravessando
a correr o relvado e entrando, pelas traseiras, na grande casa.
Creio
que, mesmo na sua inevitável pobreza, esta descrição sucinta da acção inicial
de Washington,
D. C., de Gore Vidal, revela o carácter “espectacular”, diria mesmo
hollywoodiano, com que este autor nos introduz na saga em que pretendeu decifrar
o poder político norte-americano.
Gore Vidal
começou (por fim…) a ser traduzido no nosso país, e logo com uma das obras mais
importantes deste autor que, desde muito cedo, se distinguiu na literatura americana
do pós-guerra pela sua versatilidade estilística e temática. Descendente de uma
família ligada tradicionalmente à elite dirigente dos Estados Unidos, Gore
Vidal nunca iludiu a sua íntima relação com esse “establishment” (ele foi, por
exemplo, uma figura proeminente da corte dos Kennedy e candidato a senador), mas,
ao mesmo tempo, sempre assumiu atitudes muito críticas e incómodas para com esse
“establishment” e, por isso, todas as suas regulares participações nos meios de
comunicação social (Gore Vidal tornou-se profusamente conhecido nos Estados
Unidos em consequência das suas, sempre “notadas”, aparições televisivas) provocaram
repercutantes polémicas. Narcisista, sempre convicto da argúcia e da pertinência
dos seus argumentos, Gore Vidal acusa de mediocridade a actual literatura americana
(salvam-se Tennessee WiIIiams, Christopher Isherwood, Eudora Welty e poucos mais…),
aponta a corrupção e a apetência autocrática e imperialista dos presentes dirigentes
políticos, denuncia a “ditadura heterossexual” da sociedade em que vive. Gore Vidal
conseguiu, assim, tornar-se uma das vozes mais radicais da vida americana e, numa
daquelas contradições bem típicas dos Estados Unidos, uma das mais ouvidas e
das mais solitárias.
Em
termos literários, a vasta obra de Gore Vidal estende-se pelos domínios da ensaística,
da dramaturgia e da narrativa. Este último domínio organiza-se, no fundamental,
em três áreas formais: a ficção histórica, a sátira romanesca à sociedade
americana e a ficção científica. De todas estas áreas, talvez a mais importante
seja a do romance histórico, onde se destacam os títulos de Creation
e, em especial, das duas trilogias sobre a história americana (a primeira, da qual
o tomo inicial é este Washington, D.C., é constituída também
pelos romances Burr e 1876, e a segunda encontra-se em fase
de criação, tendo-se, no entanto, já publicado os títulos de Lincoln
e Empire).
Washington,
D. C. foi considerado, pela crítica dos Estados Unidos, como um
dos melhores romances alguma vez escritos sobre o poder político norte-americano,
e, em particular, sobre aquela cidade que, com os seus matizes vincadamente provincianos
e, ao mesmo tempo, pretensamente cosmopolitas, lhe serve de sede.
A acção
do romance processa-se entre o New Deal de F. Roosevelt e a Guerra Fria de Eisenhower,
período em que Gore Vidal considera que se funda o actual império norte-americano,
e analisa duas das relações mais determinantes para a compreensão da sua vida
política: as relações entre os meios de comunicação social e o poder político,
e, dentro deste, entre o Senado e a Presidência. Para isso, coloca em situação,
por um lado, a família Sanford, que domina a imprensa da cidade, e, por outro,
dois políticos, o senador Burden Day e o seu assistente Clay Overbury, e a respectiva
ambição de atingir, como soe dizer-se nestas circunstâncias, a mais alta magistratura
da nação americana.
Numa
perspectiva estilística, como já foi referido, a obra explora toda a capacidade
de encenação espectacular da escrita para, com um não-sei-quê de ironia, colocá-la
ao serviço da descrição do “destino excepcional” das figuras que partilham o
poder da nação mais poderosa do mundo. Utilizando uma estrutura clássica, Gore
Vidal vai situando, como eixo central das diversas sub-divisões dos nove capítulos
que constituem o romance, uma personagem diferente, o que permite apresentar
distintos pontos de vista sobre a acção, complexificando assim os juízos que,
sobre esta, se possam fazer, e afastando qualquer fácil tendência maniqueísta em
que o leitor possa cair.
Como é
habitual na ficção histórica, em Washington D. C. cruzam-se personagens
reais com “inventadas”, e na acção do romance reflectem-se os principais
acontecimentos porque passou a história americana naquele período: o reforço da
esquerda liberal, depois do seu empenho na guerra civil espanhola, na
administração do New Deal, a recuperação económica, a tensão internacional na
fase pré-guerra e o neutralismo, a participação no conflito mundial, a ocupação
de Berlim, Yalta, Hiroshima e a Conferência de São Francisco, a caça às bruxas
maccarthista, a política de Blocos, a Guerra Fria e o muro de Berlim. Todos os
desempenhos da política norte-americana perante estes acontecimentos são
encarados como resultantes de um jogo, complexo e arriscado (e, por isso mesmo,
amoral), que a elite social de Washington vai executando pela conquista do
poder político, e como “puras emanações” de um microcosmos, sobre as quais, por
conseguinte, cada elemento integrante parece não ter responsabilidades directas
e objectivas.
Gore
Vidal não esconde que entende a conquista poder político, antes do mais, como uma
vitória da inteligência. É certo que existe, como é óbvio, uma intervenção do
acaso (ou da sorte) na ascensão ao poder político; mas esta é principalmente consequência
de uma implacável capacidade de sedução e de manobra das pessoas. A ascensão ao
poder político é, por isso, resultante de um acumular (e de um culminar) de
diversos pequenos poderes e conquistas; daí que o poder político tenha uma
voracidade tal que exija a total absorção do indivíduo que lhe sentiu o fascínio,
ao ponto de abdicar de si, isto é, de ocultar a sua subjectividade. Esta deixa
de ter qualquer autonomia: deverá, como tudo o resto, resignar-se ao objectivo
da conquista do poder.
É face
a esta exigência do poder que, no essencial, as personagens de Washington,
D. C. se situam: umas sujeitam-se por completo às regras impostas pelo
jogo do poder, mesmo que isso leve à destruição de parte de si próprias (é o caso
de Blaise Sanford, o magnate que domina a imprensa de Washington e de Clay
Overbury, o jovem político em constante ascensão), e são, por isso, “inevitavelmente”,
vitoriosas; outras encaram o poder político como devendo estar também sujeito a
regras, principalmente morais, e, por conseguinte, sabem que, “inevitavelmente”,
não estão em condições de o disputar, resignando-se ao simples papel de
incomodarem e dificultarem a ascensão das primeiras, mas conseguindo deste modo,
mesmo que condicionadas, obter uma certa integridade solitária como pessoas (é o
caso do jovem Peter Sanford e, de certo modo, de Diana Day).
Perante
estes dois universos em ininterrupto confronto, demarca-se o senador Burden
Day, um político que pretende ainda conciliá-los, e que, por isso mesmo, é um
representante da “idade de ouro” da política americana, quando esta ainda procurava
governar uma República e não um Estado Imperial (note-se que, em obras
posteriores, Gore Vidal renunciou a esta imagem de um período exemplar na política
americana). No entanto, perante as exigências dos “novos tempos”, a tentativa
de conciliação de Burden Day vai também transmitir dele uma imagem de fraco e de
um vencido.
E,
contudo, este controle do poder político não vai dar aos vitoriosos nenhum poder
efectivo, mas só o prazer de gerirem um jogo: os políticos são obrigados permanentemente,
de modo a não o perder, a executar uma estratégia de sedução o mais ampla possível
e, por isso mesmo, a afirmarem-se numa sintonia abúlica com a maioria social. Além
disso, as relações entre o Senado, o Congresso e a Presidência levam à anulação
de um poder autónomo, e, por outro lado, estes vivem sujeitos a uma administração
tentacular que de facto tudo decide.
Uma
das constatações que se retiram da leitura de Washington, D. C. é que o
Presidente americano nada governa, estando apenas limitado a expressar um
“estilo” que dá uma “imagem” ao poder. Os políticos vitoriosos sabem, por isso,
que é fundamental não revelarem idiossincrasias que se tornem fatais e isso
condiciona-os a uma “retórica” do poder que pouco decide e que apenas transmite
os sinais ritualizados de que tudo domina.
Convém
ainda salientar que, em Washington, D. C., as próprias
personagens, que entendem que a ascensão ao poder político deve estar sujeita a
regras, não assumem essa atitude em consequência de qualquer princípio altruísta,
exterior a eles próprios; pelo contrário, foi resultante do confronto entre a
história pessoal e a própria História que determinou o modo como cada um encara
o poder político.
Por
fim, gostaria de referir que uma das virtualidades de Washington, D. C. é possibilitar
uma viva compreensão, mesmo considerando a distância temporal entre o período
referenciado e a actualidade, de um país que tem a intrigante capacidade de conciliar
as dinâmicas sociais mais inovadoras com um “actor-presidente” (fica bem
saliente neste romance de Gore Vidal como é “perturbantemente lógico” que um
actor, pela sua intrínseca compreensão de que o poder é, no essencial, espectáculo,
ocupe hoje a Casa Branca) que se evidencia por um discurso, na aparência anacrónico,
mas que, no fundo, está em completa consonância com a imensa face oculta da
sociedade americana.
Publicado
no Expresso em 1988.
Título:
Washington, D. C.
Autor:
Gore Vidal
Tradutor:
Fernanda Barão
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
388
págs., esg.
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