quinta-feira, 12 de julho de 2018

GORE VIDAL 4

 
 
 
OS BASTIDORES DO ESPECTÁCULO DO PODER
 
Uma tremenda trovoada cai, de noite, sobre um amplo relvado salpicado por árvores de grande porte. Num dos extremos do relvado, uma mansão georgiana toda iluminada, onde decorre uma luxuosa recepção. Recolhido debaixo de uma destas árvores, um adolescente, vestido a rigor com um fato branco, confronta-se com a trovoada, convence-se de que é capaz de a dominar. A chuva bate-lhe na cara, ensopa-lhe o fato e obriga-o a fugir, ensurdecido pelos trovões, para o pavilhão da piscina. Pára à porta, porque ouve um rádio a tocar, e, através da luz intermitente dos relâmpagos, vê, sem conseguir identificá-lo, um casal a fazer amor. A sofrer com a sua própria carência de adolescente, resolve fugir de novo, atravessando a correr o relvado e entrando, pelas traseiras, na grande casa.
 
Creio que, mesmo na sua inevitável pobreza, esta descrição sucinta da acção inicial de Washington, D. C., de Gore Vidal, revela o carácter “espectacular”, diria mesmo hollywoodiano, com que este autor nos introduz na saga em que pretendeu decifrar o poder político norte-americano.
 
Gore Vidal começou (por fim…) a ser traduzido no nosso país, e logo com uma das obras mais importantes deste autor que, desde muito cedo, se distinguiu na literatura americana do pós-guerra pela sua versatilidade estilística e temática. Descendente de uma família ligada tradicionalmente à elite dirigente dos Estados Unidos, Gore Vidal nunca iludiu a sua íntima relação com esse “establishment” (ele foi, por exemplo, uma figura proeminente da corte dos Kennedy e candidato a senador), mas, ao mesmo tempo, sempre assumiu atitudes muito críticas e incómodas para com esse “establishment” e, por isso, todas as suas regulares participações nos meios de comunicação social (Gore Vidal tornou-se profusamente conhecido nos Estados Unidos em consequência das suas, sempre “notadas”, aparições televisivas) provocaram repercutantes polémicas. Narcisista, sempre convicto da argúcia e da pertinência dos seus argumentos, Gore Vidal acusa de mediocridade a actual literatura americana (salvam-se Tennessee WiIIiams, Christopher Isherwood, Eudora Welty e poucos mais…), aponta a corrupção e a apetência autocrática e imperialista dos presentes dirigentes políticos, denuncia a “ditadura heterossexual” da sociedade em que vive. Gore Vidal conseguiu, assim, tornar-se uma das vozes mais radicais da vida americana e, numa daquelas contradições bem típicas dos Estados Unidos, uma das mais ouvidas e das mais solitárias.
 
Em termos literários, a vasta obra de Gore Vidal estende-se pelos domínios da ensaística, da dramaturgia e da narrativa. Este último domínio organiza-se, no fundamental, em três áreas formais: a ficção histórica, a sátira romanesca à sociedade americana e a ficção científica. De todas estas áreas, talvez a mais importante seja a do romance histórico, onde se destacam os títulos de Creation e, em especial, das duas trilogias sobre a história americana (a primeira, da qual o tomo inicial é este Washington, D.C., é constituída também pelos romances Burr e 1876, e a segunda encontra-se em fase de criação, tendo-se, no entanto, já publicado os títulos de Lincoln e Empire).
 
Washington, D. C. foi considerado, pela crítica dos Estados Unidos, como um dos melhores romances alguma vez escritos sobre o poder político norte-americano, e, em particular, sobre aquela cidade que, com os seus matizes vincadamente provincianos e, ao mesmo tempo, pretensamente cosmopolitas, lhe serve de sede.
 
A acção do romance processa-se entre o New Deal de F. Roosevelt e a Guerra Fria de Eisenhower, período em que Gore Vidal considera que se funda o actual império norte-americano, e analisa duas das relações mais determinantes para a compreensão da sua vida política: as relações entre os meios de comunicação social e o poder político, e, dentro deste, entre o Senado e a Presidência. Para isso, coloca em situação, por um lado, a família Sanford, que domina a imprensa da cidade, e, por outro, dois políticos, o senador Burden Day e o seu assistente Clay Overbury, e a respectiva ambição de atingir, como soe dizer-se nestas circunstâncias, a mais alta magistratura da nação americana.
 
Numa perspectiva estilística, como já foi referido, a obra explora toda a capacidade de encenação espectacular da escrita para, com um não-sei-quê de ironia, colocá-la ao serviço da descrição do “destino excepcional” das figuras que partilham o poder da nação mais poderosa do mundo. Utilizando uma estrutura clássica, Gore Vidal vai situando, como eixo central das diversas sub-divisões dos nove capítulos que constituem o romance, uma personagem diferente, o que permite apresentar distintos pontos de vista sobre a acção, complexificando assim os juízos que, sobre esta, se possam fazer, e afastando qualquer fácil tendência maniqueísta em que o leitor possa cair.
 
Como é habitual na ficção histórica, em Washington D. C. cruzam-se personagens reais com “inventadas”, e na acção do romance reflectem-se os principais acontecimentos porque passou a história americana naquele período: o reforço da esquerda liberal, depois do seu empenho na guerra civil espanhola, na administração do New Deal, a recuperação económica, a tensão internacional na fase pré-guerra e o neutralismo, a participação no conflito mundial, a ocupação de Berlim, Yalta, Hiroshima e a Conferência de São Francisco, a caça às bruxas maccarthista, a política de Blocos, a Guerra Fria e o muro de Berlim. Todos os desempenhos da política norte-americana perante estes acontecimentos são encarados como resultantes de um jogo, complexo e arriscado (e, por isso mesmo, amoral), que a elite social de Washington vai executando pela conquista do poder político, e como “puras emanações” de um microcosmos, sobre as quais, por conseguinte, cada elemento integrante parece não ter responsabilidades directas e objectivas.
 
Gore Vidal não esconde que entende a conquista poder político, antes do mais, como uma vitória da inteligência. É certo que existe, como é óbvio, uma intervenção do acaso (ou da sorte) na ascensão ao poder político; mas esta é principalmente consequência de uma implacável capacidade de sedução e de manobra das pessoas. A ascensão ao poder político é, por isso, resultante de um acumular (e de um culminar) de diversos pequenos poderes e conquistas; daí que o poder político tenha uma voracidade tal que exija a total absorção do indivíduo que lhe sentiu o fascínio, ao ponto de abdicar de si, isto é, de ocultar a sua subjectividade. Esta deixa de ter qualquer autonomia: deverá, como tudo o resto, resignar-se ao objectivo da conquista do poder.
 
É face a esta exigência do poder que, no essencial, as personagens de Washington, D. C. se situam: umas sujeitam-se por completo às regras impostas pelo jogo do poder, mesmo que isso leve à destruição de parte de si próprias (é o caso de Blaise Sanford, o magnate que domina a imprensa de Washington e de Clay Overbury, o jovem político em constante ascensão), e são, por isso, “inevitavelmente”, vitoriosas; outras encaram o poder político como devendo estar também sujeito a regras, principalmente morais, e, por conseguinte, sabem que, “inevitavelmente”, não estão em condições de o disputar, resignando-se ao simples papel de incomodarem e dificultarem a ascensão das primeiras, mas conseguindo deste modo, mesmo que condicionadas, obter uma certa integridade solitária como pessoas (é o caso do jovem Peter Sanford e, de certo modo, de Diana Day).
 
Perante estes dois universos em ininterrupto confronto, demarca-se o senador Burden Day, um político que pretende ainda conciliá-los, e que, por isso mesmo, é um representante da “idade de ouro” da política americana, quando esta ainda procurava governar uma República e não um Estado Imperial (note-se que, em obras posteriores, Gore Vidal renunciou a esta imagem de um período exemplar na política americana). No entanto, perante as exigências dos “novos tempos”, a tentativa de conciliação de Burden Day vai também transmitir dele uma imagem de fraco e de um vencido.
 
E, contudo, este controle do poder político não vai dar aos vitoriosos nenhum poder efectivo, mas só o prazer de gerirem um jogo: os políticos são obrigados permanentemente, de modo a não o perder, a executar uma estratégia de sedução o mais ampla possível e, por isso mesmo, a afirmarem-se numa sintonia abúlica com a maioria social. Além disso, as relações entre o Senado, o Congresso e a Presidência levam à anulação de um poder autónomo, e, por outro lado, estes vivem sujeitos a uma administração tentacular que de facto tudo decide.
 
Uma das constatações que se retiram da leitura de Washington, D. C. é que o Presidente americano nada governa, estando apenas limitado a expressar um “estilo” que dá uma “imagem” ao poder. Os políticos vitoriosos sabem, por isso, que é fundamental não revelarem idiossincrasias que se tornem fatais e isso condiciona-os a uma “retórica” do poder que pouco decide e que apenas transmite os sinais ritualizados de que tudo domina.
 
Convém ainda salientar que, em Washington, D. C., as próprias personagens, que entendem que a ascensão ao poder político deve estar sujeita a regras, não assumem essa atitude em consequência de qualquer princípio altruísta, exterior a eles próprios; pelo contrário, foi resultante do confronto entre a história pessoal e a própria História que determinou o modo como cada um encara o poder político.
 
Por fim, gostaria de referir que uma das virtualidades de Washington, D. C. é possibilitar uma viva compreensão, mesmo considerando a distância temporal entre o período referenciado e a actualidade, de um país que tem a intrigante capacidade de conciliar as dinâmicas sociais mais inovadoras com um “actor-presidente” (fica bem saliente neste romance de Gore Vidal como é “perturbantemente lógico” que um actor, pela sua intrínseca compreensão de que o poder é, no essencial, espectáculo, ocupe hoje a Casa Branca) que se evidencia por um discurso, na aparência anacrónico, mas que, no fundo, está em completa consonância com a imensa face oculta da sociedade americana.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: Washington, D. C.
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Fernanda Barão
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
388 págs., esg.
 
 



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