EXERCÍCIO DE ESTILO
Se
existe um tema que se pode entender como clássico, no quadro de teorização da
modernidade, esse é inegavelmente o das relações entre serva/senhor. Remetendo
para três imensos pilares do pensamento moderno — Sade, Freud e Nietzsche —, durante
este século, vários pensadores, onde sobressai Bataille, perturbaram as nossas
consciências humanistas e bem-pensantes, ao esmiuçarem a dependência corpórea,
sensorial, que tal relação estabelece entre os seus membros, ao clarificarem a necessidade
orgânica que institui, chegando ao ponto de assinalarem que a sua ruptura
provoca um desequilíbrio fatal e comummente doloroso nos seus dois pólos.
É a
este tema que resolve regressar o escritor norte-americano Robert Coover, em A
Criada e o Amo. Este autor, pela primeira vez traduzido para português,
iniciou em 1966, com The Origin of the Burnists, a
publicação de uma significativa obra de ficção (lembramos Pricksongs and Descants, The
Public Burning, etc.), marcada por uma permanente preocupação formal e
orientada para a desagregação das estruturas normativas e clássicas do romance.
Essa obra, entroncando numa tendência da ficção americana contemporânea, que
tem também como expoentes Harry Mathews, John Barth e Richard Brautigan (todos
eles desconhecidos do leitor português), tem, portanto, uma importante vertente
experimental que transforma as narrativas numa espécie de arte combinatória de
elementos formais onde as regras do jogo substituem as condicionantes miméticas
(se quisermos encontrar alguma correspondência à obra de Robert Coover na
literatura deste lado do Atlântico, devemos lembrar-nos das experiências do
grupo OuLiPo, liderado por Raymond Queneau e Georges Perec).
É por
isso que se pode afirmar que o tema de A Criada e o Amo é um “logro” a que
o autor tem que recorrer para evidenciar aquilo que está subjacente e é nuclear
na própria produção ficcional, que é a sua estrutura formal. Aproveitando-se de
um quadro narrativo repetitivo e onde é desnecessária, e inconveniente, a progressão
(o início dos trabalhos domésticos de uma criada e a sua sistemática punição
por desleixo), Robert Coover vai desenvolver uma combinatória de referentes que,
alterando-se e deslocando-se na própria narrativa, vão assinalar a subreptícia
progressão de comportamentos até à ritualização de uma relação perversamente
punitiva, onde os seus objectivos e sentidos se vão desvirtuando até ser a própria
existência do “castigo” que justifica a relação.
As
variantes de texto para texto são a tal ponto gradativas que a sua progressão
faz-nos lembrar as experiências da música e do bailado “minimal” (como muito bem
refere o texto de apresentação que aparece na contra-capa desta edição), e um
trabalho interessante a realizar, face a esta obra, era perceber qual a lógica
que determina aquela progressão (aritmética? geométrica?).
Perante
um tema tão exaustivamente estudado (e, portanto, onde é difícil apresentar
inovações significativas) e com um valor tão subsidiário na produção da obra, o
que se realça em A Criada e o Amo é a sua dimensão de “exercício de estilo”. Mas
talvez seja essa mesma predominância das preocupações formais que leva o
leitor, ao concluir a leitura desta obra, a encará-la como demasiado fechada em
si mesma e, por conseguinte, inútil.
Publicado no Expresso em 1987.
Título: A Criada e o Amo
Autor: Robert Coover
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
68 págs., esg.
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