segunda-feira, 16 de julho de 2018

ROBERT COOVER 2

 
 
 
 
EXERCÍCIO DE ESTILO
 
Se existe um tema que se pode entender como clássico, no quadro de teorização da modernidade, esse é inegavelmente o das relações entre serva/senhor. Remetendo para três imensos pilares do pensamento moderno — Sade, Freud e Nietzsche —, durante este século, vários pensadores, onde sobressai Bataille, perturbaram as nossas consciências humanistas e bem-pensantes, ao esmiuçarem a dependência corpórea, sensorial, que tal relação estabelece entre os seus membros, ao clarificarem a necessidade orgânica que institui, chegando ao ponto de assinalarem que a sua ruptura provoca um desequilíbrio fatal e comummente doloroso nos seus dois pólos.
 
É a este tema que resolve regressar o escritor norte-americano Robert Coover, em A Criada e o Amo. Este autor, pela primeira vez traduzido para português, iniciou em 1966, com The Origin of the Burnists, a publicação de uma significativa obra de ficção (lembramos Pricksongs and Descants, The Public Burning, etc.), marcada por uma permanente preocupação formal e orientada para a desagregação das estruturas normativas e clássicas do romance. Essa obra, entroncando numa tendência da ficção americana contemporânea, que tem também como expoentes Harry Mathews, John Barth e Richard Brautigan (todos eles desconhecidos do leitor português), tem, portanto, uma importante vertente experimental que transforma as narrativas numa espécie de arte combinatória de elementos formais onde as regras do jogo substituem as condicionantes miméticas (se quisermos encontrar alguma correspondência à obra de Robert Coover na literatura deste lado do Atlântico, devemos lembrar-nos das experiências do grupo OuLiPo, liderado por Raymond Queneau e Georges Perec).
 
É por isso que se pode afirmar que o tema de A Criada e o Amo é um “logro” a que o autor tem que recorrer para evidenciar aquilo que está subjacente e é nuclear na própria produção ficcional, que é a sua estrutura formal. Aproveitando-se de um quadro narrativo repetitivo e onde é desnecessária, e inconveniente, a progressão (o início dos trabalhos domésticos de uma criada e a sua sistemática punição por desleixo), Robert Coover vai desenvolver uma combinatória de referentes que, alterando-se e deslocando-se na própria narrativa, vão assinalar a subreptícia progressão de comportamentos até à ritualização de uma relação perversamente punitiva, onde os seus objectivos e sentidos se vão desvirtuando até ser a própria existência do “castigo” que justifica a relação.
 
As variantes de texto para texto são a tal ponto gradativas que a sua progressão faz-nos lembrar as experiências da música e do bailado “minimal” (como muito bem refere o texto de apresentação que aparece na contra-capa desta edição), e um trabalho interessante a realizar, face a esta obra, era perceber qual a lógica que determina aquela progressão (aritmética? geométrica?).
 
Perante um tema tão exaustivamente estudado (e, portanto, onde é difícil apresentar inovações significativas) e com um valor tão subsidiário na produção da obra, o que se realça em A Criada e o Amo é a sua dimensão de “exercício de estilo”. Mas talvez seja essa mesma predominância das preocupações formais que leva o leitor, ao concluir a leitura desta obra, a encará-la como demasiado fechada em si mesma e, por conseguinte, inútil.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: A Criada e o Amo
Autor: Robert Coover
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
68 págs., esg.
 




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