AS FRAGILIDADES DA PERFEIÇÃO
A escritora Ann Patchett, de quem foi agora publicado no
nosso país o seu último romance, intitulado Bel Canto, poderá ser
encarada como um excelente caso (dado o seu sucesso) para exemplificar o
percurso formativo e curricular das gerações mais recentes de autores da
literatura norte-americana.
Esta californiana de quarenta anos, oriunda de uma
família de classe média, fez toda a sua carreira académica com o objectivo de
ser escritora, seguindo as diversas fases de uma formação em “escrita
criativa”: na universidade teve, como professores, alguns dos mais importantes
escritores americanos actuais (Grace Paley, Russell Banks e Allan Gurganus) e,
por fim, concluiu a sua pós-graduação no mais prestigiado curso de escrita criativa
dos Estados Unidos: o University of Iowa Writer’s Workshop, dirigido por Frank
Conroy.
Ainda antes de ter concluido a sua formação académica,
publicou a primeira “short-story” numa das mais prestigiadas revistas
literárias americanas (a “Paris Review”) e, a partir dessa altura, a sua vida
tem sido de uma constância inabalável: obter bolsas literárias, escrever
romances e ganhar prémios. Publicou o seu primeiro romance no início da última
década (The Patron Saint of Liars, que foi considerado o “notable book
of the year” pelo “New York Times”) e, de seguida, mais três romances (Taft,
The
Magician’s Assistant e Bel Canto, agora traduzido): todos
eles foram bem recebidos pela crítica, premiados (o último, no entanto, foi o
que obteve galardões de maior relevo: o Orange Prize e o PEN/Faulkner Award), com
sucessos comerciais assinaláveis e já adaptados para a televisão e cinema.
É quase impossível conceber, de facto, no mundo literário,
uma carreira tão “perfeita” e com tanto êxito como a de Ann Patchett. Mas, por
isso mesmo, como caso exemplar, a obra desta autora pode ser analisada segundo
a perspectiva da avaliação das virtualidades e dos limites dos modelos de
formação literária americana, que são, como é sabido, muito desacreditados nos
circuitos literários do Velho Continente.
Bel
Canto inspirou-se, de forma explícita, num facto político relativamente
recente que foi muito “mediatizado”: o sequestro, em finais de 1996, na
embaixada do Japão em Lima, pela organização Tupac Amaru, de grande parte do
corpo diplomático e da classe dirigente dos círculos económicos e políticos
peruanos. Segundo declarações da autora, este assunto interessou-lhe porque lhe
permitia compreender os comportamentos de dois grupos bastante antagónicos, com
uma composição muito heteróclita, que se encontram enclausurados de forma
forçada, durante algum tempo, num universo circunscrito.
Porém, quando a autora se lançou neste projecto, tinha, de
modo notório, outro objectivo em vista: a convicção que, mesmo entre grupos em
confronto dramático, é possível, para lá de tudo o que os divide (opções
políticas contrárias, estatutos sociais e culturais marcadamente distintos),
com base na sua humanidade e na natural predisposição para aceitar a
manifestação de determinados impulsos, entenderem-se e até atingirem uma
elevada capacidade comunicativa. Esses impulsos são, na mais singela das
simplicidades, o de reconhecer e respeitar a beleza e, em complementaridade, o
amor, acreditando-se que este “império da beleza e do amor” é o instrumento
necessário e decisivo para a conciliação e para o desenvolvimento ético e
caracterial das pessoas.
É evidente que o romance, para atingir este objectivo e
respeitar escrupulosamente o princípio da verosimilhança, tem de efectuar um verdadeiro
“tour de force”. E, neste aspecto, Bel Canto é bem conseguido: o ritmo
narrativo é, na sua maior parte, de uma forma deliberada, lento, envolvente,
procurando desvendar todos os meandros psicológicos que propiciam a
concretização do processo de aproximação entre os dois grupos.
Dentro do cenário já descrito, a acção narrativa
desenrola-se em redor de uma cantora de ópera, bela e com uma voz esplendorosa,
e de duas histórias de amor, intensas e contidas, expostas num estilo elegante,
correspondendo ao mais genuíno cânone literário nova-iorquino. Muitas personagens
de Bel
Canto, mesmo algumas secundárias (recordo, por exemplo, o russo
Fyodorov, claramente concebido para desembocar numa “fala” em que narra a sua
vida – uma verdadeira “short-story” dentro do romance – e que, de certo modo,
encerra toda a “tese” que Bel Canto pretende ser porta-voz),
são individualizadas com cuidado e de forma convicente.
Por isso mesmo, torna-se perplexante a forma,
relativamente caricaturada, como Ann Patchett delineia os chefes do grupo
guerrilheiro: doentes e analfabetos, mais parecendo personificações de um
“ingénuo” Mal, seres em estado terminal que só conseguem sobreviver porque são
impelidos por um rancor desesperado de conquistar as franjas da beleza que os
outros possuem. Sobre o corpo ideológico, que os enforma e motiva, pouco ou
nada é expresso ou, nos momentos em que a ele se alude, mais parece uma espécie
de “roupagem” emotiva, produto de “slogans” histéricos, com que os “generais”
guerrilheiros se manipulam intelectualmente ao mesmo tempo que manipulam os
seus “simples” correligionários.
Quando o leitor se confronta com esta fragilidade, é
levado a interrogar-se sobre a valia literária deste romance, perfeitamente
construído, e sobre o significado dos prémios que obteve. Ninguém dúvida da
convicção com que Ann Patchett crê que o reconhecimento da beleza origina uma
ambiência amorosa que dissolve os conflitos mais extremos e da sua perícia
literária em nos tentar fazer acreditar nesta sua convicção. Mas, por isso
mesmo, Bel Canto não será apenas uma peça literária laborosamente bem
construída para expor uma tese de um excessivo e angelical optimismo? E, por
isso mesmo também, não será este romance um excelente exemplo de todas as virtualidades
e limites do modelo de formação literária americano?
Publicado no Público em 2002.
Título: Bel Canto
Autor: Ann Patchett
Tradução: Maria do Carmo Figueira
Editor: Gradiva
Ano: 2002
303 págs., € 5,00
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