OS
SENTIMENTOS RISÍVEIS
Para quem
procure ver no romance, entre outros aspectos, um testemunho do correr dos
tempos, fica forçosamente intrigado com o facto de este pouco reflectir, pelo
menos com obras de grande fôlego, as situações de guerra que se viveram durante
este século. Não se quer dizer com isto que não exista importantes obras
memorialistas nem que não haja obras literárias, e marcantes, do séc. XX, onde
a guerra se encontre de um modo indirecto reflectida. Mas poucas existem em que
o próprio “palco de guerra” seja o cenário dominante (ao contrário, por
exemplo, do que sucede no cinema). E, no entanto, como experiência-limite, onde
tudo o que é determinante no homem está em jogo, a guerra deveria estimular o
aparecimento de excelentes obras de ficção. Será que, por excesso, as situações
de guerra bloqueiam o poder criativo da arte narrativa?
Um bom
exemplo deste facto é a Guerra do Vietname. Uma literatura tão poderosa, em
termos narrativos, como a norte-americana, apresenta poucos exemplos de autores
significativos que se tenham dedicado a testemunhar, pelo romance, esta guerra
tão traumática para os Estados Unidos: recordo os nomes de Tim O’Brien, Michael
Herr, Philip Caputo, Robert Stone e Tobias Wolff (se exceptuarmos este último -
e com uma produção literária que ultrapassa esta delimitação temática - todos
os restantes nomes pouco ou nada devem dizer ao leitor português). Se se juntar
a estes autores, o nome de alguns memorialistas, como Ron Kovic (principalmente
conhecido porque foi com base no seu livro que Oliver Stone realizou o filme Nascido
a 4 de Julho), e de alguns poetas, também pouco conhecidos, pode
dizer-se que fica encerrada a lista de autores cuja produção literária abordou
a Guerra do Vietname. Tem de se concluir que é indiscutivelmente pouco.
Quanto mais
não fosse porque escreveu dois dos mais importantes romances sobre a Guerra do
Vietname (Going After Cacciato, que ganhou o National Book Award, e In
The Lake of the Woods) e um magnífico livro de memórias (If I
Die in a Combat Zone, Box Me Up and Ship Me Home), a saída em edição
portuguesa de um romance de Tim O’Brien deve ser assinalada. Essa obra,
intitulada Tomcat in Love, é a primeira do autor que não se centra na
Guerra referida (o tema deste romance é a chamada “guerra dos sexos”),
continuando, no entanto, a pautar-se pelas mesmas características estilísticas
que deram evidência ao autor nas anteriores obras e em que se destaca um humor
que decompõe até à irrisão todas as situações humanas, mesmo as mais extremas e
dolorosas.
A figura
central de Tomcat in Love é um professor universitário de Linguística e
Literatura, já quarentão, que tem duas obsessões na vida: vingar-se da sua
ex-mulher (por quem está convencido que tem uma paixão única, exclusiva, desde
o início da adolescência) por o ter abandonado e anotar, de um modo minucioso,
as características físicas e psíquicas de todas as mulheres que dele se
aproximaram e lhe deram a mais breve atenção. São estas duas obsessões - que se
vão revelar conflituosas entre si - que irão motivar um infindável périplo de
calamitosas peripécias que o levarão a uma situação degradante em termos
sociais e a mergulhá-lo num estado de perturbação quase irreparável.
Encadeando
um conjunto de situações muito engenhosas e imprevisíveis, o romance
sustenta-se num registo de humor que atinge, por vezes, a caricatura a traço
grosso, ressalvando-se apenas, aqui e além, um “olhar” que procura tingir de
alguma piedade a futilidade das emoções e dos sentimentos humanos (e, neste
aspecto, torna-se curiosa a forma como o autor procura estabelecer
“cumplicidades” com as leitoras que se encontram em situação de “abandono
amoroso” similar à da personagem principal). Se, em geral, Tomcat in Love não
consegue, em termos puramente estéticos, transmitir um profícuo prazer de
leitura (em particular, porque se torna desgastante e monótona a tónica de
autocomiseração que subjaz à estereotipização constante do comportamento
amoroso masculino), é forçoso reconhecer que o romance não deixa, por isso, de
possuir alguns conceitos estimulantes. Antes do mais, deve ser referida a
ideia, estruturante na arquitectura do romance, de que a repercussão histérica das
emoções e dos sentimentos é, em exclusivo, alimentada por uma espécie de
semântica pessoal, onde as palavras se revestem de um “significado íntimo”; a
segunda, onde se procura conectar as relações de dependência afectiva com
fixações de culpa geradas, e vorazmente silenciadas, em fases iniciais da
formação caracterial (veja-se a descrição muito bem conseguida, logo no início
do romance, da forma como se estabelece, entre o cunhado, a ex-mulher e a
personagem principal, o imbricamento emocional que determina o seu
relacionamento futuro).
Publicado
no Público em 1999.
(Foto do Autor de Darren Carroll).
(Foto do Autor de Darren Carroll).
Título: Tomcat in Love
Autor: Tim O’Brien
Tradução: Rute Rosa da Silva
Editor: Difel
Ano: 1999
408 págs., esg.
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