A IRRUPÇÃO VIOLENTA DA
CARNE
Há
certos textos que são puras casas de alucinação, onde se atravessa a beleza fulgurante
e a mais repugnante imagem, o sentido mais obscuro e a metáfora rude, como se nada
dominasse o discorrer da palavra e esta fosse movida por uma energia insensível
e brutal que se distendesse de um modo autónomo pela página.
É este
perturbante “rosto” que nos deixa a leitura desta narrativa poética, Júlio
César - História Nociva, de Joyce Mansour, uma poetisa francesa, nascida
em Inglaterra, mas de origem egípcia, que pertenceu ao grupo surrealista de
André Breton na década de cinquenta, quando ele já se desmembrava e perdia ímpeto
e sentido.
Joyce
Mansour, logo com os seus primeiros textos publicados, se revelou como a mais
interessante poetisa surrealista da sua geração: uma escrita de uma violência
radical, com uma componente imagética obcecadamente sexual e com a capacidade de
desvendar a fantasmagoria universal através de metáforas dilacerantes. Poucas
vezes, de facto, a poesia de origem surrealista conseguira, como, por exemplo,
na colectânea Rapaces, semelhante acutilância em “tocar o horror” de forma a
transfigurá-lo.
Júlio César
- História Nociva, possuindo as virtualidades metafóricas da restante
poesia de Joyce Mansour, não consegue atingir a mesma intensidade, em
específico pela “quebra” que provoca certa irregularidade nos seus parâmetros
estéticos. No entanto, esta narração do processo de formação de dois gémeos e
da sua relação com a ama, a personagem de nome intrigante que intitula este
breve texto, consegue aproximar-se da dimensão mítica, principalmente por se concentrar
na enunciação dos “pontos críticos de crescimento”. A voracidade dos gémeos a
matar a figura divina, recriando-a como um acto lúdico, e a irrupção sangrenta da
sua sexualidade são associadas, de forma metonímica, a cataclismos
propiciatórios da dissolução final: e é a carne, por fim, como flor escatológica,
húmida e esponjosa, que revela a precaridade nocturna e assassina da sua raíz -
o orgasmo.
Este texto
de Joyce Mansour, trazendo-nos à lembrança alguns poemas de Sylvia Plath, tem a
força arrogante de desbastar campos novos da sensibilidade: ficará como um
cristal mal facetado, mas possuidor de uma luz que deslumbra a memória dos sentidos.
E não há dúvida que é a edição de textos como este Júlio César - História Nociva
que dá o lugar certo no mercado livreiro a uma editora que se denomina Hiena.
Publicado
no Expresso em 1987.
(Foto da Autora de Gilles Ehrmann).
(Foto da Autora de Gilles Ehrmann).
Título:
Júlio César – História Nociva
Autor:
Joyce MansourTradutor: Aníbal Fernandes
Editor: Hiena Editora
Ano: 1987
45 págs., esg.
Sem comentários:
Enviar um comentário