quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

JOYCE MANSOUR

 



A IRRUPÇÃO VIOLENTA DA CARNE

 

Há certos textos que são puras casas de alucinação, onde se atravessa a beleza fulgurante e a mais repugnante imagem, o sentido mais obscuro e a metáfora rude, como se nada dominasse o discorrer da palavra e esta fosse movida por uma energia insensível e brutal que se distendesse de um modo autónomo pela página.

 
É este perturbante “rosto” que nos deixa a leitura desta narrativa poética, Júlio César - História Nociva, de Joyce Mansour, uma poetisa francesa, nascida em Inglaterra, mas de origem egípcia, que pertenceu ao grupo surrealista de André Breton na década de cinquenta, quando ele já se desmembrava e perdia ímpeto e sentido.

 
Joyce Mansour, logo com os seus primeiros textos publicados, se revelou como a mais interessante poetisa surrealista da sua geração: uma escrita de uma violência radical, com uma componente imagética obcecadamente sexual e com a capacidade de desvendar a fantasmagoria universal através de metáforas dilacerantes. Poucas vezes, de facto, a poesia de origem surrealista conseguira, como, por exemplo, na colectânea Rapaces, semelhante acutilância em “tocar o horror” de forma a transfigurá-lo.

 
Júlio César - História Nociva, possuindo as virtualidades metafóricas da restante poesia de Joyce Mansour, não consegue atingir a mesma intensidade, em específico pela “quebra” que provoca certa irregularidade nos seus parâmetros estéticos. No entanto, esta narração do processo de formação de dois gémeos e da sua relação com a ama, a personagem de nome intrigante que intitula este breve texto, consegue aproximar-se da dimensão mítica, principalmente por se concentrar na enunciação dos “pontos críticos de crescimento”. A voracidade dos gémeos a matar a figura divina, recriando-a como um acto lúdico, e a irrupção sangrenta da sua sexualidade são associadas, de forma metonímica, a cataclismos propiciatórios da dissolução final: e é a carne, por fim, como flor escatológica, húmida e esponjosa, que revela a precaridade nocturna e assassina da sua raíz - o orgasmo.

 
Este texto de Joyce Mansour, trazendo-nos à lembrança alguns poemas de Sylvia Plath, tem a força arrogante de desbastar campos novos da sensibilidade: ficará como um cristal mal facetado, mas possuidor de uma luz que deslumbra a memória dos sentidos. E não há dúvida que é a edição de textos como este Júlio César - História Nociva que dá o lugar certo no mercado livreiro a uma editora que se denomina Hiena.

 

Publicado no Expresso em 1987.

(Foto da Autora de Gilles Ehrmann).

 

 
Título: Júlio César – História Nociva
Autor: Joyce Mansour
Tradutor: Aníbal Fernandes
Editor: Hiena Editora
Ano: 1987
45 págs., esg.



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