segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

SIMONE DE BEAUVOIR

 
 
 

SINAIS DE LUTO
  
O tempo passa. Vamos vivendo, amando, lutando, empolgando-nos e desistindo, e, de repente, olhando para o lado, descobrimos um objecto que nos faz ter consciência, emocionados, deste facto óbvio. Este livro, A Cerimónia do Adeus de Simone de Beauvoir, é um desses objectos. Ainda perplexos, com ele tomamos consciência de um facto já conhecido e público: Sartre e Simone de Beauvoir morreram.
 
Durante mais de trinta anos, habituámo-nos a procurar saber o que é que o casal Sartre/Beauvoir pensava sobre as situações que íamos vivendo, até sobre os problemas mais pessoais e íntimos que nos inquietavam. Quer concordássemos ou não, quer entendêssemos ou não, o pensamento deste casal era sempre uma referência necessária para orientarmos a nossa forma de pensar e agir. E talvez não seja abusivo dizer que quase todos os que se preocuparam com questões de ordem ideológica, que procuraram ter posicionamentos claros sobre os homens e o mundo, foram, mais ou menos, directa ou indirectamente, influenciados pelo modo de pensar e agir deste casal. Em termos pessoais, não tenho a menor dúvida de o afirmar.
 
Este livro descreve, no essencial, o processo crescente de doença e morte de Sartre. Resume-se a um mero diário dos últimos anos da sua vida, concebido com o intuito de pormenorizar a evolução do seu estado de saúde, e a um longo diálogo feito principalmente com o objectivo de o manter ocupado na fase inicial do seu processo de cegueira.
 
De certo modo, A Cerimónia do Adeus nada acrescenta à obra de Simone de Beauvoir e pouco mais esclarece sobre a personalidade complexa de Sartre. É um mero epílogo. Mesmo assim, é o diálogo que poderá suscitar mais interesse, em particular porque foi quase sempre orientado para revelar o seu comportamento quotidiano e o modo como Sartre se entendia e assumia (e assim faz referências à sua infância e adolescência, como nele apareceu a filosofia e a literatura, como organizava o seu dia a dia entre elas, como encara o seu corpo e a sexualidade, as relações de amizade, a idade, etc.). E neste aspecto, é aliciante perceber como a existência “prática” de Sartre vai transformando, condicionando e “forçando” as suas formulações teóricas (saliente-se, por exemplo, como Sartre vai dando importância crescente à noção de contingência e o desenvolvimento que foi tendo, na sua filosofia, a noção de liberdade).
 
No entanto, convirá ter sempre em consideração que este livro, enquadrando-se no âmbito da literatura biográfica e autobiográfica (como um número significativo de obras desta autora), vive forçosamente a sua contradição maior entre urna necessidade de representação do autor para si próprio (e para os outros) e uma exigência de sinceridade, determinando assim uma estratégia de escrita, de omissões e de ênfases, que, ao contrário do que se possa crer à primeira vista, exige do leitor um apurado sentido crítico. Mas esse é também um dos motivos de prazer que poderá encontrar neste tipo de literatura que, em Portugal, de um modo intrigante, e em contraste com a França, tem diminutos cultores e uma restrita popularidade.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
 
Título: A Cerimónia Do Adeus
Autor: Simone de Beauvoir
Tradutor: Helena Leonor M. dos Santos
Editor: Bertrand
Ano: 1986
393 págs., esg.
 
 


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