SINAIS DE LUTO
O
tempo passa. Vamos vivendo, amando, lutando, empolgando-nos e desistindo, e, de
repente, olhando para o lado, descobrimos um objecto que nos faz ter consciência,
emocionados, deste facto óbvio. Este livro, A Cerimónia do Adeus de
Simone de Beauvoir, é um desses objectos. Ainda perplexos, com ele tomamos
consciência de um facto já conhecido e público: Sartre e Simone de Beauvoir
morreram.
Durante
mais de trinta anos, habituámo-nos a procurar saber o que é que o casal Sartre/Beauvoir
pensava sobre as situações que íamos vivendo, até sobre os problemas mais
pessoais e íntimos que nos inquietavam. Quer concordássemos ou não, quer entendêssemos
ou não, o pensamento deste casal era sempre uma referência necessária para orientarmos
a nossa forma de pensar e agir. E talvez não seja abusivo dizer que quase todos
os que se preocuparam com questões de ordem ideológica, que procuraram ter
posicionamentos claros sobre os homens e o mundo, foram, mais ou menos, directa
ou indirectamente, influenciados pelo modo de pensar e agir deste casal. Em
termos pessoais, não tenho a menor dúvida de o afirmar.
Este
livro descreve, no essencial, o processo crescente de doença e morte de Sartre.
Resume-se a um mero diário dos últimos anos da sua vida, concebido com o intuito
de pormenorizar a evolução do seu estado de saúde, e a um longo diálogo feito
principalmente com o objectivo de o manter ocupado na fase inicial do seu processo
de cegueira.
De
certo modo, A Cerimónia do Adeus nada acrescenta à obra de Simone de
Beauvoir e pouco mais esclarece sobre a personalidade complexa de Sartre. É um
mero epílogo. Mesmo assim, é o diálogo que poderá suscitar mais interesse, em
particular porque foi quase sempre orientado para revelar o seu comportamento
quotidiano e o modo como Sartre se entendia e assumia (e assim faz referências
à sua infância e adolescência, como nele apareceu a filosofia e a literatura,
como organizava o seu dia a dia entre elas, como encara o seu corpo e a sexualidade,
as relações de amizade, a idade, etc.). E neste aspecto, é aliciante perceber
como a existência “prática” de Sartre vai transformando, condicionando e “forçando”
as suas formulações teóricas (saliente-se, por exemplo, como Sartre vai dando
importância crescente à noção de contingência e o desenvolvimento que foi
tendo, na sua filosofia, a noção de liberdade).
No
entanto, convirá ter sempre em consideração que este livro, enquadrando-se no âmbito
da literatura biográfica e autobiográfica (como um número significativo de
obras desta autora), vive forçosamente a sua contradição maior entre urna
necessidade de representação do autor para si próprio (e para os outros) e uma
exigência de sinceridade, determinando assim uma estratégia de escrita, de omissões
e de ênfases, que, ao contrário do que se possa crer à primeira vista, exige do
leitor um apurado sentido crítico. Mas esse é também um dos motivos de prazer que
poderá encontrar neste tipo de literatura que, em Portugal, de um modo intrigante,
e em contraste com a França, tem diminutos cultores e uma restrita
popularidade.
Publicado
no Expresso em 1986.
Título: A Cerimónia Do Adeus
Autor: Simone de Beauvoir
Tradutor: Helena Leonor M. dos Santos
Editor: Bertrand
Ano: 1986
393 págs., esg.
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