domingo, 10 de janeiro de 2016

MICHAEL ONDAATJE

 
 
 
 
 

O COLAR DE SANGUE

 
Creio ser importante, antes do mais, chamar a atenção para o registo biobliográfico de Michael Ondaatje, o autor de quem foi agora publicado, depois do tremendo sucesso internacional que foi o seu romance (e o filme que dele fizeram) O Doente Inglês, um segundo livro, As Obras Completas de Billy the Kid. Este poeta, ficcionista, realizador de cinema e editor, de nacionalidade canadiana, nasceu em 1943 no Ceilão e, antes de emigrar para o Canadá, viveu até ao final da sua adolescência em Inglaterra. A sua obra narrativa - publicou quatro romances - situa-se nos Estados Unidos, no Ceilão, no Canadá e em Inglaterra. Já ganhou por três vezes o Governor General’s Literary Award (o mais importante prémio literário canadiano) e por uma vez o Booker Prize.

 
Por este percurso, percebe-se que Michael Ondaatje é um típico “escritor da Commonwealth” e que integra aquele conjunto de autores, bem característicos do universo da literatura anglo-saxónica, que, de certo modo, não tem território. De facto, se, na generalidade, existe uma propensão de todos os autores para reforçar os seus vínculos nacionais ou até regionais (nunca nos podemos esquecer de Faulkner e da sua defesa de que toda a “grande” literatura é estruturalmente regional), no contexto das literaturas anglo-saxónicas aparecem cada vez mais escritores que, tanto ao nível temático como ao nível da sua vivência, são verdadeiros apátridas. É evidente que esta situação só é possível porque é cada vez mais concreta a “aldeia global” (o eterno Marshall McLuhan) e porque a língua inglesa possui um estatuto, dia a dia maior, de língua imperial. Mas, pela aparente eliminação de um elemento estruturante da literatura (o território), este facto deve motivar alguma reflexão sobre o futuro da expressão literária e, em particular, sobre as estratégias narrativas que originará a actual vertiginosa dinâmica entre o local e o global.

 
Para o leitor que travou conhecimento da obra de Michael Ondaatje através de O Doente Inglês, o livro agora publicado deixá-lo-á decerto perplexo. Antes do mais, porque As Obras Completas de Billy the Kid, cuja edição original tem já perto de trinta anos, é uma obra inclassificável (e repare-se: o editor português, na linha do que fez o seu homólogo americano, classificou-a como romance; mas, então, como entender que esta obra tenha sido galardoada com o Governor General’s Literary Award de Poesia de 1970?). Constituído por poemas, textos em prosa, mais ou menos líricos, mais ou menos narrativos, uma entrevista e depoimentos, alguns também poéticos, As Obras Completas de Billy the Kid apresenta-se como uma pretensa colectânea de todos os testemunhos escritos e fotográficos de um dos mais famosos foras-da-lei e assassinos da história americana.

 
Se o cinema e a banda desenhada fizeram de Billy the Kid uma lenda viva, o que é um facto é que quase nada se sabe dele: nem ao certo o seu nome, nem quantos assassínios efectivamente cometeu. Sabe-se apenas que tinha vinte e dois anos e que era, na prática, analfabeto, quando foi assassinado, em 1881, por Pat Garrett, seu ex-amigo e “sheriff” do Condado de Lincoln, Arizona, no momento em que entrava no quarto da sua amante mexicana.

 
Talvez nada disto interesse ou só empolgue os milhares de entusiastas deste “rebel without a cause” que ainda existem por todo o mundo. Porém, o fascínio de Michael Ondaatje por Billy the Kid advém de ser uma lenda quase sem forma nem história, visto que, deste modo, podia fazer desta figura ausente a representação da violência. Por isso, a estratégia narrativa desta obra é, sem sombra de dúvidas, um dos seus aspectos mais conseguidos: aceitando a impossibilidade de “ler” um percurso, o autor não ambiciona descrever nem a personagem nem os acontecimentos decisivos da sua vida; pelo contrário, todos os elementos coligidos na obra pretendem contornar o buraco negro do cano de uma arma ou melhor, para utilizar uma imagem do autor, constituir um colar de sangue. E, por isso, estes textos transpõem em muito a própria personagem e chegam a transportar-nos para situações contemporâneas do autor que, a seu modo, são uma espécie de rasto fantasmático da figura, ao mesmo tempo demoníaca e angelical, de Billy the Kid.

 
A tentação do leitor, perante estes poemas, estes fragmentos de imagens, de diálogos, de breves descrições de situações, é procurar descobrir nesse novelo de indícios o “lugar de origem” da violência que aparece, na sua gratuitidade, como aparentemente “pura” (isto é, inconsequente de qualquer motivação externa e oriunda de um Mal depositado no âmago do ser). Mas não se iluda: Michael Ondaatje devolve-lhe essa tentação através da delimitação textual de um lugar tão próximo da Natureza que a própria linguagem mais não consegue do que debruar um vazio.

 
“Utopize-se” um olhar que mantém ao longo da vida a cristalinidade com que nasceu; esse olhar, como o das aves de rapina, nada mais é senão a natureza que o contém: é esse “olhar branco”, que nada reflecte de si nem do que vê, o lugar primordial da violência, exterior à linguagem e, por conseguinte, exterior aos valores. Por isso, talvez a página mais determinante deste livro estranho seja a primeira: o autor demarca o lugar da única fotografia conhecida de Billy the Kid, sem a reproduzir e legenda-a poeticamente sobre os meios técnicos de que foi feita. Reflectindo sobre ela, talvez se perceba a razão de um certo sentimento de impotência que este livro, mesmo com toda a sua fulgurância metonímica, nos transmite: a linguagem terá sempre dificuldade em perceber aquilo que só a visa destruir.

 
Publicado no Público em 1998.

(Foto do Autor de Murdo Macleod)

 
 

Título: As Obras Completas de Billy the Kid
Autor: Michael Ondaatje
Tradutor: Ricardo Lopes Moura
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
133 págs., € 12,12
 
 
 

 



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