O LASTRO ONTOLÓGICO
Talvez
devido à dimensão exótica e intrigante de certas épocas, resultante da distância
temporal, o romance histórico goza hoje de uma sólida popularidade, proliferando,
um pouco por todo o lado (e até em Portugal, onde estas coisas aparecem sempre
um pouco tardiamente), os cultores de um género que conhece uma excepcional voga
editorial — mesmo se, na generalidade, os resultados sejam bem aquém das
expectativas.
Mas,
sem retirar legitimidade à exploração, por si só, desta dimensão exótica e
intrigante, não há dúvida que a ficção histórica mais estimulante é aquela que
se assume, sem sofismas, como um continente adequado ao conjunto das inquietações
pessoais do autor (e, naturalmente, vem-nos sempre à lembrança esse paradigma
que é Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar), ou então, tal
como na obra de Gore Vidal, que encara a sua componente temporal como instrumento
privilegiado de compreensão da historicidade.
O
romance deste autor agora publicado, Criação, integra-se, com Juliano,
o Apóstata e outros, numa vertente da produção literária de Gore Vidal
que, em complementaridade à sua “ficção política” (da qual foi editado há pouco
o romance Washington, D. C.), procura compreender os valores determinantes
e mais primordialmente subjacentes ao mundo contemporâneo.
Criação é um
romance que, de imediato, impressiona pela ambição. Uma obra de seiscentas páginas,
que desenvolve a sua acção no séc. V A. C., e em redor de personagens tão fundamentais
como Pitágoras, Heródoto, Sócrates, Péricles, Zoroastro, Buda e Confúcio,
provoca no leitor uma razoável desconfiança, em particular, porque o alarma
para uma leviana tendência ahistórica de certa “intelligentsia” americana.
Realmente é bem pouco provável que algum escritor europeu encarasse, com sensatez,
um projecto de tamanha pretensão...
Contudo,
e é o mínimo que é possível afirmar, não se pode dizer que Gore Vidal saia
destroçado deste projecto. Genericamente, o romance caracteriza com rigor, e de
modo fundamentado, a ambiência da época; e se existem, de quando em vez, alguns
deslizes de construção (por vezes, certo ênfase propositivo transparece nos diálogos,
evidenciando o seu carácter de mero artifício de exposição), eles não obstam a que
a narrativa seja, quase sempre, empolgante, e a que a acção se mantenha bem
verosímil e encadeada.
A acção
resume-se à biografia de um persa, Ciro Spitama, neto de Zoroastro e embaixador
itinerante de Dario e Xerxes no Ganges e na China, ditada a um seu sobrinho de
formação grega, Demócrito. Este destino, entre várias peripécias, vai permitir-lhe
contactar com figuras basilares do pensamento oriental e ocidental e,
obsessivamente, interrogá-las sobre a sua concepção da origem do mundo e da
vida.
Ao
construir o romance como uma longuíssima fala de um persa a um grego, existe já,
em Gore Vidal, uma opção bem reveladora. De facto, esta construção vai permitir
que, com plausibilidade, se coloquem na boca do persa as críticas mais radicais
à civilização grega, determinando o que nesta existe de deslizante perda para o
Ocidente: o abdicar de uma interpretação mítica e abrangente do universo pela
tendencial sobrevalorização do “logos”.
Por
outro lado, ao definir a personagem principal como um persa estreitamente ligado
à religião zoroastrista, o autor vai orientar o romance segundo uma dupla direcção
narrativa: primeiro, tornar inteligíveis as inúmeras correlações existentes nas
grandes religiões orientais que pretendem uma harmonização (e não uma explicação)
do homem com a natureza, quer através da definição de uma praxis que o
relativize na ordem social e cósmica (Confúcio), quer através de uma integração
da precaridade da morte no ciclo renovador da vida (Buda); segundo, sublinhar a
importância civilizacional da concepção da dualidade primordial (o Bem e o Mal)
que, vinda de Zoroastro, se desloca para a Gnose e, depois, para o
Cristianismo.
Neste
sentido, Criação distancia-se da tendência maior da reflexão neste século
que principalmente tem evidenciado o excessivo “peso” da tradição judaico-cristã
nas formulações da contemporaneidade. De facto, o que neste romance se torna
mais saliente é o papel das concepções religiosas que, na sua procura de
absorver a “opacidade cosmológica”, têm contribuído para que o homem, mesmo
perdendo sempre qualquer coisa em cada doutrina e deixando atrás de si um
lastro de resíduos teóricos, tenha conseguido subsistir com a sua radical angústia
ontológica e, ainda assim, construir sentidos conjunturais para a sua existência.
Note-se,
por fim, que se observa nesta edição uma revisão menos cuidada (ao contrário
daquilo a que esta editora nos tem habituado), por conseguinte, algumas gralhas
e, aqui e além, uma pontuação de todo absurda. Mas demos o benefício de que é
difícil manter um constante rigor numa obra tão vasta e esperemos que numa
futura reedição (e este romance merece-o) estas pequenas falhas desapareçam.
Publicado no Expresso em 1989.
Título: Criação
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Carlos Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
604 págs., esg.
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