RADICALISMO E RECADO
A mais
elementar história da literatura americana reconhece que Richard Wright, com os
seus dois primeiros livros, Uncle Tom’s Children e este Filho
Nativo, foi um autor-charneira na literatura de origem negra. Com um realismo
“social”, denunciatório e didáctico (o autor era militante comunista quando os
escreveu), estas obras contribuíram de facto para a caracterização da sensibilidade
e do comportamento negros numa sociedade profundamente marcada pela segregação
racial. E a sua repercussão foi de tal ordem que, sem sombra de dúvidas,
determinou, estética e literariamente, a produção das gerações seguintes de
escritores negros - mesmo quando repudiavam o seu realismo por demasiado ingénuo
ou a excessiva tipificação dos seus personagens.
É certo
que grande parte da importância deste escritor é resultante de razões históricas
e sociológicas: Richard Wright viveu a deslocação de parte das comunidades do
Sul para o Norte, a sua fixação nas grandes cidades industriais, a criação dos “bairros
negros” e o novo tipo de violência que esta situação produziu. O romance Filho
Nativo é o primeiro reflexo literário desta nova situação e, por isso mesmo,
a obra fundadora do chamado “realismo urbano negro”.
Os méritos
deste romance não se confinam, porém, ao estatuto de testemunho. Grande parte
da modernidade e da importância de Filho Nativo advém das estratégias
narrativas utilizadas para a caracterização da ambiência social e psicológica
dessas novas comunidades. Assim, percebe-se que toda a construção romanesca é
orientada para evidenciar, até ao excesso, que são os sentimentos constantes de
medo e impotência que provocam a massificação sob uma mesma cor de pele. O
desejo de extinguir a invisibilidade (como diria Ralph Ellison) do individuo motiva
inteiramente o olhar e o comportamento de Bigger Thomas (que triste ideia, numa
tradução que, de um modo geral, é escorreita e adequada, converter-se este nome
em Tomás, o Calmeirão), mesmo nos brutais crimes que as circunstâncias o
obrigam a executar.
Este é
outro aspecto que demonstra a radicalidade da perspectiva de Richard Wright: ao
construir a trama romanesca com base em dois crimes muito violentos e quase insuportáveis
em termos éticos, o autor revela o carácter abissal da incomunicabilidade inter-racial
num contexto de segregação. Repare-se, por exemplo, que Bigger Thomas, depois
de cometer estes crimes por pânico, percebe que conseguiu, de qualquer modo,
furar os condicionalismos do terror, sentindo, pela primeira vez na sua vida, o
júbilo de ser soberano do seu destino - mesmo sabendo que este o irá arrastar para
a pena de morte. Neste contexto, é impossível qualquer paliativo reformista,
qualquer humanitarismo religioso ou ideológico, vindo do grupo étnico dominante;
pelo contrário, este comportamento só reforça a presença branca e, por isso,
agudiza o sentido de revolta e de liquidação do outro.
Grande
parte da qualidade narrativa de Filho Nativo, onde são assinaláveis
uma forte crueza e sentido de observação na representação das situações e um vigoroso
dinamismo da acção dramática, desvanece-se, no entanto, na terceira e última
parte. Aqui, como refere o lúcido posfácio de John Reilly, Richard Wright introduz
o advogado de defesa Max, que irá funcionar como porta-voz das posições do
autor em relação à questão racial. A partir desse momento, face às exigências
do didactismo marxista, o ritmo narrativo amolece, a complexidade da observação
vivida cede perante a linearidade da grelha ideológica e as personagens ganham
em retórica psicologista o que perdem em eficácia dramática.
No fundo,
este final revela-se contraproducente para os objectivos globais de Filho
Nativo: as inquietações que levantam uma imagem contrastada da segregação
racial ficam serenadas par um discurso que tudo procura responder e resolver.
Publicado no Público em 1990.
Título: Filho Nativo
Autor: Richard Wright
Tradutor: António Paço
Editor: Editorial Inquérito
Ano: 1990
379 págs., esg.
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