A LITERATURA COMO
HALTEROFILISMO
Foi
com a subida à cena da peça Look Back in Anger de John Osborne,
em 1956, e com a tremenda polémica que motivou, que o grande público se
apercebeu que aparecera uma nova geração literária, logo epitetada nos meios de
comunicação social de “angry young men”, pela sua acentuada rebeldia em relação
aos valores tradicionais do “establishment” britânico. Esta geração, com um
humor muito cáustico e amargo, insurgia-se contra o modelo de democracia e de prosperidade
que a Inglaterra dos anos cinquenta ostentava “para dentro”, como consequência
gloriosa dos sacrifícios exigidos à população pela participação na II Guerra
Mundial, e contra uma integração ilusória que aquele modelo demagogicamente
permitia a elementos afortunados dos sectores sociais mais baixos.
Os “angry
young men” vão, assim, caracterizar-se pela criação de um certo tipo de
personagens, na generalidade jovens em ascensão social, oriundos de meios rurais
humildes, mais ou menos desenraizados, e com uma dolorosa (e revoltada) consciência
de que a sua afirmação social é só vagamente consentida. De facto, era este o elemento
identificante das primeiras obras de autores como o já referido John Osborne,
ou de romancistas como Kingsley Amis, John Wain, John Braine e Allan Sillitoe,
e que Colin Wilson, no famoso ensaio The Outsider, procurou fundamentar em
termos teóricos.
Mas, pelas
brechas abertas por esta geração, irrompeu o mar tumultuoso dos “sixties”,
modificando não só profundamente a paisagem social inglesa, como revelando
também que esta geração era só uma equívoca e ocasional manifestação de um
determinado contexto social. Em breve se tornou notório ser muito mais aquilo
que os separava do que aquilo que os unia, e que o seu posicionamento era
muitas vezes antagónico.
Um
caso típico desta situação é o de Kingsley Amis: Lucky Jim (traduzido no
início da década de sessenta para português com o título O Felizardo), o seu
primeiro romance, foi considerado como uma das mais brilhantes obras iniciais
da literatura inglesa deste século e, ao mesmo tempo, como um dos expoentes da
produção dos “angry young men”.
Mas,
de imediato, Kingsley Amis denunciou a pretensão de o identificar com os
restantes autores desta geração e com as suas ambições de transformação social;
e afirmou que o seu objectivo, ao redigir Lucky Jim, fora apenas o de construir
um romance humorista que satirizasse certas situações de ambição social e de
oportunismo.
Desde
essa altura, Kingsley Amis elaborou uma vasta obra, muitas vezes de forma empenhada
em termos conservadores, mas, quanto mais não seja, pela utilização permanente
do humor e da sátira, brilhantemente iconoclasta e não de todo ajustável,
apesar das constantes afirmações do autor nesse sentido, com os valores
tradicionais. Com um grande sentido oficinal da escrita, a obra de Kingsley Amis
abrange todos os géneros literários, sem pôr nunca em questão os modelos clássicos,
e adquiriu, talvez por isso mesmo, uma grande respeitabilidade no meio literário
britânico. A prova, de tudo isto, é que, mais de trinta anos passados sobre o
início da sua carreira literária, obteve, em 1986, o Booker Prize pelo seu
romance The Old Devils.
Contudo,
algumas obras deste autor, como é o caso de O Crime do Século agora
traduzido, sofrem excessivamente de uma concepção literária que tem alguma
coisa a ver com a ultrapassagem de limites típica do halterofilismo. Note-se,
por exemplo, que o próprio autor afirma, com bastante humor, na introdução a este
romance, que os objectivos da sua elaboração se circunscrevem à superação de cada
vez maiores dificuldades literárias, como se necessitasse de testar o seu pulso
e a sua técnica.
O
Crime do Século foi publicado pela primeira vez como folhetim,
no “Sunday Times”, e pretendia, com os meios literários o mais depurados possível,
apresentar um caso policial de enorme dificuldade de resolução e que envolvesse
um número substancial de personagens e situações dramáticas. Assim, em redor de
um conjunto de crimes perpetrados de forma semelhante e, eventualmente, pelo
mesmo assassino, Kingsley Amis constrói uma hábil e complexa estrutura
romanesca, muito empolgante, mas que, no final de contas, não passa (nem
provavelmente pretende ser outra coisa) de um perfeito exercício.
Creio,
por isso, que o leitor português merecia conhecer outras obras de Kingsley Amis
muito mais interessantes do que esta, e, se possível, com uma tradução mais
cuidada do que a presente. Por que não, por exemplo, traduzir The
Old Devils, o último grande romance deste autor?
Publicado no Expresso em 1988.
Título: O Crime do Século
Autor: Kingsley Amis
Tradutor: Wanda Ramos
Editora: Presença
Ano: 1988
159 págs., esg.
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