sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

NORMAN MAILER

 
 
 
O FLUXO VITAL DA PALAVRA
 
 
O que levou Norman Mailer, durante dez anos, a escrever este romance, que, na edição portuguesa, tem mais de setecentas e cinquenta densas páginas, passado no Antigo Egipto, entre os reinados de Ramsés II e IX?
 
É evidente que esta pergunta, que, página a página, nos surge durante a leitura de Noites Antigas, se relaciona com a intervenção cultural que Norman Mailer vem exercendo na sociedade americana, polemizando com as suas manifestações mais intransigentemente puritanas e antidemocráticas. E esta intervenção é de tal forma enérgica que, no fundo, nos transmite a imagem de ser um produto genuíno da vitalidade contraditória e brutal dessa mesma sociedade. Como consequência, Norman Mailer aparece-nos como o mais típico escritor americano da actualidade, tornando-se quase impensável vê-lo debruçar-se sobre outro contexto socio-cultural.
 
Com a publicação de Os Nus e os Mortos, enorme fresco sobre a participação americana na Guerra do Pacífico, logo assumido como o romance da geração que nela entrou, Norman Mailer, com vinte e cinco anos, conseguiu saltar para a ribalta do mundo literário. Depois, em particular com os romances An American Dream e Why Are We in Vietnam?, os ensaios The White Negro e The Prisoner of Sex  e as reportagens The Armies of the Night e Miami and the Siege of Chicago, Norman Mailer vai irromper nas grandes questões das décadas de sessenta e setenta da sociedade americana, tais como o racismo, a guerra do Vietname, a contestação estudantil, os movimentos feministas e a chamada “revolução sexual”, etc.
 
Por fim, torna-se agora óbvio que esta atenção empenhada com a realidade americana conduziria a sua produção literária a uma nova fase, que pretende tratar de forma romanesca certos dramas “vividos”, exaustivas reportagens romanceadas ou, para utilizar uma expressão do autor, “romances de não-ficção” como O Canto do Carrasco.
 
Este género, bem marcante da actual literatura dos Estados Unidos, revela uma das pretensões literárias, de certa forma académica, mais caras a Norman Mailer: compreender, através da dissolvência das fronteiras entre a ficção e a não-ficção, a especificidade do contributo romanesco na interpretação da realidade.
 
Curiosamente, o projecto Noites Antigas vem afirmar o reverso desta mesma pretensão, completando-a: conseguir fazer transparecer uma realidade, de que só existem esparsos fragmentos informativos, através do trabalho de levantamento e coesão do romanesco.
 
Mas, é esse mesmo trabalho, que aposta em prolongadas e constantes narrativas mitológicas, em exaustivas descrições de ritos, de comportamentos e de ambientes, entendidos como fundamentais para a integração e habituação do leitor a um contexto socio-cultural tão diverso, que faz com que este romance se torne enfastiante e penoso.
 
No entanto, talvez em nenhum outro romance de Norman Mailer se encontrem algumas das suas preocupações maiores tão libertas da poeira factualista (decorrente de um tipo de intervenção na sociedade americana, que é, em termos ficcionais, bastante condicionante) como em Noites Antigas, corporizando-as, principalmente, na personagem central, Menenhetet.
.
Assim, torna-se mais inteligível a sua tentativa de entender a agressão e a violência, em particular, nas suas formas últimas — a guerra e a morte -, como necessárias e determinantes a um “continuum’ de energia vital que se deve manifestar em todos os aspectos da existência, e que, portanto, explica também o caracter estruturalmente violento do comportamento sexual (daí a capacidade de Menenhetet em renascer do próprio sémen, desde que morra no momento de uma ejaculação fertilizante); ou a visão do tempo como um conflito entre o futuro e o passado (“Porque eu diria: tudo-o-que-está-para-vir pode estar a pesar sobre o-que-já-passou”, conclui-se a determinada altura), exigindo, de quem vive o presente, um radical empenhamento na sua existência (toda a composição de Noites Antigas se resume a uma longa revelação dos “sigilosos saberes”, que Menenhetet foi absorvendo no decorrer das suas vidas, ao faraó Ptah-nem-hotep, e que, por sua vez, vão servir, recebidos através do sémen, a um sobrinho homónimo, como preparação para a travessia da Terra dos Mortos, aquando do encontro das suas almas no além-túmulo).
 
Há, por isso, em Noites Antigas, um carácter de “suma” testamentária (“De acordo com a minha observação ninguém teme mais a morte que o mais inteligente dos escribas”, afirma, já quase no final do romance, Menenhetet), que reforça a dimensão demiúrgica da palavra, sempre assim considerada por Norman Mailer, visto que a entende como emanação pura desse fluxo de energia vital.
 
Mas, mesmo atingindo, em algumas passagens, soluções estilísticas muito belas, entre a prece e a evocação mítica, Noites Antigas, na maioria das vezes, dá-nos a impressão de ser um mero rol do repertório de informações já conhecidas sobre o Antigo Egipto, ou, então, a estrita afirmação de um falismo autoritário e violentador.
 
Fica-nos, por conseguinte, a ideia de que, sendo Noites Antigas um dos mais ambiciosos projectos da literatura da actualidade, este resultou num dos seus mais aparatosos falhanços. A tal ponto, que nos levanta a suspeita de que, reconhecendo contudo a importância ideológica da intervenção cultural de Norman Mailer na sociedade americana, este autor tenha sido em excesso sobrevalorizado.
 
Publicado no Expresso em 1985.
 
Título: Noites Antigas
Autor: Norman Mailer
Tradutor: Teixeira de Aguilar
Editor: Publicações Europa-América
Ano: 1985
427 e 339 págs., 17,67 € e 17,67 €
 
 



Sem comentários: