AMARGO E LEVE
No ano literário francês, um período bem peculiar e
decisivo – uma vez que é determinante para avaliar a “colheita” desse ano – é o
que se denomina por “rentrée”. Todos os anos são publicados, nesta altura, mais
de cem títulos de narrativa e uma boa parte deles – muitas vezes mais de metade
– pertencem a autores de primeiras obras. É sabido que muitos vão ficar por
aqui; mas também é sabido que outros, com uma regularidade britânica, fazem
aparecer as suas obras neste período, procurando, assim, captar as atenções dos
júris dos prémios literários, de modo a que, com esse galardão, consigam
atingir vendas e tiragens expressivas, assegurando o interesse das editoras pela
publicação, sem percalços, das suas obras futuras. É desta forma que a “instituição
literária” francesa se alimenta de uma produção regular, em que a maioria das
obras, depois dos holofotes mediáticos, é esquecida, mas que, em paralelo,
permite o aparecimento de um conjunto de obras decisivas para a história
literária francesa.
Um dos autores habituais da “rentrée” literária francesa é
Didier van Cauwelaert, de quem foi agora publicado no nosso país o romance
intitulado A Educação de Uma Fada. Este autor, nascido em 1960, começou,
ainda muito novo, no início da década de oitenta, a publicar a sua obra,
exclusivamente narrativa e dramatúrgica, obtendo diversos prémios (em 1994, com
o seu romance, Un aller simples, ganhou o Prémio Goncourt) e conseguindo
sempre alcançar um significativo sucesso comercial e crítico. Com mais de uma dúzia
de títulos publicados, na sua obra destacam-se, para além do que foi galardoado
com o Goncourt, os romances Cheyenne e La Vie interdite.
A Educação de Uma Fada parece
construir-se como uma história de fadas para adultos. Ou, por outras palavras, assume
a estratégia oposta à da literatura para a infância e juventude, procurando
integrar o máximo possível de irrealidade num contexto real. E não se julgue
que o autor opta por “aligeirar” esse contexto real; pelo contrário, são
diversas as situações que aqui aparecem carregadas de sofrimento: a uma
personagem é diagnosticado um cancro de mama, outra é uma refugiada iraquiana
clandestina em França, a personagem principal, num quadro de decadência
profissional, desagrega-se na abrupta ruptura da sua relação amorosa, uma
criança vive com o estigma doloroso do desaparecimento brutal da sua figura
paterna, etc..
É evidente que tal estratégia narrativa só pode
ser bem sucedida se conseguir manter e transmitir um elevado grau encantatório.
Quer isto dizer, que não basta ter uma visão muito peculiar sobre a
eventualidade de existirem fadas num contexto real, mas que as personagens que
aparecem com semelhante atributo mágico têm que ser assumidas pelo leitor como
– pelo menos – beneficamente aceitáveis neste “exercício” da ficção e que, se
deixar florescer na sua cabeça esta plausibilidade, tal opção só enriquece o
seu olhar sobre a realidade. De outro modo, o exercício no fio da navalha com
que se pretende “convencer” o leitor, ao mais pequeno desequilíbrio, poderá
fazer com que este lance o romance para o lado, descrendo dele.
Ora, não há dúvida que Didier van Cauwelaert, em A
Educação de Uma Fada, consegue, sem esgarçar, essa envolvência
encantatória, ao ponto de “quase” nos fazer crer que certas personagens – como
é o caso desta iraquiana, caixa de supermercado, que, originária e subsistindo
num verdadeiro inferno vivencial, nunca abdicou do seu sonho de ingressar na
Faculdade e de estudar André Gide – apenas aparecem na vida das pessoas com “o
condão” de revelar o ponto momentâneo de “harmonização” da existência. E, por
isso mesmo, este romance, através de uma estrutura narrativa (e de um estilo)
que parece desenvolver a trama numa espécie de “voo de pássaro” – e que o autor
já nos acostumou em anteriores romances -, revela, numa leitura fluída, uma
visão aliciante, entre o terno e o amargo, sobre as formas como, nos dias de
hoje, a vida desliza pela corrente dos pequenos júbilos e das grandes mágoas.
Por fim, gostaria de saudar o aparecimento, numa
editora tradicional do sector escolar, de uma nova colecção, “Cântico Final”,
dedicada à tradução de obras de ficção estrangeira. Principalmente, quando essa
nova linha editorial nos aparece com características exemplares de edição –
tanto ao nível de composição e do papel como do arranjo gráfico das capas e, o
que é fundamental, da qualidade das traduções.
Publicado no Público
em 2001.
Título: A Educação de Uma Fada
Autor: Didier van Cauwelaert
Tradutor: Ana Paixão
Editor: Âmbar
Ano: 2001
196 págs., esg.
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