O SILÊNCIO
DA VIDA
Em 1997 e
1998, J. M. Coetzee foi convidado pela Universidade de Princeton, para, no
quadro das Conferências Tanner, proferir duas conferências sobre um problema
ético que considerasse bem candente. Dessa participação, resultaram dois textos
(“Os Filósofos e os Animais” e “Os
Poetas e os Animais”) que compõem este volume intitulado As Vidas dos Animais
(completado por reflexões muito interessantes de uma teórica da literatura, de
um filósofo, de uma professora de estudos religiosos e de uma primatóloga). Mas
- e aqui se manifesta as peculiaridades da personalidade literária de J. M.
Coetzee - em vez de optar pela forma de ensaio filosófico (forma habitual de
participar nas referidas Conferências), resolveu elaborar dois textos de
metaficção, em que uma velha escritora australiana, Elizabeth Costello, vai
apresentar duas comunicações num colégio americano, onde o filho é professor
auxiliar. Essas comunicações são sobre um tema que cada vez mais obceca esta
escritora ao ponto de provocar, em seu redor, um clima de fortíssima
hostilidade: os crimes perpetrados por sistema pelos homens sobre os animais.
A opção de
J. M. Coetzee, em apresentar duas ficções - que constituem uma pequena novela -
em vez de textos ensaísticos, não é gratuita: é que o autor está absolutamente
convicto de que a narrativa é uma forma literária mais perfeita do que a do
ensaio filosófico para ajudar a compreender uma determinada problemática. E
isto porque a ficção, sendo o instrumento ideal para tentar compreender o
Outro, tem, numa reflexão sobre essa alteridade quase absoluta que é o animal
(pelo menos, porque assim tem sido assumido pela história das ideias e das
religiões), uma capacidade de problematizar que parece impossível à filosofia.
Por isso, como refere, de modo brilhante, Marjorie Garber no seu comentário,
estas conferências de J. M. Coetzee são uma brilhante reflexão sobre os limites
da inteligibilidade do romance e sobre a sua eficácia em transformar
mentalidades. Saliente-se que, além disso, no caso do tema particularmente
polémico destas conferências, a ficção, ao permitir encenar não só os
argumentos, mas também as reacções, favoráveis e hostis, dos ouvintes e dos
familiares de Elizabeth Costello, expõe, como se fosse uma construção pluridimensional,
a problemática que está na sua raíz.
Antes de
avançar para o tema concreto destas conferências, ou melhor, das comunicações
de Elizabeth Costello (os direitos dos animais), gostaria de chamar a atenção
do leitor para o facto de esta obra, na sua brevidade, ser uma das mais
complexas, arrojadas e aliciantes reflexões que se pode ler sobre este tema e
que está, com a maior das sinceridades, a anos-luz dos recentes debates
caseiros sobre as violências cometidas sobre animais.
A
argumentação de Elizabeth Costello parte do pressuposto de que toda a história
da filosofia (de Aristóteles a Descartes e Kant), ao reflectir sobre o animal,
sofre de “homocentrismo”; isto é, avalia o animal de acordo com valores
fundamentais para o homem (a consciência, a razão ou a posse de linguagem
articulada), definindo assim uma hierarquia equívoca e descurando aquilo que é
o elo comum entre os homens e os animais: a existência de uma “alma
corporizada”, com a mesma capacidade de fruir a vida e de pertencer à harmonia
musical da Natureza, e, por consequência, com idêntico pânico pela morte (mesmo
que a morte possa não ser, para os animais e para os homens, “a mesma morte”) e, o que é provavelmente
fundamental, com a faculdade de transmitir estes sentimentos.
Se assim é,
a “alma corporizada” do animal adquire o estatuto de sujeito (a consciência de
si próprio não deve ser determinante para esta definição) e, em sequência, não
pode ser entendida como uma simples “coisa” ao serviço do homem. Nesta
circunstância, é legítimo considerar que existe no animal os atributos
essenciais de uma pessoa. Ora, como é sabido, o quadro de valores da
civilização ocidental sempre considerou como crime qualquer violência exercida
sobre uma pessoa, dado que qualquer sujeito se sente de imediato identificado
com o objecto dessa violência. A dedução lógica deste raciocínio é que qualquer
violência executada sobre os animais, mesmo pelos motivos mais altruístas, deve
ser assumida, em consciência, como um crime. Por fim, se se considerar que
nunca foi admissível definir graduações no estatuto de pessoa, é-se obrigado a
chegar à conclusão de que somos cúmplices de carrascos de uma permanente
carnificina criminosa de proporções superiores às do conhecido Holocausto da II
Guerra Mundial (é esta, diga-se de passagem, a analogia que Elizabeth Costello
efectua, para fazer compreender a situação dos animais, e que tanto choca
certas “almas sensíveis”).
É evidente
que J. M. Coetzee não pretende, com estas conferências, apresentar uma
resolução para as relações dos homens com os animais, mas apenas problematizar essas mesmas relações, levantando substanciais
problemas morais.
Quando se
recorda que a vida do homem e toda a economia mundial sempre assentou no
morticínio de animais, tem-se plena consciência de como As Vidas dos Animais se
aproxima dos universos da utopia. Mas será possível continuar a voltar a cara
para o lado, fingindo que se desconhece, e aceitar como natural, depois de ler
esta obra de J. M. Coetzee, o clamor indefeso de vida silenciosa que se ergue
das pocilgas e dos aviários que nos alimentam?
Publicado
no Público em 2000.
Título: As Vidas dos Animais
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria de Fátima St. Aubyn
Editor: Temas e Debates
Ano: 2000
134 págs., esg.
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