RECRIAR
O SÉCULO XIX
Pietro Citati, o autor de quem foi agora publicado pela primeira vez no
nosso país, segundo creio, uma obra, com o título, longo e descritivo, de História
Primeiro Feliz, Depois Dolorosa e Funesta, é uma das figuras mais
respeitáveis e consideradas da literatura italiana contemporânea. No entanto,
não é de admirar o seu desconhecimento em Portugal, porque este autor dedicou
quase toda a sua actividade literária a um género que - só os deuses sabem a
razão - é muito desprezado e maltratado no nosso país: o biográfico. E,
contudo, Pietro Citati, com Peter Ackroyd e poucos mais, faz parte da plêiade
dos grandes biógrafos das letras contemporâneas: no conjunto da sua obra
aparecem biografias de figuras como Alexandre Magno, Göethe, Proust, Kafka,
Katherine Mansfield ou Tolstoi (sendo, provavelmente, esta última, a mais
apreciada e elogiada).
O género biográfico, como é sabido, é uma arte complexa que associa o
trabalho minucioso de investigador, que procura recolher o maior número de
dados e informação sobre o biografado, com o poder narrativo de tentar
transmitir, de forma intensa, as sinuosidades, emocionais, afectivas e
intelectuais, da sua existência. Ora, neste campo, a obra de Pietro Citati é
exemplar: assumindo, como se fosse uma espécie de narrador-actor, a “pele” da
personagem biografada, Pietro Citati procura recriar, através da sua própria
sensibilidade (que, como afirma Mario Praz, funciona como “camera oscura” onde as suas personagens se revelam), a
motivação subjectiva do comportamento dela. Se associarmos, a este trabalho,
uma capacidade estilística que consegue transmitir uma enorme amplitude de
cambiantes emotivos e as integra em situações concretas que são descritas com a
minúcia de “um miniaturista que, como um joalheiro, se deleita com a sua
própria arte” (citando de novo Mario Praz), percebe-se por que,
consensualmente, as suas obras são consideradas como determinantes para o
conhecimento das figuras biografadas e, ao mesmo tempo, como peças de valor
literário inestimável.
Não admira, por isso, que afirme que História Primeiro Feliz, Depois Dolorosa e
Funesta seja um “falso”
romance. De facto, trata-se da biografia dos bisavôs de Pietro Citati,
reconstruída com base num plantel vastíssimo de documentação que o filho, de
uma forma quase obsessiva (ele tinha ficado órfão ainda criança), foi
recolhendo e arquivando ao longo da vida. O resultado é uma obra, de tonalidade
flaubertiana, onde se espraia uma relação amorosa com todos os matizes que tal
sentimento pode revestir no século passado.
Através das cartas, entre os dois amantes ou entre as suas famílias,
transparecem não só os condicionalismos sociais que enquadravam o sentimento
amoroso no séc. XIX, mas, em particular, o seu contexto ideológico. É
interessante observar, por exemplo, como esta relação assume o terrível aspecto
de uma paixão quase trágica - se não se consumar o casamento -, quando os
amantes apenas se conhecem pela sua representação pictográfica. Este carácter
pateticamente fatalista resulta das concepções românticas de amor e revela como
este sentimento, embebido de “sinceridade”, reflecte, antes do mais, a própria
retórica da época e, por conseguinte, como a dicotomia entre “sinceridade/representação”
não tem contornos nem limites. Compreende-se,
assim, porque é que a intensidade amorosa nunca dilui o sentido do material, já
que são negociadas, de forma bem ponderada pelos amantes, as condições
concretas em que a relação conjugal se vai estabelecer.
Mas, pelas páginas de História Primeiro Feliz, Depois Dolorosa e
Funesta, evidenciam-se muitas
outras características da mentalidade e do modo estar oitocentista: o fascínio
pelo exotismo, a mobilidade geográfica (e também social) dos membros de uma
aristocracia aburguesada pelos negócios e pelos serviços e prosperando no
quadro colonial (o Mediterrâneo ainda é, nesta altura, um mar agregante), o
carácter bem contraditório e complexo das relações entre pais e filhos, a
diluição lenta do papel envolvente da família larga, etc., etc. A naturalidade
e a “leveza”, com que todos estes elementos são representados, quase que
consegue transmitir ao leitor a ilusão de estar em presença de um autor
contemporâneo dos acontecimentos narrados; só que tal facto é resultante da
capacidade estilística de Pietro Citati que, numa prosa sóbria e clássica (e
muito bem traduzida para a nossa língua), tem o poder de erguer, dar espessura
e densidade a personagens que só conhece através de velhos papéis e cartas
emarelecidas.
Publicado no Público em 1998.
Título: História Primeiro Feliz,
Depois Dolorosa e Funesta
Autor: Pietro Citati
Tradução: Maria Jorge Vilar de
Figueiredo
Editor:
Edições Cotovia
Ano:
1998
209
págs., 1,80 €
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